Em pleno século 21, com uma luta da sociedade pela liberdade de escolha e garantia do direito das mulheres, planos de saúde no Brasil têm exigido que usuárias casadas tenham a permissão de seus maridos para disporem do acesso ao método de contracepção de Dispositivo Intrauterino, o DIU.
Ainda que retrógrado, este é o posicionamento de pelo menos três cooperativas da seguradora Unimed: João Monlevade e Divinópolis, ambas em Minas Gerais, e Ourinhos, no Interior de São Paulo. Ao todo, as unidades citadas atendem pacientes de mais de 50 cidades em seus respectivos estados.
A informação em questão foi obtida por meio do jornal Folha de S.Paulo, que em processo de apuração contatou anonimamente as três seguradoras via telefone para entender a cláusula contida no Termo de Consentimento para utilização do contraceptivo. A central de atendimento de todas unidades assegurou a veracidade desta exigência.
Após o contato da Folha, as unidades de Divinópolis e Ourinhos abandonaram a ordem, como informado pela assessoria de imprensa. Já a cooperativa de João Monlevade, mesmo com a confirmação da central, negou que exige o consentimento, dizendo que apenas recomenda que o casal combine junto a decisão, por isso existe o campo de assinatura do cônjuge no termo.
Outras unidades da Unimed também exigiram por um tempo a assinatura do marido, mas alteraram o protocolo depois de um tempo. A Sul Capixaba, que atende 30 cidades no Espírito Santo, foi uma delas.
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Em nota, a Unimed Brasil, que representa o sistema nacional do convênio, disse que a empresa não exige assinatura ou consentimento do marido para inserção do DIU em mulheres casadas. Segundo eles, o preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido serve apenas para a paciente afirmar que foi amplamente orientada antes de fazer o procedimento, que é assinado por ela e pelo médico.
Raiz do problema
Até 1962, mulheres só poderiam trabalhar com a permissão do cônjuge, decisão que poderia ser mudada a qualquer momento, de acordo com o Código Civil de 1916. Medidas como essa, que envolviam o consentimento do homem, só tiveram fim com a Constituição de 1988, quando foi promulgada a lei a igualdade de deveres e direitos entre homens e mulheres.
No entanto, resquícios do Código Civil de 1916 persistem nos dias de hoje. As empresas de saúde tentaram justificar a autorização dos parceiros por meio da Lei 9.263, de 1996, que defende o planejamento familiar. O texto da legislação exige a autorização do marido ou da esposa em caso de laqueadura tubária e vasectomia, que são métodos contraceptivos definitivos.
A norma prevê o consentimento do casal apenas para esterilização. “Entretanto, neste caso, não se trata de esterilização, mas de método contraceptivo reversível, portanto a imposição da UNIMED não tem amparo legal”, afirma a advogada Juliana de Almeida Valente, especialista em atendimento à mulher em situação de violência e membra da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP.
Juliana lembra que as normas da época equiparavam mulheres a menores de idade e pessoas com deficiência intelectual. “A lei nos definia como relativamente incapazes, logo não podíamos realizar atos da vida civil sem assistência ou ratificação do cônjuge, como ter uma profissão e ajuizar uma ação judicial, por exemplo”, explica.
Em 1994, o Brasil ratificou sem reservas a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, realizada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1974. O tratado garante o direito de tomar decisões sobre a reprodução e a utilização de métodos contraceptivos sem discriminação, coerção ou violência.
A imposição de controle a liberdade, a escolha e ao corpo da mulher já não comporta mais a sociedade atual e a dinâmica familiar. Essa lei tem 25 anos, de lá pra cá muita coisa mudou, as leis devem caminhar junto com a sociedade
Juliana Valente
“Além de estar em desacordo com compromissos internacionais aos quais o Brasil é signatário, tal exposição e necessidade de consentimento do cônjuge pode possibilitar o agravamento à vulnerabilidade e agressões, sejam elas físicas, psicológicas ou sexuais contra mulheres que vivem em situação de violência doméstica”, informa.
A especialista ainda lembra que a atitude também vai contra outra norma. “O art. 7º, III, da conhecida Lei Maria da Penha, entende também como violência doméstica de cunho sexual, qualquer forma de impedimento a métodos contraceptivos”, aponta Juliana, que também considera que a negativa do cônjuge pode configurar um crime.
Como o método contraceptivo DIU é utilizado em tratamento de doenças como endometriose, a limitação ao acesso também viola os direitos das mulheres em relação à saúde pública, segundo a advogada.
Impacto psicológico
A psicóloga especializada em direito institucional Artenira Silva diz que existem dois tipos de machismo que podem atingir uma mulher que precisa da autorização do marido para um procedimento preventivo.
“O primeiro é o estrutural, quando a mulher já pode sofrer em casa diretamente do companheiro. O segundo é o institucional, que acontece quando a mulher necessita da autorização do seu cônjuge para um procedimento contraceptivo, sendo dona do próprio corpo”, exemplifica.
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Artenira identifica uma violência de cunho moral e emocional na situação. “Isso pode gerar sérias consequências na mulher, desde danos emocionais à lesão à sua integridade física”, pontua.
Como denunciar
Do ponto de vista do consumidor, Juliana aconselha que o caso seja registrado na Agência Nacional de Saúde Suplementar. “A mulher vitimizada a esse tipo de constrangimento poderá registrar a ocorrência em delegacia comum ou especializada de defesa da mulher, bem como procurar o Ministério Público para noticiar tal fato”, diz.
A advogada aconselha a utilização da Central de Denúncias de Violações de Direitos Humanos (Disque 100) e a Ouvidoria da Controladoria Geral da União, que pode ser contatada pelo site https://www.falabr.cgu.gov.br. “Tais constrangimentos cabem danos morais e dependendo do caso danos materiais também a mulher”, afirma Juliana.
Posicionamento do Procon
Na última sexta-feira (6), o Procon-SP concedeu 72 horas para que as seguradoras explicassem qual é a metodologia utilizada no procedimento de autorização do DIU.
As organizações deverão comprovar se oferecem cobertura de contraceptivos temporários e como são feitos os procedimentos cirúrgicos para não ter mais filhos em mulheres e homens, detalhando as condições impostas para o cliente do benefício, com os fundamentos legais para os critérios estabelecidos.
Em fala ao G1, o diretor executivo do Procon-SP, Fernando Capez, afirmou que as seguradoras que fizerem a exigência da assinatura do marido serão multadas.
“A prática é abusiva, ilegal, descabida e afrontosa à condição e dignidade da mulher. Nós estamos notificando essas empresas para saber quais fazem essa imposição absurda”, disse.
“Não é possível admitir que para não pagar e reembolsar o seguro algumas empresas utilizem esse tipo de justificativa. Péssimo pretexto!”, destacou o diretor.