Em 2017, o território da infância e juventude de Marielle Franco, a vereadora executada aos 38 anos no Rio de Janeiro, foi cenário de 108 eventos cravejados de projéteis. Em 41 deles, as armas de fogo foram disparadas em operações policiais. Outros 41 decorreram de confrontos entre facções do crime organizado e 26 se deram fora de embates, promovidos por um único grupo de traficantes.
O sangue correu pelas ruelas das 16 favelas do Complexo da Maré, na Zona Norte, e o povo do local chorou sobre 42 corpos, além de cuidar de 57 feridos, segundo boletim da instituição Redes da Maré. O mesmo povo cria alternativas de ajuda e sobrevivência.
Marielle era fruto disso e também protagonista da resistência que se faz lá. Incomodou a velha política, a polícia, a milícia, o tráfico. Levou as urgências dos 140 mil moradores para a Câmara Municipal, onde se tornou uma voz temida e respeitada. O assassinato planejado contra ela não pôs fim a seu legado.
Marielles se multiplicam na comunidade tensa e violenta com as bandeiras que a vereadora levantou desde a meninice. Não foi difícil achar as mulheres que revelamos aqui. Há vários nomes fortes, e suas ações renovam a esperança.
Embora abaladas com a perda da líder e, sim, com medo de serem mortas também, seguem lutando. O Estado brasileiro tem obrigação de protegê-las. Não pode permitir nenhuma Marielle a menos. Elas fariam muita falta ao país.
NA LUTA LGBT
Gilmara Cunha
As tribos precisam dialogar. É hora de os movimentos populares se unirem. Nós vamos perder muito tempo e força se continuarmos lutando cada um por seu umbigo ou pelas pautas específicas do seu grupo.” Esse é o caminho apontado por Gilmara Cunha, 33 anos, para suprir a ausência da vereadora morta. “Mesmo Marielle, que tinha vários segmentos da favela na base do seu mandato, batia de frente sozinha. Foi uma porta-voz solitária, entre políticos brancos e héteros”, diz.
Presidente do Conexão G, instituição que trabalha com a população LGBT na Maré, ela defende que as lideranças do lugar se juntem para sensibilizar os moradores no enfrentamento do descaso do Estado, do poderio do narcotráfico e da influência das linhas evangélicas que condenam qualquer comportamento diferente do conservador, em especial o dos gays, lésbicas e trans.
Gilmara já vinha atuando na aglutinação de pessoas e na transversalidade. “A questão LGBT é só mais uma demanda”, observa. Está tudo interligado, porque, antes da discussão sobre sexualidade, eu enfrento o problema da empregabilidade, da escolaridade precária, do saneamento básico inexistente e da segurança pública, que alimenta a guerra como única forma de combater a violência do tráfico e da milícia.”
Para ela, as táticas bélicas só fazem crescer o crime e o pânico. “Aqui tem escola e muitas ONGs funcionando. Para que entrar atirando?” Nas eleições, conta a presidente, tanques do Exército invadem a Maré. “Ora, as pessoas apenas votarão. Não vão sequestrar as urnas nem adulterar os resultados.”
A Conexão G nasceu há 11 anos desacreditada. “Diziam que o nosso espaço seria o da promiscuidade”, lembra. Atualmente, realiza uma semana de atividades e debates sobre políticas públicas e encerra esse período no dia da culminância gay. Acontece uma feira de saúde, com barracas onde qualquer pessoa pode verificar a pressão, tirar dúvidas sobre prevenção de doenças, ter acesso a preservativos… E shows com músicos de pagode, drags, grupos que praticam boxe e capoeira. O grande final é uma parada gay. “A comunidade foi preparada para recebê-la”, diz.
O medo não paralisa
Mesmo assim, não tem sido fácil manter a agenda da Conexão G. “Somos a primeira organização LGBT instalada em um território dominado pelo tráfico, que é machista, decide, impera. Isso é de uma ousadia enorme.” Lembrando que na Maré há uma grande concentração de igrejas conservadoras, Gilmara explica que a lógica delas impregnou o narcotráfico. “Ele tolera um gay se estiver vestido de homem”, afirma. Na favela, a situação é sempre pior, porque não há notificação de assassinatos de homossexuais. “Aqui a metodologia é outra. Matam, picam e jogam fora o corpo do gay. Ninguém sabe se ele morreu ou sumiu.”
A audácia é, de fato, um traço forte na personalidade de Gilmara, que foi coroinha, frade, péssima aluna e se balizava pela indisciplina. Hoje, cursando psicologia, acredita que um líder da Maré está sempre na mira dos adversários e deve se preparar. Ela já sofreu ameaças de morte e ouviu que veado precisa ser metralhado em público. “Perguntam por que não me candidato a vereadora. Eu seria um alvo fácil. Uma trans não chegaria à Câmara neste momento”, explica. “Vou continuar agindo na base. Tenho medo, mas ele não me paralisa.”
NÃO MATEM NOSSOS FILHOS
Irone Santiago
Na tarde de 6 de fevereiro passado, Jeremias Moraes da Silva, 13 anos, bom de bola, voltava do futebol. Não teve aula. Sua escola e todas as outras da Maré haviam sido fechadas porque uma ação policial contra traficantes fazia projéteis se cruzarem por todo lado desde a madrugada. Em 2017, ele perdeu, pelo mesmo motivo, 35 dias letivos.
Sua família, com cinco crianças, também por força dessa guerra encontrou os postos de saúde com as portas cerradas algumas vezes – eles não funcionaram em 45 dias ao longo do ano. Tudo paralisa quando o Estado, sem sucesso, enfrenta o crime organizado. Uma bala perdida atravessou e matou Jeremias. Wania, a mãe, desmaiou no enterro do menino. Ela recebeu, entre muitas, a visita de Irone Santiago, 53 anos.
A mulher, de estatura baixa e cabelos clareados, assegurou a Wania que ela não estava sozinha. “Digo à mãe que a ferida dela passa a ser minha também. A dor de uma é de todas”, conta ela, que desde 2015 luta com mulheres cujos filhos foram atingidos no Complexo. “Eu as abraço e mostro o caminho para buscar justiça”, diz. “O genocídio que o Estado pratica contra jovens negros e pobres tem que acabar.”
Por 14 meses, entre 2014 e 2015, as Forças Armadas ocuparam a Maré com 2,5 mil homens. Um deles abriu fogo contra o carro em que o filho de Irone voltava para casa com amigos. Vitor, então com 29 anos, ficou entre a vida e a morte. Ela não sabia por onde começar. Depois de passar quatro meses morando no hospital para salvá-lo, começou a percorrer repartições públicas, bateu em porta errada, aprendeu sozinha a chegar ao inquérito, ao Ministério Público, ao juiz.
Descobriu, por teimosia, que o filho figurava como testemunha, e não como vítima dos projéteis disparados pelo fuzil 762 de um cabo do Exército, que atingiram a perna direita dele, a esquerda, que foi amputada, o pulmão e a coluna. Funcionário de uma empresa que produz próteses ortopédicas, Vitor ficou paraplégico, não trabalha mais e quase não sai de casa. A escada estreita e íngreme que leva à rua não foi feita para uma cadeira de rodas.
A história de Vitor e Irone chamou a atenção de instituições como a Anistia Internacional e a Justiça Global, virou documentário e reportagens, viralizou na iternet. Irone já deu entrevistas para TVs do mundo todo, incluindo a Al Jazira, que noticia guerras no Oriente Médio. Ela aguarda a sentença de uma ação civil de compensação de danos morais para Vitor, a continuidade de uma pensão (de 1,2 mil reais, que está atrasada há dois meses) e o fornecimento de material médico, entre outras coisas que possam dar a ele dignidade para viver e voltar a trabalhar.
“Minha casa é lugar de proteção. Respeite”
Irone se tornou referência. Atua no eixo de segurança pública da Redes da Maré. “As pessoas desconhecem os seus direitos, e eu passei a ensiná-las”, explica. “Na Maré, a polícia não age como na Zona Sul ou outros bairros da cidade. Entra arrebentando.” Em visita a moradores, a ex-costureira entrega um adesivo que deve ficar colado na porta e onde se lê: “Minha casa é meu lugar de aconchego e proteção. Não pode ser invadida. Respeite isso”. Um folheto mostra “o que vale em uma abordagem policial”.
Por exemplo, a entrada de um agente em casa só é legal se tiver autorização do juiz, por meio de um mandado. Ou em caso de flagrante delito, de desastre e para prestar socorro. A pequena cartilha também ensina que o policial não pode ofender, pedir para a pessoa tirar a roupa, deter quem está sem identidade, revistar o lugar sem a presença do dono. “Eu sugiro ainda às mães que elas lutem para não morrer de amargura ou revolta.”
NEM UM PASSO ATRÁS
Andreza Jorge
Por coincidência ou sincronicidade, minutos antes de ouvir na TV a notícia da execução da vereadora, o assunto na casa de Andreza Jorge, 29 anos, era exatamente Marielle. Ela comentava com a mãe que as coisas estavam começando a melhorar na vida das mulheres negras, e a parlamentar tinha parte nisso. Formada em dança, mestranda em relações étnico-raciais e coordenadora pedagógica da Casas das Mulheres da Maré, Andreza tem uma criança de 3 anos, a Alice, e se lembra de ter pronunciado na conversa daquela noite: “Minha filha vai viver um futuro diferente. Alice já tem uma representatividade, uma negra na política”. Desabou com o anúncio da morte estúpida da líder, da amiga.
A família de Andreza sempre esteve engajada na militância. O pai foi assassinado; o irmão mais velho, sociólogo, trabalha na luta pela paz no Rio de Janeiro; ela, aos 14 anos, se fez uma voz na defesa das mulheres. “A militante esquece o autocuidado, vive para os outros, discute o tempo todo o coletivo. Com o assassinato de Mari, eu cheguei a pensar em desistir”, conta. “Muitas vezes não temos a dimensão do ódio que está sendo gerado contra nós. Fiquei me perguntando: ‘Será que vale a pena? Se chegarmos à esfera do poder, como ela, vão nos matar também’.”
Andreza se recolheu. Não conseguiu ir ao ato público gigantesco que aconteceu no dia do enterro. Então, lembrou de uma empregada doméstica, da comunidade, que ensinava sempre às suas meninas o lugar delas: a cozinha. “Marielle mostrou o contrário. Apontou até onde podemos ir e como fazemos para subir muito além”, diz. A cria da Maré, menciona Andreza, teve votos em todas as urnas do Rio, conquistou não só os da favela como eleitores dos bairros de classe média e alta. “E não existe só a via eleitoral”, pondera. “Se uma mulher briga para ter água em casa, luz na rua escura e para que ela não seja morta, isso é política.”
Mesmo arrasada, se levantou e consolou Alice, que chorava com ela. “Não voltaremos para a subalternidade. Marielle não voltou”, explica na entrevista. “Vamos seguir mudando as coisas por aqui”, afirma. “A alegria da maioria das mulheres da Maré ainda é ver o filho longe do crime, trabalhando de carteira assinada, e a filha casada com um bom homem. Isso é muito pouco.” A morte de Marielle atiçou o formigueiro, ela diz. “Nós não vamos recuar nem um centímetro. Temos que aumentar a autoestima das meninas, ampliar o sistema de cotas para que estudem, conquistem renda e autonomia.”
Arte, dança e poder
A rotina dela está ligada a isso. Na Casa das Mulheres, há cursos profissionalizantes de gastronomia e de auxiliar de cabeleireira. No prédio, no coração da favela Nova Holanda, funciona o bufê Maré de Sabores. Às 3 da tarde, exalava dos fornos o cheiro quente de pães, bolos e tortas que animariam um casamento no dia seguinte. O serviço ainda atende cafés de museus cariocas e eventos corporativos.
Andreza responde pelas aulas de gênero, raça e cidadania. Em oficinas lúdicas, ensina às crianças negras como levantar a cabeça, enfrentar os problemas e querer mais da vida. Fora dali desenvolve o projeto Mulheres ao Vento. É quando ela junta suas maiores paixões – arte, dança e poder. Assinou a coreografia e a direção de dois espetáculos do grupo que criou. Expressão de sentimento e encorajamento para mudar são os pilares do trabalho. E, claro, ele inclui a defesa dos direitos humanos. “Acho um absurdo! A gente ainda precisa justificar por que luta por direitos humanos. Ora, somos a camada que foi e continua sendo desumanizada todos os dias.”
GESTAR NOVAS LÍDERES
Renata da Silva Souza
Esperava-se que Marielle se elegesse, e muito bem, com 15 mil votos. Das urnas, saltou para a Câmara Municipal com impressionantes 46,5 mil. Em 13 meses de mandato, apresentou 16 projetos de lei, articulando a tríade negritude, mulher e favela. Uma das propostas criaria os “espaços coruja” para as crianças ficarem à noite, sob orientação pedagógica, enquanto as mães trabalhassem ou estudassem. Outra humanizaria o aborto legal. Servidores públicos seriam capacitados para receber a mulher com respeito e, depois, acompanhá-la no procedimento médico de interrupção da gravidez.
No escritório da vereadora, havia uma cota para homens. Eram 6 para 15 mulheres. Uma delas é a jornalista Renata da Silva Souza, 35 anos, doutora em comunicação e cultura, chefe de gabinete, peça-chave do mandato da parlamentar. Elas se aproximaram no pré-vestibular comunitário. Renata era aluna, a amiga, secretária da instituição. Depois, fazendo ciências sociais na Pontifícia Universidade Católica, Marielle conseguiu bolsa de 100% para Renata quando ela passou no vestibular.
“Marielle intermediava, na PUC, os pedidos de bolsa para o pessoal da favela”, lembra. Mas ela entrou para a história do seu povo por esta razão: “Falou alto no espaço de grande visibilidade que os homens brancos, de gravata e endinheirados tinham como exclusividade deles”, acredita a jornalista. “Não daria para se expressar daquela maneira sem incomodar.”
Renata juntou-se a Marielle nas discussões sobre feminismo. Depois passaram a discutir segurança. Em 2006, obtiveram a primeira vitória quando entrou na Maré o blindado do Bope, a tropa de elite da polícia. De longe elas avistaram seu emblema, uma caveira. “Do alto-falante do Caveirão, se ouvia a frase ‘Eu vim buscar a sua alma’ ”, recorda. Elas participaram de uma campanha, que envolveu a ONG Anistia Internacional, para mostrar que o blindado e os policiais que ele carregava agiam de forma violenta e violadora de direitos. Conseguiram segurar um pouco a fúria do Caveirão e o alto-falante foi banido. No mesmo ano, ajudaram a eleger o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL).
No dia do pleito, com a favela fervendo de gente indo e vindo, ocorreu uma tragédia. “Na perseguição a uma moto, com tiros voando, policiais mataram Renan, 3 anos.” Marielle puxou um cordão de braços dados. “Cercamos o batalhão da PM nas imediações. Ficamos entre os moradores revoltados, que levavam paus e pedras, e os PMs armados”, relata. “Se o povo invadisse seria uma carnificina.” Estava claro que a insegurança pública, sob a ótica da favela, devia seguir para a Assembleia Legislativa. Então, ambas foram trabalhar no gabinete de Freixo.
Tarefa árdua
Quando os quatro tiros acertaram a cabeça da vereadora, a base discutia qual seria o papel dela nas eleições de outubro. Poderia ser vice de Tarcísio Motta (PSOL), candidato ao governo. Fora da disputa, atuaria como principal cabo eleitoral ou, ideia mais ousada, arriscaria uma vaga no Senado. “Jamais imaginaria que neste momento estariam me perguntando quem vai preencher o vazio deixado por Marielle”, revela Renata. “Nem tive tempo de chorar, menos ainda de pensar no futuro.” Pode não parecer sensato falar em substituição em pleno luto. Mas política é também urgência.
Aprontar uma mulher para o poder requer tempo e muita transpiração. “Talvez seja prematuro apontar uma substituta”, pondera. “O maior legado é o despertar de milhares de Marielles que dormiam. A chefe de gabinete reconhece que será tarefa árdua achar nomes. Mas está atenta. “Temos que farejar nos movimentos. O que me inspira é ajudar a gestar mulheres que estejam dispostas a ser mais uma Marielle, com todas as lutas que ela tocou tão brilhantemente.”
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