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Mulheres do mundo, juntas na Bahia, querem um futuro amoroso e de paz

No Fórum AWID, elas discutiram de segurança na internet ao combate ao racismo, à xenofobia, violência, pobreza e também aos ataques à natureza

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 28 out 2016, 00h02 - Publicado em 14 set 2016, 10h15
Patrícia Zaidan
Patrícia Zaidan (/)
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O feminismo acaba de redesenhar seu rosto. Ele não é menos combativo, pelo contrário, está mais forte e plural. Foi o que se viu na Bahia, no evento que reuniu 1815 participantes, 156 nações, de todos os continentes do planeta. Pela primeira vez (de 8 a 11/9) um país da América do Sul sediou um Fórum da AWID, organização global de direitos e desenvolvimento da mulher. O ineditismo, porém, ocorreu para além da geografia: o novo movimento incorpora não só as mulheres mas as trans, os trans, e as pessoas não-binárias – que se afirmam longe da obrigação de ser homem ou mulher, amam e vivem fora do sistema político-comportamental que aceita apenas dois papéis.

A forma de expressão do feminismo também se ampliou para considerar os afetos, os sentimentos, o cuidado de cada uma, em particular, e das outras. E ainda multiplicou o leque de ações ao cruzar a defesa de direitos sexuais, reprodutivos e de autonomia financeira com o combate ao racismo, à homofobia, xenofobia, violência, opressão, desigualdade social e ao tráfico de seres humanos. Tudo isso junto e misturado se chama interseccionalidade e quer dizer, em palavras simples, mulheres juntas, atuando em diversas trincheiras para conquistar um futuro de paz. 

A Costa do Sauípe, a 75 km de Salvador, virou o retrato do mundo todo. Lideranças de diversas culturas – com suas fitas, tranças, turbantes, colares, adornos, chapéus e véus – falaram em nome de combatentes presas, ativistas assassinadas, mártires que enfrentam governos golpistas, o terrorismo, os conservadores, os fascistas. Para dar o recado adotaram discursos duros, lágrimas, picardia, bom-humor e artes (performances, dança, canto, pintura, cinema). 

Na lista de presenças havia famosas, entre elas Phumzile Mlambo-Ngcuka, subsecretária-geral da ONU e diretora executiva da ONU Mulheres, que ocupou um ministério no governo do sul-africano Nelson Mandela. E também jovens lideranças, caso da curda Dilar Dirik, 25 anos, que virou um gigante ao relatar à plateia a audácia das curdas que desafiam o Estado Islâmico. Na Síria, elas se armam (de fato!) e se defendem dos fanáticos que fazem milhares de vítimas, estupram, tornam as mulheres escravas sexuais e as vendem a soldados. 

Na entrevista que segue, a carioca Jurema Werneck, médica, doutora em comunicação, criadora da ong Criola e membro do Comitê Internacional de Planejamento do fórum, faz um balanço do evento:

Patrícia Zaidan
Patrícia Zaidan ()

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Jurema Werneck no Fórum da AWID

Como se viu, o fórum contou com grande diversidade. Como conseguiram juntar tantas tendências e visões?
Na organização ocorreram momentos dolorosos, tensos e outros até engraçados. Custou muito trabalho e muita mobilização para termos negras, índias, lésbicas, mulheres com deficiência, líderes urbanas e rurais, gente de todas as classes sociais, de áreas e lutas diferentes. E depois, para incorporar os homens trans. Deu tudo certo, vimos reações bonitas, por exemplo, a das dalits, que vivem na Índia e no Nepal, e aqui buscaram visibilidade. Elas são de um grupo populacional que, no sistema das castas, era chamado, antigamente, de intocáveis. Os expulsos da sociedade, considerados impuros, sujos, menos que gente, não podiam tocar na água e nos alimentos. Elas vieram para fazer intercâmbios no fórum. Foram realizadas centenas de mesas de discussão sobre interseccionalidade e compromissos se firmaram. O resultado final é a renovação do movimento, que vem sendo realizada por todas essas pessoas.

Que avaliação você faz do feminismo que emerge hoje?
O movimento de mulheres e o feminismo tinham a vontade de construir uma plataforma comum e isso se operacionalizou aqui. Não é que as barreiras de raça, classe e de idioma tenham desaparecido. Mas estão em curso vários esforços para as mulheres sentarem juntas e criar uma linguagem única. Tentamos imaginar um viável futuro de esperança. Ele não caberia só àquelas que levantam a mão e vão às passeatas – todas aqui fazem isso –, mas pressupõe incluir as demais. Estamos entrando em uma nova fase do movimento de mulheres e do movimento feminista internacional. Com a tentativa de construir, de novo, um lugar para nós, que seja seguro, amoroso, não importa a cor, as diferenças. É hora de deixar a velha bagagem e pegar uma mais atual. A gente ganhará em lastro e confiança. Essa é a razão do esforço ser tão grande. 

Por que você disse: “De novo”, se nunca tivemos esse lugar seguro?
Construir de novo o movimento. Ele está reclamando para si mesmo outra cara, uma nova metodologia, um jeito contemporâneo de se colocar na sociedade.
 
As feministas acolheram os não-binários e os trans, que os outros movimentos e a política ignoram. É um avanço importante.
Sim, mas demorou um tempo e não foi simples. No comitê internacional tem um representante trans, Mauro, que é a voz desses grupos. Sou binária, me identifico como mulher. Foi difícil para nós, que nascemos e crescemos num mundo binário, e o compreendemos binário, aceitar essas identidades nas organizações. Antes era: “Fora daqui. Fique lá no seu canto, faça a mobilização com os seus”. Foi duro trazer para o feminismo internacional a visão de que não existe a mulher. São as mulheres. Agora, os movimentos são para feministas, mulheres e pessoas. Uma mudança radical. E muito feliz.  É a primeira vez, em um fórum global desse tamanho, que eles estão presentes e com intensidade. Havia uma preocupação no comitê: como os funcionários do resort reagiriam a eles? Quando uma pessoa desses grupos quer ir ao banheiro, em qual deve entrar, se ela não é homem nem mulher? Em geral, ela é expulsa. Foi desenvolvido um programa de treinamento para que os profissionais do hotel pudessem compreender e lidar muito bem com todos, que precisavam se sentir em casa. E os profissionais do restaurante, da limpeza, da gerência, da infraestrutura também precisavam se sentir confortáveis para trabalhar com pessoas de culturas tão diferentes. 

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A ideia do autocuidado veio muito forte no encontro. Assim também como a sororidade
A experiência comum demonstra que o fundamentalismo e o conservadorismo se alastram terrivelmente. As norte-americanas citam Donald Trump. As curdas denunciam o Estado Islâmico, as bombas na Síria, o perigo da guerra química no Iraque. As indígenas falam do genocídio provocado pelos que ocupam seus territórios, tomam suas águas, devastam e poluem tudo. Isso está aumentando no mundo interior; não há um país que não tenha relatado aqui uma experiência sofrida e que preveja que o pior está chegando. Então, procuramos formas de nos proteger. No fórum, lembramos a nós mesmas que vamos aos protestos, gritamos, enfrentamos os oponentes… Mas é preciso nos cuidar também. Vou citar uma frase de Angela Davis: “Cuidar da gente é um ato político”. A luta e a transformação exigem que estejamos inteiras e íntegras. Não se pode planejar um mundo melhor se a gente está pior. Cuidar é não deixar que o fascismo e a misoginia vençam. Essas são forças de destruir a gente a partir do corpo, da mente e da sensibilidade. Cuidar-se é também uma resposta a isso. Um ato revolucionário seu, como indivíduo, e ao mesmo tempo com a outra, de quem você se aproxima para interagir e deixar bem e confortável.

A Bahia carrega um simbolismo negro importante. Por isso foi escolhida para sediar o evento?
O 13º AWID veio para cá em reconhecimento às muitas lutas das mulheres negras baianas. O evento teria sido em maio, no Centro de Convenções de Salvador. Mas como o governador cancelou o contrato com o centro, e ele foi fechado, adiamos a data para que não saísse do Estado. A força negra na Bahia marca a presença e os esforços das negras em todo o país. 

Antes da abertura, ocorreu um fórum de mulheres negras. O que junta essas mulheres de diferentes realidades e países?  
Vieram 300. Elas concluem que o racismo circula pelo mundo. Pouco importa se na África, onde somos maioria, nos Estados Unidos, com minoria, no Reino Unido ou Caribe. O diagnóstico: o racismo é sempre duro, patriarcal, coloca um fardo muito maior nos ombros das mulheres negras, em completo desvalor. Ela é sempre a última da fila. Mas tem o outro lado: apesar das ideologias do mundo empurrarem a gente para baixo, também notamos que fazemos uma resistência importante em todos os cantos. Uma expressão óbvia foi sair de casa, cruzar fronteiras – a gente não é bem-vinda em país algum – e chegar ao Brasil para articular resistências sob uma perspectiva transnacional.

Elas relataram conquistas, como mudanças na legislação em suas nações ou maior participação nos governos e parlamentos? 
Tem países da América do Norte e Europa em que, apesar do racismo, a distribuição de renda se aproxima um pouco mais da justiça e da igualdade. Algumas africanas não viveram a pobreza. Outras, sim. Ouvimos coisas não tão boas: as sul-africanas comentaram que, apesar da nossa visão quase idílica do pós-apartheid, ele não foi favorável às mulheres negras. Foi mais generoso com as grandes empresas. Embora um grupo de homens negros tenha superado os obstáculos e chegado lá, o apartheid segue existindo para elas, que se queixam de que o sistema de desigualdade racial permanece e com brutalidade e violência altíssima. Mas tem um movimento estudantil vigoroso lá, ocupando as escolas, tentando criar um sistema educacional que corresponda à expectativa de inclusão. E há uma maior presença das mulheres no parlamento em países africanos como Uganda, Angola e África do Sul. Não só porque os homens se ocupam mais com as guerras civis e morrem. Mas porque eles fazem a guerra e as mulheres reconstroem o que é preciso. Phumzile Mlambo-Ngcuka fez reuniões com vários grupos, apresentando o compromisso da ONU Mulheres de criar estratégias de fortalecimento das negras. Para que elas conquistem maior acesso às estruturas que controlam os poderes das nações, não só pela via eleitoral.

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Todos os dias ocorreram discussões sobre a Internet e a comunicação, que estão sob o domínio dos homens. Saiu do fórum uma carta de princípios feministas para a web. O que conseguiram avançar?
Discutimos como a gente entra nisso, maneja as ferramentas e abandona o medo dessa tecnologia masculina e tão complicada. É fundamental para nosso trabalho de mobilização, para o diálogo e a aproximação. Falou-se muito sobre a insegurança na rede. Internet é como a rua. Que rua é totalmente tranquila para uma mulher? As que têm muito conhecimento tecnológico passaram informações de como se proteger dos ataques digitais, que crescem rapidamente. É preciso contra-atacar os sexistas, racistas, homofóbicos e transfóbicos, que estão cometendo crimes ali. Assim como fomos aprendendo a nos proteger da violência na família, no trabalho, na sociedade, devemos incorporar um jeito de lidar com a internet, sem a ingenuidade de achar que ali é o paraíso. Somos muito fiscalizadas nas redes. Temos que saber circular por ela sem deixar pistas, usando ferramentas que apagam rastros. 

Do fórum, participaram mulheres ameaçadas de morte. Quem são elas?  Líderes políticas?
São diferentes as situações e as atuações. Recebemos defensoras de direitos humanos que estão proibidas de falar de democracia e de feminismo. Caso das políticas do Egito, lideranças de países árabes, da América Central. Elas conseguiram viajar com dificuldade e precisam voltar, entrar, tocar a vida, as lutas. Em suas nações, muitas estão na cadeia, outras foram assassinadas. Então, lá não poderiam saber que elas estiveram nesse fórum. 

São as mulheres que têm o crachá amarrado por um cordão vermelho?
Sim, o cordão usado pela maioria das mulheres é verde. Elas podem ter suas identidades e ideias compartilhadas no Twitter, Facebook e outras mídias. O vermelho significa: “nenhuma foto”; “nenhuma divulgação daquela imagem ou nome”. Elas demandam maior segurança. Mozn Hassan, uma integrante do comitê de planejamento do fórum, nem pode vir à Bahia. Há dois meses foi proibida de deixar o seu país, o Egito. É de uma organização de defesa dos direitos das mulheres, que está sendo atacada e investigada pelo governo golpista de lá. Outra egípcia saiu da cadeia e disse aqui, na primeira plenária: “Nós não desejamos a prisão, mas não podemos ter medo dela”. Repressão e assassinatos estão acontecendo bastante. Eu soube que três trans foram mortas há dois dias (9/9), uma em Salvador. 

Há resultados práticos do fórum para mencionar?
Uma metodologia está sendo criada para que as pessoas possam desenvolver as ações refletidas aqui e que levem a um futuro de paz e de segurança. A AWID vai trabalhar para dar visibilidade global a essas ações. Inclusive com financiamento, do contrário as causas não se tornam realidade.

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De onde virão os recursos financeiros? 
Nos quatro dias do fórum, mais de 15 fundos que financiam mulheres se reuniram com grupos para conhecer seus projetos, entender suas demandas, dar orientações e estabelecer parcerias. Eles captam muito dinheiro e podem colaborar no empoderamento delas, que querem avançar e ajudar a emancipar outras. Há muito tempo autonomia financeira faz parte da nossa pauta. A pobreza está sempre entre as mulheres. Em alguns países mais do que outros. E vem piorando, por incrível que pareça. Estamos mais pobres no planeta todo. 

Há uma vertente que quer fazer um feminismo de centro ou apolítico, como se fosse possível. Que peso isso teve nas discussões? 
Feminismo tem que ser transformador. Mulheres imaginam um novo mundo. Não adianta querer fazer feminismo de direita ou de centro. Porque o que se quer é mudar. Quando a pessoa defende uma postura apartidária e apolítica, está reivindicando que o feminismo se renda ao fascismo e ao conservadorismo, que dominam a sociedade. Seria o mesmo que nos render à hegemonia contra a qual lutamos. No fórum foi consenso: não existe a pseudoneutralidade e o centrismo. O lugar da transformação é na contramão do que está posto. Fica à esquerda. Não no sentido de estar atrelada à uma legenda. Aqui temos gente de partido, fora de partido, gente que nem quer saber de Estado e das suas instituições. A certeza de todas é que falamos em transformação.

 

Vou citar uma frase de Angela Davis: ‘Cuidar da gente é um ato político’. A luta e a transformação exigem que estejamos inteiras e íntegras. Não se pode planejar um mundo melhor se a gente está pior. Cuidar é não deixar que o fascismo e a misoginia vençam. Essas são forças de destruir a gente a partir do corpo, da mente e da sensibilidade. Cuidar-se é também uma resposta a isso. Um ato revolucionário seu, como indivíduo, e ao mesmo tempo com a outra, de quem você se aproxima para interagir e para deixar bem e confortável. 

– Jurema Werneck 

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