Encontrei Rosana Aparecida Alves, 48 anos, recostada em dois travesseiros, com os cabelos pretos presos para trás. Seus olhos se fixaram nos meus na tarde de 9 de março. No Recanto São Camilo, no bairro paulistano do Jaçanã, o diálogo foi entrecortado pelo barulho do aparelho que levava a dose máxima de oxigênio aos pulmões dela. E se pautou em um tema que ninguém gosta de abordar: a morte. Rosana ocupava um dos dez leitos reservados a pacientes do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo que chegam ao fim da linha terapêutica com as chances de cura esgotadas. Na trincheira entre a vida e o mundo imaterial, só eles podem mensurar o próprio sofrimento e decidir quando parar de lutar. Por isso, ali, não são submetidos a medidas invasivas ou reanimação.
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Alguns dias antes, ela havia sido levada para se despedir da família, em casa. Esperava a intimidade para falar do desfecho próximo à caçula, Natalia, 23 anos, que viera da Alemanha. “Mesmo adultos, os filhos necessitam da mãe para mostrar certas coisas”, explicou. Perguntei como fora a conversa. “Difícil, Natalia não consegue acreditar que preciso partir”, disse. Em seguida, se corrigiu: “Na verdade, não tocamos no assunto, ela se recusa. Sem que eu dissesse com todas as letras, ela percebeu”. Rosana contou que o marido, Sérgio, e o filho, Gabriel, 29 anos, parecem mais conformados. “Embora tenham uma visão florida, de que sou guerreira e vou sair dessa.”
Eu quis saber como ela se sentia. “Exausta. Não aguento mais. Dependo do aparelho há dez anos, estou doente há 14. Entrar no hospital e sair sem resposta não faz mais sentido”, resumiu seu calvário. A esclerose sistêmica progressiva, doença reumatológica, evoluiu com quadro de fibrose pulmonar e levou Rosana a infecções de repetição. Com a terminalidade diagnosticada, escolheu interromper o tratamento e passou a receber morfina para suportar a dificuldade de respirar, além de massagens, apoio emocional e nutricional. “Queremos que Rosana esteja confortável e aproveite a família”, explicou seu médico, Pedro Barreto Coelho. “A morte é inevitável, só esperamos que os pacientes embarquem na primeira classe.”
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A declaração do médico resume uma atividade conhecida como cuidados paliativos (CP), presente no Brasil há cerca de dez anos. Poucas instituições a adotam. No HC, ela virou política de saúde só há quatro. “Atendemos, em média, 850 pessoas por ano”, afirmou o coordenador da unidade de CP, o cardiologista Ricardo de Carvalho. Se pudessem, muitos pacientes optariam por algo mais radical, como uma injeção letal que encurtasse o caminho. Mas a eutanásia (em grego, boa morte) é considerada homicídio no país, embora não seja citada no Código Penal. Em 2012, uma proposta de reforma do código previu de um a quatro anos de prisão para quem “eutanasiar” um paciente terminal por compaixão. O projeto ainda não foi votado.
A advogada Túlasi Krüger defendia a legalização como um direito à morte responsável muito antes de, aos 28 anos, enfrentar um agressivo câncer de colo de útero. Sem poder abreviar seu sofrimento como gostaria, ditou todas as etapas até a morte. Sua mãe, a psicóloga Elisa Krüger Alves da Costa, professora da Universidade de Brasília (UnB), 49 anos, divorciada, deu um depoimento sobre a despedida da filha, que publico ao longo desta reportagem, e vai virar um livro escrito por ela.
A PRÓXIMA ONDA LIBERALIZANTE
No mundo, levanta-se uma maré pró-eutanásia, baseada nesta defesa: assim como o Estado não pode se intrometer no sexo entre duas mulheres ou dois homens, não cabe a ele impedir um cidadão de escolher como morrer. Nos Estados Unidos, cinco estados admitem a eutanásia e outros 20 discutem propostas legislativas, como ocorre no Reino Unido, na Alemanha e na África do Sul. Em 2001, a Holanda foi a primeira a legalizá-la, seguida pela Bélgica. Perto de nós, a Colômbia tem decisão favorável na Corte Constitucional e, no Uruguai, desde 1934, um juiz pode isentar de culpa o cidadão que atende às súplicas de um doente. Na Suíça, funcionam a Exite e a Dignitas, organizações de suicídio assistido. Na última, o paciente ingere a dose letal de pentobarbital de sódio, preparada por uma enfermeira. Em ambos, há rigor na análise de laudos que atestam morte previsível e casos incuráveis que levam a danos físicos e psíquicos insuportáveis. Há brasileiros inscritos na Dignitas; alguns são militantes e ajudam, financeiramente, com o que consideram um ato humanitário.
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Existem duas formas de eutanásia: ativa (alguém oferece medicamentos letais) e passiva, quando o tratamento é suspenso e o paciente mantido sob sedação e drogas de alívio de sintomas. Aqui, a passiva é chamada de ortotanásia. Seus defensores tentam afastar-se do peso da palavra crivada de preconceito. Os opositores consideram a eutanásia sinal de covardia, fraqueza e desrespeito às leis divinas.
Durante 25 dias, falei com enfermos. Em geral, eles concluem que nenhuma divindade deseja a aflição para seus protegidos. O paraense Kleber de Aquino, 25 anos, se sente refém de sua cama há dois. Um acidente de moto o deixou tetraplégico e agravou as crises respiratórias enfrentadas desde a infância. Ele me disse: “O sofrimento não carimba o passaporte para uma eternidade sem culpas. Minha vida não deveria pertencer ao Estado nem à religião, que atrapalham a libertação de tudo isso”. Seu pai, João de Aquino, professor de matemática, sempre tenta demovê-lo: “A família está ao seu redor, dando apoio e o conforto possível. Mas tirar a vida foge ao nosso alcance. O peso desse ato inquietará a alma até depois da morte”.
Na comunidade Eutanásia Brasil no Facebook, conheci um pianista e cantor lírico de 33 anos. Ele vive no interior paulista e se trata no HC, na capital, de dor crônica, causada por fibromialgia, neuropatia e radiculopatia. “Sinto meus nervos sendo esmagados, com dores terríveis nas costas, no corpo. Elas me fazem urrar, perder o sono, a vontade de comer, de me mexer.” Não revelarei seu nome porque o pianista teme que seus médicos voltem a discriminá-lo. “Uma vez, pedi para ser tratado com uma bomba de infusão de morfina ou com canabidiol, e o médico me respondeu: ‘Não era você que ia se matar?’ ” O pianista está inscrito na Dignitas. Ele rechaça o termo suicídio assistido. “É chocante para minha mãe”, justificou. “Vejo a prática como uma saída honrosa para quem não quer uma morte suja”, afirmou. “Não tenho filhos, estou doente desde os 17 anos e minha mãe entende a intenção de desistir do mundo. Ela já disse que, se tivesse dinheiro, me levaria para morrer na Suíça.”
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O psicólogo Adriano Facioli, que atua na UTI do Hospital Regional de Samambaia, no Distrito Fe-deral, e dá aula na Escola Superior de Ciências da Saúde, compreende o suicídio como algo triste, solitário, traumático para a família. “Mas suicídio assistido é outra coisa”, opinou. “O paciente tem o direito de discuti-lo com quem ama, despedir-se e receber amparo.” Para Adriano, o direito de morrer é atropelado no país. “Nas UTIs, sempre aparece um cara para ressuscitar pessoas sem chance de sobreviver. Age por obstinação ou medo da Justiça.” Em alguns hospitais, ocorre o contrário. Ao passar o plantão, a equipe avisa à próxima: “No leito 5, SPP”. O código de três letras quer dizer “Se Parar, Parou”. Para isso, as diretrizes antecipadas de vontade – o testamento vital, registrado em cartório – têm que ser afixadas no prontuário médico. José Fernando Vinagre, corregedor do Conselho Federal de Medicina (CFM), lembrou que, “no documento, o paciente afirma que rejeita massagem cardíaca, por exemplo”. É a Resolução 1995, de 2012, do CFM, que completa a resolução de 2006, prevendo a ortotanásia. Na opinião de Facioli, trata-se da “eutanásia à brasileira”.
O patologista Marcos de Almeida, professor de bioética da Universidade Federal de São Paulo, não tem dúvidas: “A eutanásia passiva e ativa são um fato consumado. A classe médica e a jurídica já discutem o problema nas suas associações, como ocorreu na Holanda. Lá, foram 18 anos em uma espécie de acordo de cavalheiros para que não houvesse punição à eutanásia, até a regulamentação”. Roberto Dias, professor de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, lembrou que a Constituição fala em direito de viver, mas não estabelece o de morrer. “Se existe o direito, há a possibilidade de renunciar a ele. Se não posso decidir como quero morrer, aquele direito vira uma obrigação.”
No imbróglio, a advogada Rosana Chiavassa, 55 anos, se preveniu. Como o testamento vital pode ser contestado, ela, mesmo não estando doente, conseguiu o aval de um juiz na ação que impetrou para recusar tratamentos fúteis. A advogada Adriana Gragnani, 63 anos, espera decisão semelhante: “Não deixarei meu corpo, minha saúde e intimidade sob a decisão de familiares. Será muita responsabilidade para eles”. A economista Elca Rubinstein, 70 anos, quer com a ação evitar procedimentos que seu convênio não cubra e padecer com algo sem cura, como o Alzheimer.
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A MATURIDADE DA FAMÍLIA
Depois das conversas pelo telefone, troquei mensagens com o pianista. “Hoje ganhei uma passagem só de ida ao inferno”, ditou ele ao computador, impossibilitado de digitar. “Tive cólicas, náuseas, cãibras. Faltou o opioide metadona.” O remédio que tira a dor nem sempre é achado na rede pública. “Queria um tratamento que me desse qualidade de vida. Ele não existe, e eu me vejo em uma morte arrastada.” Quando ouve relatos como esse, o padre Anísio Baldessin, que por 23 anos foi capelão do HC, não dá conselhos triviais, como: “Tenha fé”; “Deus sabe o que faz”; “Ele dá só o que podemos suportar”. Pelo contrário. “Eu me ponho no lugar do doente. Também não queria sofrer horrores”, declarou em sua sala de pró-reitor do Centro Universitário São Camilo, instituição católica que mantém o hospice onde está Rosana Aparecida. Ele é contra a eutanásia, mas reafirma os CP: “A medicina, que ajuda o homem a nascer, tem obrigação de ajudá-lo a morrer”. Em seu livro, Entre a Vida e a Morte, Medicina e Religião, o padre contou que as pessoas pediam rezas pelo milagre da cura impossível. Ele respondia: “Deus pode, mas não faz tudo”.
No livro, relatou a angústia de Saulo, 12 anos, em processo de metástase. Sua mãe e avó tentavam fazê-lo reagir. Num esforço enorme, o garoto comia e bebia para atender aos apelos delas e tinha surtos de vômito. “Apesar da gravidade, não conseguia morrer… Ou melhor, seus familiares pareciam não deixá-lo morrer”, escreveu. Ao vê-lo agonizando, Anísio orou, chamou a avó e a mãe e questionou: “Vocês já pensaram na possibilidade de deixar o Saulo morrer? Eu sugiro que, em vez de estimularem, dizendo que ele tem que ficar bom, vocês falem: ‘Saulo, você foi um guerreiro, lutou até onde suas forças permitiram. Se quiser descansar, entenderemos a decisão’ ”. Naquela noite, Saulo faleceu. Para o padre, a família ajuda o paciente a se curar. “Mas chega a hora em que precisa ter a maturidade de dar a ele o direito de ir embora.”
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ÚLTIMO DESEJO
No Recanto São Camilo, a psicóloga Cláudia Góes e equipe já fizeram festa de bodas de ouro para um paciente às vésperas de entrar em óbito. Arrumaram champanhe sem álcool e sorvete de jaca para outros dois; ajudaram em um acerto de contas familiar. Cláudia estava ao lado de Rosana quando falamos sobre estar ou não preparada para deixar a vida. “Não sei se preparada é a palavra”, afirmou Rosana. “Quando saí do coma, me desesperei. Hoje estou mais leve e já não me sinto só. Se pioro, digo: ‘Vai ser agora’. Fico com medo, mas também ansiosa para que o fim venha logo.” Terminei a conversa, beijei sua testa, e ela perguntou: “Você precisa de uma foto minha para a reportagem?” Dois dias depois, mandou dizer que ficara feliz em colaborar com o meu trabalho. Uma semana mais tarde, permanecia lúcida, mas falava pouco. Na manhã de 23 de março, reabri este texto para contar que ela falecera às 3 da madrugada. A filha, Natalia, revelou que a mãe sorrira até o fim. O encontro com a guerreira me marcou profundamente.
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