O que eu aprendi com um dentista desonesto
Nossa editora e colunista Liliane Prata lembra que conhecimento é poder. Não tenha medo ou preguiça de ler, estudar e pesquisar: todo mundo, seja especialista ou não, pode mais quando conhece melhor
Muitos anos atrás, uma amiga começou a sair com um dentista. Em uma noite, fomos nós quatro a um bar – eu e o meu namorado da época e os dois. Depois de alguns drinques, eis que o dentista ficou animadíssimo. E começou a contar alguns detalhes dos “bastidores”. Na verdade, os bastidores terríveis de um colega específico dele. Esse colega estava comprando um apartamento. Precisando de dinheiro, ele começou a, vejam só, inventar procedimentos para seus pacientes. Coisas como: falar para um paciente que não tinha cárie alguma que, puxa vida, ele estava com uma cárie. E dá-lhe motorzinho – sem a menor necessidade. Ele chegou a indicar uma microcirurgia para alguém que não precisava.
Eis um caso extremo de um especialista – em dentes, no caso – enganando uma pessoa não especialista – todos nós que não cursamos odontologia e abrimos a boca e a carteira tranquilos, acreditando que aquele profissional sabe o que está fazendo. Não importa a área, há um fosso entre o conhecedor e o ignorante – e ambos sabem que o conhecimento é uma forma de poder.
Além de reforçar a importância de procurar dentistas de confiança, esse episódio me fez pensar: é incrível como, muitas vezes, confiamos nessas pessoas que sabem – os ditos especialistas – a ponto de não nos sentirmos aptos a emitir qualquer opinião. Saindo do consultório e indo para outras searas, vemos que, hoje em dia, com tanta gente “sabendo tudo” sobre uma área específica, frequentemente nos sentimos incapazes de achar algo sobre alguma coisa que não dominamos.
Aqui na internet, é muito comum ver comentários desautorizando a voz dos não especialistas. “Você não é especialista nesse assunto” leio no comentário de uma mãe sobre amamentação. “Gente, isso tudo é achismo, meu terapeuta disse que…” vejo em outro. “Não sou um especialista no assunto, mas…” leio na primeira linha de uma crônica sobre o amor. Eu mesma já me desculpei em textos por falar de relações amorosas sem ser psicóloga, maternidade sem ser pediatra, meditação sem ser monge ou guru. Claro, já vi e vivi várias experiências amorosas, sou mãe e medito há anos, mas quem sou eu diante da voz dos especialistas, certo?
Hmmm mais ou menos certo, eu acho.
É interessante nos lembrarmos de que nem sempre a humanidade dividiu o conhecimento em compartimentos minúsculos (e às vezes míopes) chamados especialidades. Platão, Descartes e Leonardo da Vinci estão entre tantos outros grandes nomes que transitavam sem engessamento algum entre áreas variadas como matemática, linguagem, antropologia, ética, biologia. O tal do conhecimento especializado foi ganhando terreno no século 19 e hoje chegou a um grau tal que desautorizamos os não especialistas a falar daquilo que não é sua expertise, quase como se precisássemos ter medo do que não está dentro do nosso escopo: como pode um físico opinar num programa de TV sobre pobreza? Quem esse engenheiro pensa que é para dar, numa roda de amigos, essa aula de história? Como pode uma professora de música discordar da fala de um psicanalista?
Encontrar tantos comentários na internet esvaziando as falas dos não especialistas não deixa de ser irônico. “A internet conseguiu o que nenhum advogado especialista em direitos do consumidor conseguiria: diminuir de forma drástica o abismo entre os especialistas e o público”, leio na página 63 do livro Freakonomics (se você não leu: superinteressante esse best seller). Ou seja, por um lado, tem um monte de informações na web, mas, por outro, um monte de gente desautorizando quem adquiriu a informação por aqui sem ser formado no curso X ou ter o diploma Y.
Alguns médicos suspiram quando os pacientes chegam à consulta após consultar o Google. Muitos, depois de uma pesquisa bem feita, entram no consultório fazendo perguntas específicas, usando termos precisos. Entendo que dar um Google não torna ninguém um expert, mas entendo também que os especialistas não são super-heróis nem detém um conhecimento absoluto – tanto que divergem entre si sobre várias questões perfeitamente inseridas na sua área de conhecimento (além disso, o que um especialista diz hoje pode não valer amanhã). Em vez de suspirar, os médicos impacientes com a internet poderiam chegar à conclusão de que seria maravilhoso que todos nós conhecêssemos mais profundamente nosso corpo. Poderiam orientar os pacientes sobre sites confiáveis e como realizar uma pesquisa bem feita. Imaginem, aliás, se na escola se ensinasse um pouco de medicina. Em vez disso, alunos que aprendem sobre reprodução das samambaias vão para a faculdade sem saber apontar onde fica seu próprio baço, sem saber que sintomas do seu corpo pedem uma ida imediata ao hospital e que sintomas podem esperar, sem saber o básico de primeiros socorros…
Todo mundo critica os “falsos especialistas” – pessoas emitindo opiniões infundadas, sobretudo pela internet afora. Mas, nesta era de especialistas, vale atentar para o outro lado da moeda: se desautorizarmos a aquisição livre, interessada e não especializada de conhecimento, temos muito a perder sobre o nosso corpo, nós mesmos e a vida. O ruim não é adquirir conhecimento por conta própria – isso deveria ser algo louvável. O ruim é, isso sim, falar sem ter pesquisado, passar adiante uma informação sem reflexão ou embasamento por trás. Mas não é preciso ser formado em Direito para conhecer o código civil, nem ser expert em finanças para aprender a investir seu próprio dinheiro, ou ser médico para compreender minimamente o corpo humano, ou filósofo ou cientista social para fazer análises pertinentes da sociedade que nos cerca…
Sabemos que a ignorância transforma as pessoas nas vítimas preferidas dos detentores de conhecimento. No caso dos pacientes do dentista desonesto, não havia muito que fazer além dos cuidados que tomamos no mecânico, no dedetizador, do fisioterapeuta, enfim – contratar quem confiamos, basicamente, e procurar uma segunda opinião quando achamos que é o caso. Mas e nos casos mais sutis? E na maneira como lidamos com o conhecimento e com o mundo à nossa volta?
Com tanta informação disponível, nunca foi tão importante que cada um de nós desenvolva senso crítico e capacidade de interpretar os dados com bom senso. Em vez de esvaziar o discurso do não especialista, deveríamos, todos nós, fazer uma ode à inteligência, à busca curiosa de informações, ao bom senso, à aprendizagem de qualidade, à conexão entre dados.
Falando em conexão, vale lembrar: o conhecimento, assim como o mundo, é multifacetado. Se, aos especialistas, cabe priorizar um viés das questões em detrimento dos outros vieses possíveis, aos não especialistas cabe se apropriar com sensibilidade e inteligência daquela informação e conectá-la ao conjunto. Bons especialistas sabem disso e conseguem pensar fora da “caixa” da sua área. Exemplo: quando o gastroenterologista que estudou tudo sobre estômago para por um minuto de olhar o seu resultado de endoscopia, nota uma pinta no seu braço e fala que você precisa ir ao dermatologista. Ou quando o advogado, o corretor ou o economista, em vez de falarem coisas como “amigos, amigos, negócios à parte”, se lembram de que os clientes são pessoas e as relações não se resumem a números e bens. Mas nem de longe todo especialista faz isso. Muitas vezes, é bom não ser um expert e conectar a fala do que sabe com a nossa experiência do lado de fora daquela área.
Os especialistas não são seres sobre-humanos. Erram. Com competência e capacitação, minimizam-se os riscos. De qualquer forma, os não especialistas nem sempre estão imobilizados na cadeira de um dentista. Procurar ampliar nossos conhecimentos é, a meu ver, um hábito maravilhoso, que deve ser incentivado. Não simplesmente “dar pitaco”, mas estudar, entender com profundidade o máximo de questões com que nos deparamos e pensar com a própria cabeça.
Lilliane Prata é editora de CLAUDIA e assina esta coluna toda quarta-feira. Para falar com ela, clique aqui.