Latifa Maktoum, princesa de Dubai, desapareceu após tentar fugir da cidade, que faz parte dos Emirados Árabes Unidos (EAU), no Oriente Médio. Ela é uma dos 30 filhos do líder de Dubai e primeiro-ministro dos EAU, xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum, uma das figuras políticas mais ricas e poderosas do mundo.
O caso se torna ainda mais intrigante e chamou a atenção da imprensa mundial pelo fato de Latifa, que tem 33 anos, deixar gravado um vídeo em que fala a seguinte frase: “esse pode ser o último vídeo que eu faço”.
“Muito em breve, eu vou fugir para algum lugar. E eu não tenho certeza se isso dará certo, mas estou 99% otimista de que vai funcionar”, disse Latifa no vídeo publicado no YouTube em fevereiro deste ano. O registro foi feito em segredo com o objetivo de somente ser divulgado por seus amigos caso o plano de fuga não desse certo.
“[Dubai] não é como tem sido retratada pela mídia. Aqui não há justiça. Eles não se importam. Especialmente se você é mulher, sua vida é tão descartável”, narrou Latifa no vídeo (confira abaixo).
A história detalhada foi contada por um novo documentário da BBC, Escape from Dubai: The Mystery of the Missing Princess (A fuga de Dubai: o mistério da princesa desaparecida), transmitido em 6 de dezembro.
Uma vida de impressões
Filha de uma das figuras políticas mais ricas e poderosas do mundo, o xeique Maktoum, Latifa levava uma vida rodeada de luxo. “Ela vivia com sua mãe e duas irmãs em uma casa particular, que, vista de fora, parecia um palácio. Tinha piscinas, salas de massagem, provavelmente 100 funcionários”, conta Tiina Jauhiainen no documentário. Ela foi treinadora de capoeira de Latifa e se tornou sua amiga de confiança.
Tiina conta também que, primeiramente, a impressão é que Latifa vivia uma verdadeira vida de princesa, ideia que foi mudando com o passar do tempo. “Vivia em um palácio, tinha muito dinheiro, não faltava nada. Essa era a primeira impressão. Levou um tempo até que eu percebesse a realidade da sua vida.”
Apresentada como uma das sociedades mais liberais para as mulheres no Oriente Médio, os Emirados Árabes Unidos também são regidos pela sharia, a lei islâmica.
“As mulheres têm que ser obedientes aos seus maridos. Os homens podem bater nas suas mulheres e filhos. Isso está na lei dos EAU. Então, se uma mulher é considerada muito selvagem, não controlada pela família, eles podem decidir confiná-la e puni-la, para que ela não se comporte dessa maneira”, afirmou à BBC Rhothna Begum, da organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch.
A primeira tentativa de fuga
Em 2002, quando tinha 16 anos, Latifa tentou fugir pela primeira vez. Mas foi capturada na fronteira e levada de volta para Dubai. No vídeo, a princesa diz que foi duramente punida pela fuga: “Eles me colocaram na prisão e me torturaram. Basicamente, um cara me segurava, enquanto outro me batia. Depois das sessões de tortura eu não podia nem andar”.
Latifa conta ainda que. em seguida, foi confinada sozinha em um quarto-escuro, sem saber o que era dia e o que era noite. No total, teria ficado nesse confinamento por 3 anos e 4 meses, e liberada somente aos 19 anos. Latifa saiu dessa experiência completamente diferente, segundo conta no vídeo. Deixou de confiar nas pessoas e começou a passar mais tempo com animais – alguns desses momentos estão registrados em seu perfil no Instagram.
A princesa então foi autorizada a contratar tutores privados, vivia livre, mas impedida de deixar Dubai. Ela se formou aos 26 anos e passou a fazer treinamentos esportivos. Além das aulas de capoeira com Tiina, fez cursos de paraquedismo e se juntou à comunidade de paraquedistas locais.
“Ela me dizia que o paraquedismo dava a ela uma sensação de liberdade, ela precisava de algo para se distrair da sua vida”, diz Tiina no documentário. Pessoas que conviveram com Latifa disseram para a BBC que a princesa era discreta. Mesmo assim, fotos dela pulando de paraquedas acabaram sendo veiculadas na mídia local, passando a imagem que Dubai queria transmitir: a da diversão e da liberdade feminina.
É tudo uma “farsa”, disse Latifa no vídeo. “Não posso dirigir, não posso viajar, não saio (de Dubai) desde 2000, não deixam. Pedi para estudar (fora), e me negaram”, declarou. “Meu pai tem essa imagem de ser (um homem) moderno. É mentira. É só marketing.”
A segunda e última tentativa de fuga
Após 10 anos da primeira tentativa de fuga, Latifa planejou escapar outra vez. No vídeo, a princesa conta que ia até um café com internet, onde entrava em contato com Hervé Jaubert. O ex-espião francês era um ex-agente de inteligência naval, que havia trabalhado em Dubai, mas teve problemas com os Emirados e teve que escapar pelo mar, nadando por uma grande parte do trajeto. Eles teriam trocado mais de 200 e-mails.
A instrutora física de Latifa, Tiina, baseada na Finlândia, passou a ser a intermediária. Viajou quatro vezes para as Filipinas, onde estava Jaubert. Lá, elaboraram o plano que Tiina precisava transmitir a Latifa, em Dubai. O dia escolhido para a fuga foi 24 de fevereiro de 2018.
Elas então entraram no carro – era a primeira vez que Latifa se sentava no banco da frente. “Ela queria fazer selfies o tempo todo”, recordou Tiina.
Ao chegarem na costa de Oman, em um fim de tarde, pegaram o bote e percorreram quase 40 quilômetros até alcançar o iate de Jaubert. Nele, navegariam 2,5 mil quilômetros até a Índia.
Mas a missão não estava concluída. Todos sabiam que estavam enfrentando um dos Estados policialescos mais sofisticados do mundo e que seria difícil se esquivar dele. “A situação era tensa. Basicamente, (você) está em guerra, em uma área hostil. Se te encontram, está morto”, ressaltou Jaubert para a BBC.
A apenas 50 quilômetros da Índia, o iate foi interceptado e abordado por pessoas armadas. “Colocaram uma arma no meu rosto. ‘Fecha os olhos ou te mato’, gritaram para mim. Alguém me algemou e, em seguida, me deu um golpe violento. Acabei em uma poça de sangue. Eram indianos”, disse Jaubert.
Tiina e Latifa se esconderam em um banheiro. De lá, a princesa começou a enviar mensagens para Radha Sterling, informando que seu barco estava sob ataque. “Me ajude”, pediu pelo telefone. Do outro lado, Sterling escutou sons que lhe pareceram ser de disparos.
As duas foram encontradas e, sob a mira de uma arma, levadas para o convés. “Escutei árabe e me dei conta que alguém dos Emirados havia nos abordado”, recordou a treinadora Tiina.
Latifa então gritou e pediu asilo. Disse que preferia morrer ali mesmo. “Foi a última vez que a escutei falar. Estava paralisada”, contou Tiina. “Eu estava preparada para enfrentar piratas, mas nunca um conluio entre Índia e Emirados Árabes”, falou Jaubert.
Sete dias depois, foi postado no YouTube o vídeo que Latifa havia gravado antes da tentativa de fuga e enviado para amigos divulgarem se algo ocorresse a ela.
Os desdobramentos do caso
Tiina, a treinadora, e o ex-espião francês Jaubert foram levados a Dubai. Ela foi acusada de manipular a princesa e ele, de sequestra-la. Os dois dizem que as autoridades de Dubai tentaram forçá-los a desmentirem as denúncias da princesa rebelde, mas eles não o fizeram.
Duas semanas depois, ambos acabaram liberados. Latifa continua desaparecida.
Mohammed bin Rashid Al Maktoum e o governo de Dubai não comentaram as acusações feitas no documentário da BBC. Porém, emitiram um comunicado dizendo que “Latifa e Shamsa são adoradas e valorizadas por sua família e Latifa está agora segura em Dubai”.
Tiina tem a esperança de que sua amiga “siga viva, que tenha força e não se dê por vencida”. E recorda as últimas palavras de Latifa no final do seu vídeo revelador. “Se eu não sair desta, espero que ao menos surja algo bom”.
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