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Monica Benício e a trajetória de amor e cumplicidade por Marielle Franco

A arquiteta deu esse relato a CLAUDIA um mês após o assassinato da parlamentar no Rio de Janeiro

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 jul 2020, 00h31 - Publicado em 14 abr 2018, 01h12
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  • Em um tamborim no chão do carro que Monica Tereza Azeredo Benicio dirige. Peço desculpas por ter pisado nele ao entrar e pergunto se é dela. “Deixo aí porque, quando o trânsito engarrafa, prefiro batucar a abrir o vidro e brigar com os motoristas”, me diz essa mulher de extrema leveza, que, embora esteja atravessando os mais amargos dos seus dias, consegue manter o ódio à distância.

    Arquiteta, 32 anos, nascida no Conjunto Esperança, uma das 16 favelas do Complexo da Maré, aos 18 apaixonou-se por Marielle Franco – a vereadora do PSOL brutalmente executada dia 14 de março no Rio de Janeiro. “Marielle mudou meu cronograma”, afirma. Na véspera da nossa conversa, Monica havia passado horas na polícia depondo no inquérito sobre o atentado que abalou o país e cujos matadores não foram presos até agora, um mês após o ocorrido.

    De lá, seguiu para o ato público inter-religioso na Cinelândia. Desde o assassinato de Vladimir Herzog pela ditadura militar, não se via uma celebração juntar multidão tão emocionada – todos gritavam o nome da parlamentar e do seu motorista, Anderson Gomes, morto no episódio.

    No dia seguinte, usou a tribuna da Câmara dos Deputados para dizer: “As autoridades brasileiras não devem só a mim a satisfação do que aconteceu com a minha mulher, porque isso não vai trazê-la de volta, mas devem ao mundo o respeito e a satisfação do que ocorreu nesse crime bárbaro”. Comento a força que ela descobre em si mesma, ela contrapõe. “Na verdade, ando muito atordoada. Ainda não acredito na morte de Marielle.” Quando recebeu a trágica notícia, faltavam quatro dias para inaugurar o jardinzinho da casa delas, na Tijuca.

    CLAUDIA: Por que escolheu a Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, na Maré, para esta entrevista?

    Monica Benicio: Aqui no pátio conheci Marielle, há 13 anos. Catequista desde menina, virou a tiazinha das crianças ensinando sobre Jesus. Eu tinha 18 anos, ela 25, e íamos com uma turma dessa igreja passar o Carnaval em Jaconé (Saquarema-RJ). Não havia quase nada para fazer naquela praia de água barrenta, e ocuparíamos uma casa com um banheiro só.

    Éramos 20 jovens pobres de sacanagem no feriado, misturando suco Tang num álcool qualquer. Menos Marielle, que não era de beber. Ultimamente, eu até a fazia tomar uma caipirinha, mas ela ia pondo gelo e mais gelo para diluir. Fiquei sentada nas malas, entediada, porque a van sairia às 6 e já eram 8 horas. Marielle estava atrasada. Tenho nitidamente a cena.

    Primeiro entrou Luyara (filha da vereadora), então com 5 anos, e veio na direção do bichinho de pelúcia que eu levava. Comecei a brincar com a garota no chão e logo apareceu Marielle. Levantei a cabeça e dei de cara com o sorrisão dela. Vi sua luz (chora)… Uma luz tão forte. Foi uma empatia imediata.

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    CLAUDIA: O namoro começou ali?

    Monica: Não, mas a gente se grudou. Passeávamos juntas descobrindo coisas em comum. Ela precisou voltar antes para trabalhar. Segui com Marielle e Luyara até a rodoviária e choramos muito na despedida, como se não pudéssemos viver longe. Meu Carnaval acabou, e eu soluçava de maneira inexplicável. Só saía para ligar para ela, do orelhão.

    Comecei o pré-vestibular no Ceasm (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré), no Morro do Timbau (na Maré), onde Marielle era secretária. Eu estava morando em Jacarepaguá. As aulas terminavam tarde da noite e, para voltar para casa, tinha de ir até a Linha Amarela – um pedaço longo e deserto – esperar o ônibus sozinha. Fui assaltada várias vezes e acabei me hospedando por muito tempo na casa da Marielle, que vivia com os pais.

    Não tínhamos histórico de relação com mulheres e não entendemos que aquele afeto era diferente de amizade. Não havia beijo, mas a necessidade do toque. Era quase uma agressão física. Brincando, aconteciam mordidas e apertões. A gente não sacava a outra ordem disso. Luyara ficava no quarto da avó. Conversávamos na parte de cima de uma bicama.

    Quando uma adormecia, a outra passava para a cama de baixo. Até que, um ano depois, rolou um beijo no meio de um toque habitual. Foi um susto. Perguntamos o que significava, se uma de nós já tinha desejado um beijo e como aquilo se desdobraria. Negamos tudo. “Foi um acidente, não vai se repetir.”

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    A decisão durou um dia. Experimentamos a relação sem contar a ninguém, num processo de vergonha, rejeição e medo das reações. Sete meses depois, felizes, decidimos falar. Amigas íntimas não demonstraram surpresa. Na igreja, os mais próximos foram na linha “Não está certo, não apoiamos”, mas não viraram as costas. Namorando comigo, Marielle parou de comungar e sentiu muito. Ninguém pediu; ela sabia que era uma regra.

    Monica Benicio
    Na Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, Monica relembra como conheceu Marielle (AF Rodrigues/CLAUDIA)

    CLAUDIA: Como as famílias de vocês encararam?

    Monica: Andar de mãos dadas era impensável, mas alguém viu a gente se beijando no Ceasm. Virou assunto na favela. No Orkut, a rede social da época, fizeram a comunidade “Monica sapatão”. Foi um desespero, ficamos vulneráveis. Não queríamos que as famílias descobrissem assim. Mais tarde, ao saberem, não houve o “sai da minha casa”, mas o “não fale comigo”.

    A família dela, que tem um cunho religioso mais forte, se mostrou mais agressiva com Mari. Imaginaram que a gente estava sendo “promíscua de propósito”. Houve ali um sentimento de traição. “Como assim? Vocês estão debaixo do meu teto, dormem aqui. Usam minha casa como local de encontros.” Ficou feio. Fez parecer uma coisa muito suja.

    Na favela ocorreu um agravante porque não tínhamos o estereótipo de mulher-macho. Os outros discriminam, mas justificam a chamada caminhoneira. Não entendem o amor entre mulheres que eles consideram femininas. A gente ouviu que era falta – vou usar um termo chulo – de um “peru grande”. Sofremos uma espécie de “estupro corretivo”.

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    O cara falava assim: “Vem cá que eu vou mostrar pras duas o que é um peru de verdade”. Eu tinha voltado a morar com minha família e, pouco depois, alugamos por 120 reais uma quitinete no Morro do Timbau – quase um esconderijo, longe dos julgamentos. A mãe dela seguia com a rejeição; então Marielle dava desculpas para passar uns dias comigo.

    CLAUDIA: Por que vocês romperam muitas vezes?

    Monica: Ela estava se formando em ciências sociais, precisava ganhar mais, tinha que dar conta da filha, sair de casa. As coisas andavam confusas, havia muito assédio moral e passamos a entrar em conflito. A gente se separava, vivia um romance com homens na esperança de que eles fizessem uma esquecer a outra. Era uma tentativa de ser “normal” e feliz.

    Não dava certo, a gente morria de ciúme, reatava e rompia de novo. Virou um desgaste, até que pusemos um fim. Tínhamos feito em 2006 a primeira campanha vitoriosa do Freixo (deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL). Marielle foi trabalhar com ele. Então, as meninas que só conheciam a favela foram descobrir duas vertentes de mundo.

    Eu entrei na PUC (Pontifícia Universidade Católica), tive acesso à instigante estrutura da Zona Sul carioca, e ela abraçou a política com um parlamentar que logo se tornou uma potência. No gabinete, desenvolveu a causa dos direitos humanos, que já era a sua bandeira. A gente foi se afastando. Houve um período, cerca de um ano, sem nenhuma mensagem. Surgiu a oportunidade de ser vereadora, e ela me ligou pedindo opinião.

    CLAUDIA: É verdade que Marielle pensou em não se candidatar?

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    Monica: Como boa leonina, adorava holofotes (rindo)! Não acordou um dia dizendo: “Acho que serei boa candidata”. Era uma presença tão grande e forte, dando a cara a tapa, que olharam e concluíram que só restava isso. Marielle gostou da ideia de ter um palco para brilhar. Só que também tinha medo.

    CLAUDIA: Que opinião você deu a ela sobre disputar a eleição?

    Monica: Ela apresentou os prós e os contras, mas estava na cara que queria aquilo. Falei: “Se eu tiver que opinar, digo não. Conheço a Marielle fora da personagem de armadura de aço, a que vai chegar em casa frágil.

    A Mari que fará um puta debate sério, enfrentará a todos e depois irá chorar no banheiro. Então, eu, Monica, sou contra. Já a Monica eleitora vota em você. Não tenho dúvidas de que, com sua capacidade intelectual e sua visão sobre os pobres, fará um trabalho sensacional”. Mas me lembro também de ter mostrado minha preocupação com a segurança.

    Nunca me passou pela cabeça que iriam matá-la. Ressaltei a segurança emocional. Marielle desabava diante de algumas questões. “Está na terapia?”, perguntei. “Faz duas sessões por semana e toca o barco. Vamos ver no que vai dar.”

    CLAUDIA: Que questões ela apresentava?

    Monica: Marielle era na vida pessoal muito diferente da leoa que as pessoas estão hoje aplaudindo na rua. Uma mulher surreal. Saía da porta de casa e ganhava 5 metros. Podia vir qualquer poderoso do mundo que ela não tirava o dedo da cara. Não parava de gritar, espernear e bater. Nada podia conter Marielle.

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    Só o que eles fizeram. Na intimidade, queria cuidados. E acolhia também. Combatia tanta coisa pesada e suja do lado de fora que tínhamos um acordo. Em casa, uma espécie de santuário, não se tocava em política. Sempre tinha velas acesas, flores, sal grosso, incensos. E janta pronta, café no dia seguinte. Eu separava a roupa que ela ia vestir.

    Marielle pegava uma gripe, eu fazia a sopa, o chá e, depois, dava a ordem: “Meu amor, levanta, você não vai morrer de gripe”. Ela se permitia ocupar esse lugar de fragilidade porque na política não podia fazer isso. Era harmonioso, sabe? Eu não tenho do que reclamar. Aliás, me queixava das agendas – ela era uma máquina de segunda a segunda, das 8 da manhã às 11 da noite. Eu dava uma controlada.

    “Olha, você tem agenda pra cumprir como mulher e mãe; precisa equilibrar esse negócio.” E ameaçava ir sozinha aos lugares de que ela gostava, como o cinema. A Forma da Água foi o último filme que vimos. Foi difícil a adaptação, Marielle era onipresente nos eventos. Acertamos que, no fim de semana, o sábado ou o domingo seria da nossa família.

    CLAUDIA: Quando passaram a viver como casal?

    Monica: Antes da campanha de 2016 começar, eu estava casada, ela também. Terminamos os compromissos; eu voltei a morar na Maré. Marielle passava alguns dias comigo, outros com Luyara.

    Depois da eleição, por questão de segurança, achamos melhor sair de lá. Ela não havia contado com o apoio da suprema corte mareense – não tinha autorização do tráfico. Se firmasse aliança com ele, passaria a dever favores. Não era esse o tipo de política que fazíamos. Eu colei adesivos dela no carro, bandeira na janela, pedi votos aos vizinhos – o que não poderia ter feito.

    Havia uma boca de fumo na frente de casa, com homens altamente armados. Depois da eleição, eles me chamavam de primeira-dama. Eu passava algumas noites sozinha. Podia vir dali qualquer tipo de pedido, e não atender seria um risco. Decidimos pegar Luyara, montar uma casa e virar uma família.

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    CLAUDIA: Como é a relação com Luyara?

    Monica: Ela nos apoiou desde pequena, sem saber que me tornaria sua madrasta. Quando ainda morava na casa da mãe de Marielle, eu acordava Luyara, dava banho, alimentava, levava para a praia, a escola, ia à reunião de pais.

    CLAUDIA: Qual era a dinâmica da família de vocês?

    Monica: Luyara participou bem do ritmo mais light da casa. Eu colocava luz baixinha para acalmar, ligava um jazz, ela curtia. Se dependesse da Marielle, a casa acordava com funk. Na praia, adoro esturricar ao sol. Ela dormia babando na cadeira, à sombra. A gente achava que arruda na porta e banho de cachoeira limpavam energia ruim.

    Marielle aceitava a orientação de pessoas da umbanda. Era até uma tentativa de proteger a vida pública. Entrava em casa e eu sabia se o dia tinha sido uma merda, razoável ou calmo. Já não havia mais amarras à religião, e sim religiosidade e comunhão. Ela ia à missa, eu ao centro espírita kardecista. Meu cardápio era um castigo para ela, que antes avançava na marmita dos amigos.

    Não tinha problemas com peso, embora comesse errado. Comprei uma balança e pesava as porções que comeria. “Você vai me matar de fome!”, reclamava. Foi bom. Falam que na minha administração ela ficou mais bonita, serena, com a juba de leoa mais bacana. Marielle retribuía. Carinhosa, me mimava como se eu fosse criança. E me deixou Maddox, o vira-lata que me acompanha.

    monica-e-marielle
    (Arquivo Pessoal/CLAUDIA)

    CLAUDIA: Vocês planejavam casar, ter filhos?

    Monica: Seria um casamento no civil em setembro. Estávamos poupando dinheiro e vendo preço de bufês. Falávamos de filhos e vinham as dúvidas. Quem ia gerar? Eu não tinha a menor vontade. E ela brincava, dizia que estava meio velha para isso. Mas ponderava que, se fosse um desejo meu ou representasse frustração, ela encarava.

    CLAUDIA: Você será chamada para palestras, para encabeçar lutas. Está preparada?

    Monica: Não gosto da linha de frente. E não tenho a intenção de virar a nova Marielle, a substituta. Isso ninguém conseguirá. Mas, se necessário, assumo a briga. Não diminuirão o que foi, é e ainda será Marielle. Pouco contribuí com a investigação.

    Expliquei ao delegado que ela não sofria ameaças. Porém, farei pressão pela punição aos culpados. Não precisa ser só o meu rosto; posso dar meu sangue também. Nada vai parar o que ela começou.

    CLAUDIA: Chamar você de viúva incomoda?

    Monica: Parece novela mexicana. Mas não me incomoda. Nossa relação era privada, não invisível como escreveram. Em eventos públicos, ela me apresentava como sua mulher. Se me chamar de viúva ajudar a legitimar a condição de companheira de outra mulher, tudo bem.

    CLAUDIA: Casais homoafetivos ainda enfrentam problemas com pensão e falta de direitos…

    Monica: Deixei o trabalho para me dedicar ao mestrado em urbanismo (Sua pesquisa é sobre a influência da violência nas relações com os espaços públicos. Uma forma de entender como alguém criado na favela não se apropria ou não cuida da cidade por ter ouvido que aquilo não lhe pertence; o belo não pode ser seu.) Éramos os opostos complementares.   

    O que Mari tinha de zona, eu tenho de organização. Tudo meu funciona com planilhas. Eu gerenciava a casa, dizia quais eram as contas e os compromissos; ela repassava os valores. Não sei de direitos nessa situação, mas de desejo. A única coisa que eu quero de volta é a Marielle (chorando). E isso eu não vou ter pelo resto da vida.

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