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De catadora de latinha a empreendedora, a emocionante história de Vanessa

"Digo todos os dias que não pode se esquecer de onde viemos. Filha de mãe pobre e preta, a carta de alforria é o estudo. E a vida vai cobrar isso”

Por Edição: Lia Rizzo
Atualizado em 24 dez 2018, 14h46 - Publicado em 24 dez 2018, 14h46
 (Filipe Redondo/CLAUDIA)
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“Venho de família simples, mas fui criada por uma mulher de fibra. Minha mãe, mineira, mudou-se para São Paulo aos 15 anos. Ela e o namorado, apaixonados, se casaram dois anos depois. Fui a segunda dos quatro filhos que tiveram. Meu pai nunca se adaptou à vida modesta que levávamos e nos abandonou quando eu tinha 4 anos. Fomos, então, viver com minha avó, que morava em uma favela em Diadema, na Grande São Paulo, para que mamãe pudesse trabalhar. Foi meu primeiro contato com a pobreza extrema.

Meus avós nos acolheram da melhor forma que podiam. Contudo, o barraco de madeira em que vivíamos era frágil. Jornais e revistas velhos remendavam as frestas, numa tentativa de amenizar o vento frio. Porém, me lembro de ficar aterrorizada a cada tempestade. Nessas ocasiões, o córrego sujo que passava ali perto transbordava e inundava a casa. Minha mãe reconstruía tudo sozinha. O sonho dela era nos oferecer um lugar melhor, mas as economias tinham sempre o mesmo destino: comprar em lojas de usados o que havíamos perdido.

Quando ela finalmente conseguiu juntar dinheiro, nos mudamos para o Capão Redondo, na periferia de São Paulo. Ali, as enchentes não seriam mais uma ameaça. Por outro lado, a região era extremamente violenta. E não passamos imunes aos efeitos colaterais de viver numa comunidade assim.

Aos 13 anos, fui trabalhar como office girl. Contrariada, minha mãe me fez prometer que conciliaria a atividade com os estudos. Eu queria me formar, ter possibilidades diferentes, mas acabei deixando a escola. Só voltei para a sala de aula aos 16 anos, depois de enterrar meu irmão caçula. Até então um garoto pacato e trabalhador, ele se envolveu com más companhias. Convencido a participar de um roubo, teve ali sua primeira e última experiência como ladrão. Mamãe nunca se recuperou. Mergulhou na depressão profunda e parou de trabalhar. No dia do enterro, porém, em um momento de lucidez, indagou se aquele era o futuro que eu desejava para mim.

Diante da negativa, insistiu para que eu completasse minha formação. Fiz matrícula em um supletivo no dia seguinte. Ao fim do curso, entrei na faculdade de psicologia. Estava convicta de que iria virar o jogo, sair daquela vida dura. Errei. Nunca consegui o diploma. Não passei em uma universidade pública e ficou impossível arcar com as mensalidades sustentando a casa e pagando o convênio médico para mamãe. Para completar, engravidei da minha primeira filha, Marcela.

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Antes de largar a faculdade, contudo, descobri um novo horizonte, o mercado de promoção de eventos. Apesar de ser baixinha, eu tinha boa aparência, algo fundamental para o ofício. Trabalhei em feiras e supermercados oferecendo degustação de produtos. Numa dessas ocasiões, conheci Karim, um francês, que foi meu grande e único amor. Ele fazia parte da comitiva de estrangeiros que tinha ido conhecer a loja onde eu estava naquele dia. Sinalizou que queria provar o suco que eu servia.

Senti um arrepio imediato, mas disfarcei e, em seguida, saí para almoçar. Um enorme buquê de flores me esperava na volta. No cartão, um número de telefone e uma mensagem: ‘Seria o homem mais feliz do mundo se você me desse a chance de te conhecer melhor’. Logo nos casamos. Karim aceitou Marcela como se fosse sua filha e me deu a nossa caçulinha, Marjorie. Ele nos proporcionou um verdadeiro conto de fadas com a tranquilidade que eu desconhecia.

A trégua do destino durou pouco. Comecei a ver sinais de que a vida me preparava outra reviravolta quando, alguns anos mais tarde, mamãe faleceu. Foi um baque. Meu irmão mais velho era depressivo e muito apegado a ela. Nessa época, Karim e eu nos mudamos para um bairro nobre em outro extremo da cidade na tentativa de aliviar a dor da minha perda. Um ano e um dia após a partida de minha mãe, meu irmão se matou. Deixou cinco filhos e um bilhete dizendo que não suportava continuar sozinho.

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Marjorie tinha 1 aninho e Marcela 10 anos quando Karim passou mal em um parque. Estranhei, ele era um homem forte. O médico que o atendeu não cravou um diagnóstico, mas disse ser grave. Decidimos que meu marido voltaria à França para se tratar. Eu ficaria com as meninas para evitar que elas percebessem que algo estava errado. E então, dez anos depois de me casar, fiquei viúva.

O luto não teve espaço. Com as meninas para criar, arrumei dois empregos. Pela manhã, numa empresa de faxina. De tarde e à noitinha, em um restaurante. Era Marcela quem, aos 14 anos, cuidava de Marjorie, que tinha 4. Nosso padrão de vida caiu, mas consegui manter as contas em dia e comprar comida. Tempos depois, fui contratada por um instituto de pesquisas telefônicas. Até que, sem qualquer aviso, a companhia fechou. Fiquei sem emprego e salário, perdi o chão. Voltei para o Capão para morarmos, de favor, na casa da minha irmã.

Não conseguia trabalho de jeito nenhum, apesar de procurar diariamente. Chegamos a passar fome. Desesperada, decidi acabar com minha vida. Fui a um viaduto para me jogar. A lembrança das meninas me fez desistir. Chorava sentada em uma praça quando vi uma senhora catando latinhas em uma lixeira. Resolvi fazer o mesmo. Passei um ano e meio recolhendo material reciclável.

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Com o tempo, descobri o que dava mais dinheiro e só ia atrás disso. Em uma obra repleta de entulhos rentáveis, sofri o acidente que me tirou mais essa possibilidade. Uma barra de ferro pesada se soltou da minha mão, atingindo meu rosto. O impacto me derrubou. Perdi todos os dentes da frente, tive uma lesão cervical que quase me deixou inválida e fiquei acamada por um mês.

Um dia, subi à laje de casa para chorar às escondidas. O dinheiro estava acabando de novo e minhas forças também. Foi então que vi ali, guardadas em sacolas, roupas, sapatos, bolsas… A herança do tempo que vivi com Karim. Tive aquilo que chamam de insight. Resolvi montar um bazar para vender aquelas peças para a comunidade. Arrumei um cômodo da casa, recolhi móveis usados pelas ruas dos arredores para decorar o espaço e, com a ajuda de minhas filhas, inaugurei o Mon Petit. A faixa feita por nós mesmas anunciava a empreitada para a vizinhança. Nas primeiras horas, não apareceu ninguém. Escapei para os fundos querendo chorar; não aguentaria mais essa decepção.

De repente, a loja começou a encher. No fim do dia, tínhamos acumulado uma quantia inimaginável. Fechei mais cedo e levei as meninas ao mercado, algo que nem lembrava quando havia feito pela última vez. Naquela noite, comemos muito, tudo misturado. Tivemos até dor de barriga. Desde então, o bazar nos emprega e nos sustenta. Minha sobrinha também trabalha conosco. Recebemos doações de coisas para vender. Hoje estou feliz e em paz. Apesar de tudo, gosto de olhar para minha história e meus aprendizados e de ser exemplo para minhas filhas. Marjorie se mostra uma empreendedora nata. Marcela carrega minha força de trabalho. Está grávida e em breve serei avó. Não era o que eu esperava para ela. Por isso, exigi que termine os estudos e, só depois, tenha sua vida independente. Digo todos os dias que não pode se esquecer de onde viemos. Filha de mãe pobre e preta, a carta de alforria é o estudo. E a vida vai cobrar isso.”

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