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Altamira: a cidade mais cruel e violenta com as mulheres

A construção da Hidrelétrica de Belo Monte impactou o Rio Xingu e deixou um rastro de violência urbana com graves consequências na vida das altamirenses

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 28 ago 2017, 17h17 - Publicado em 28 ago 2017, 17h17
Dalva Nazaré, na cova da filha Jéssica, assassinada por marginais perto de casa  (Victor Moriyama/CLAUDIA)
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Uma submetralhadora cuspiu a saraivada de balas que Dalva Nazaré da Silva, 61 anos, ouviu da porta de casa, no Jardim Brasília, na paraense Altamira. Estava ladeada por dois netos, a quem queria poupar da cena; certamente, mais um crime na esquina.

Pensou em entrar, mas a imagem de uma mulher caindo de joelhos da garupa de uma Honda Biz vermelha chamou sua atenção. Demorou um pouco até ver o tronco da pessoa tombar para trás. Ela não vertia sangue – teria dado para notar na camiseta branca.

Apesar de o sol vibrar às 17h30, no último 10 de abril, não se sabia quem era até tirarem o capacete. Os cabelos vermelhos interromperam a dúvida. “Jéssica!”, murmurou Dalva, entendendo, então, por que seu coração se apertara logo cedo. “Mãe percebe o mal rondando uma filha”, explica.

Impossível pôr a salvo da tragédia os meninos, apegados às mãos da avó. João Vitor, 7 anos, e Kayky, 5, tomavam contato com a truculência crua. Tratava-se da mãe voltando do trabalho na garupa do padrasto deles, Antônio Saraiva, 30 anos, desfigurado com 19 tiros no rosto – a emboscada era para ele.

Os dois homens que executaram a carnificina saíram do cenário acelerando uma moto. Algo corriqueiro na cidade à beira do exuberante Rio Xingu, cortada pela Rodovia Transamazônica, a 754 quilômetros da capital, Belém, e tomada por disputas do crime organizado em torno do tráfico.

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Kayky, 5 anos, explica quem era Jéssica: “Minha mãe pagava a escolinha de futebol do meu irmão. Quando eu fizer 7 anos, vai pagar para mim também” (Victor Moriyama/CLAUDIA)

Altamira anda, de fato, muito perigosa. Apareceu como o município brasileiro mais brutal no Atlas da Violência, publicado em 5 de junho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Em 2015, a taxa que somou homicídios e mortes violentas por causa indeterminada era de 107 por 100 mil altamirenses. Índio, apelido do coveiro que enterrou o casal no cemitério São Sebastião, desconhece o significado da palavra taxa, mas dá a medida da mortandade: “Não tem mais terra virgem aqui. Ponho um caixão em cima do outro”.


“A cidade recebia verba para políticas públicas como se aqui vivessem 90 mil pessoas. Na verdade, ela inchou para 150 mil habitantes no pico das obras“ — Antônia Martins, líder do movimento de mulheres


A cidade é especialmente hostil com as mulheres. Daniel Cerqueira, coordenador do estudo do Ipea, lembra que o homicídio de mulheres cresceu 64% entre 2005 e 2015. Há várias razões. Uma, fundada na cultura, é o machismo extremado.

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Jéssica demonstrava tensão nos meses antes da sua morte. Havia tentado deixar o marido, com quem vivera por quatro anos e tivera Kalinny, 3. Antônio não admitiu. “Ele disse a Jéssica que andasse ligeiro, porque os passos dela estavam curtos. Foi uma ameaça”, afirma Dalva.

Aos 24 anos, funcionária de uma empresa de ônibus, ela sustentava as crianças sozinha. Dois meses depois do enterro, Kayky foi com a avó ao cemitério pela primeira vez. Depositou uma flor e explicou quem era a sua mãe: “Ela pagava a escolinha de futebol do meu irmão. Quando eu fizer 7 anos, vai pagar para mim também”.

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Nas palafitas sobre a lagoa, as mulheres se equilibram para não pisar em fezes, lixo e ratos (Victor Moriyama/CLAUDIA)

Jéssica evitava andar com Antônio desde que ouvira que ele estava marcado para morrer. Aceitou, porém, a carona do marido, no sinistro 10 de abril, porque precisava chegar em tempo de levar Kayky para um ritual estranho à sua pouca idade: participar do velório de seu pai, ex-namorado de Jéssica, assassinado na véspera. Em menos de 24 horas, perdia mãe, pai e padrasto da maneira mais sórdida que uma criança pode perder alguém tão próximo.

A segunda razão pela qual Altamira se tornou tirana com as mulheres emerge da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. O mercado dos ilícitos potencializou-se com a maior circulação de dinheiro e a explosão na oferta de postos de trabalho a partir de 2010.

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Belo Monte alterou rapidamente a dinâmica e os hábitos, arrastando empresas de comércio e serviços, companhias de aviação, bancos, fornecedores e 40 mil trabalhadores – a maioria homens e com baixa qualificação. Não havia mais hospital para todos, as ruas ficaram pequenas para tantos acidentes de trânsito, assaltos, furtos, estupros e latrocínios.

Leia mais: Por dia, 10.800 mulheres são vítimas de agressão no Brasil

“A cidade recebia verbas para políticas públicas como se aqui vivessem 90 mil pessoas”, opina Antônia Martins, líder do movimento de mulheres e secretária executiva da Fundação Viver, Produzir e Preservar. “Na verdade, ela inchou de 109 mil para 150 mil habitantes em 2014, no pico das obras.”

Chegaram em abundância cocaína, maconha, crack, bebidas e bordéis. Alguns deles animados pelo tráfico de mulheres e meninas. Em junho, a Polícia Rodoviária Federal ainda mantinha a atenção em 17 pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças.

Cerqueira, do Ipea, explica que dinheiro farto na praça não é, exclusivamente, o que justifica o aumento dos delitos. “Quem não participa da festa segue desempregado e, sem perspectivas, vê um prêmio na prática do crime”, diz.

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O marido de Jéssica, com pouca habilidade profissional, seria um dos barrados no baile. Mhoab Kayan Azevedo, delegado que investiga o duplo homicídio na família de Dalva, revela ter achado “uma quantidade expressiva de maconha”, estocada por Antônio no endereço que dividia com Jéssica.

Com o inquérito em andamento, não havia identificado envolvimento dela com o tráfico. Mas considerava impossível que ignorasse a droga em casa. O policial talvez desconheça que os passos de Jéssica estavam curtos demais, e ela não ousaria denunciar o marido.

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No barraco de Marlene Moraes,os objetos boiam. Ela e a família transitam o tempo todo sobre tábuas (Victor Moriyama/CLAUDIA)

A CHANCE QUE MINGUOU

O perfil de Jéssica é parecido com o de milhares de altamirenses. Engravidou aos 16, a vida de dona de casa a fez largar a escola no 2º grau, teve João Vitor, o casamento acabou, conheceu o pai de Kayky em uma festa e, mais tarde, Antônio em um grupo de WhatsApp.

Tinha 17 anos quando o Consórcio Norte Energia venceu o leilão para tocar Belo Monte, a segunda maior hidrelétrica do país, terceira do mundo. Jéssica viu nisso a chance de ascensão. Atuou no almoxarifado e no posto de gasolina do canteiro de obras, embora tenha conseguido cursar o técnico em mineração. “Calculo que 3 mil mulheres daqui trabalharam no pesado, na carregação de cimento. Engenheiras e executivas vieram de fora”, afirma Antônia.

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A usina custou 30 bilhões de reais, com a principal fatia emprestada do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Sob investigação de corrupção praticada por políticos, empreiteiros e funcionários de Brasília, ela sofreu multas por danos à floresta, à saúde das águas, dos peixes e pássaros.

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Foi paralisada, em algumas etapas, por ações da Defensoria Pública Federal e teve suas instalações invadidas por índios que se sentiram lesados. Hoje opera parcialmente e em 2020, com carga plena, fornecerá energia para 60 milhões de brasileiros.

“O projeto é importante, mas não trouxe consigo estudos e medidas que minimizassem o impacto social”, afirma o secretário de Segurança Pública do Pará, Jeannot Jansen.

A Norte Energia repassou 15 milhões de reais para a segurança pública, garantiu um helicóptero, viaturas… Mas a Delegacia da Mulher não tem impressora, assim como a sala do plantão da delegacia que atende ocorrências gerais não dispõe de telefone.

O coronel José Eduardo de Oliveira, à frente do Policiamento Regional, entende que segurança pública não se faz apenas com dinheiro e os 436 homens que comanda. “Com a precarização da vida, a tendência é o maior consumo de álcool, drogas e a prática do crime. E isso agora inclui as mulheres”, declara.

Em 27 anos de polícia, a primeira vez que o coronel se deparou com elas no protagonismo do tráfico foi no primeiro semestre deste ano: duas chefes acabaram mortas e a terceira negociou um rentável ponto de venda com um interessado. “Com desenvoltura, prometeu limpar a área – ou seja, matar os concorrentes – antes de entregar a banca a ele.”


“Nas palafitas sobre a lagoa, vivem 700 famílias. O cheiro de esgoto é forte. Há ratos por todo lado. E registros de tuberculose, hanseníase, dengue e hepatite A e B“ — Hirlen Silva, agente comunitária de saúde e presidente da associação de moradores


VIDAS ALAGADAS

Setecentas famílias vivem em palafitas, sobre a lagoa, no Jardim Independente I. Carregando crianças, compras e roupas para lavar, as mulheres estão sempre olhando para baixo. Precisam ver onde pisam; do contrário, se atolam em lixo, fezes e entulhos ou são atacadas por ratos e cobras.

“Antes da usina, raramente a lagoa enchia”, diz Hirlen Silva, 36 anos, agente comunitária de saúde e presidente da associação de moradores do bairro. No barraco de Marlene Moraes, 57 anos, os objetos boiam entre dejetos.

Ela toma um cuidado enorme para não molhar as linhas com que tece os tapetes que vende. Sua caçula, Kátia, 26 anos, está com um barrigão; em quatro dias terá o quarto bebê.

A rotina é elétrica na lagoa; o tráfico de drogas está até entre crianças. “Há meninas de 13 e 14 anos grávidas, registros de tuberculose, hepatite A e B, hanseníase, dengue, doenças de pele e diarreia”, enumera Hirlen.

No calor de 38, 40 graus, as mulheres buscam água em uma torneira que ela disponibiliza do lado de fora da associação. “Vivemos a guerra da água”, descreve Maria Ilma, 51 anos. “Moramos perto do rio e não temos nem para beber.”

A ocupação da lagoa – defende-se a Norte Energia por escrito – ocorreu antes da construção da usina: “O processo de licenciamento ambiental tem demonstrado não haver relação entre a implantação do empreendimento e a ocupação da área”.

O consórcio culpa o poder público por permitir que as quase 3 mil pessoas vivam “na lagoa perene, sobre um aquífero suspenso”, e se isenta da obrigação de realocá-las. A agente comunitária segue lutando na Agência Nacional de Águas (ANA) e no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por laudos favoráveis à remoção.

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A agente de saúde Hirlen Silva brinca com Luan Ribeiro, 11 meses, um dos muitos afilhados que ela tem no Independente I (Victor Moriyama/CLAUDIA)

GUERRA EM CASA

Hirlen é uma espécie de fada madrinha, batizou inúmeras crianças, é respeitada por trabalhadores, desempregados e traficantes e guiou nossa reportagem pelo local. Realizava um baile quando seu marido, um bombeiro civil, entrou um tanto alcoolizado e comprou briga com o professor de capoeira da associação. O motivo: ciúme da mulher. Tomou mais socos do que deu; seu rosto sangrou.

No “deixa disso”, Hirlen o colocou no carro e seguiu para o hospital. Perto de casa, onde pegaria documentos, passou a ser agredida por ele. Saiu do veículo, o marido a alcançou, puxou seus cabelos e a jogou no chão.

Leia mais: Violência doméstica contra a mulher: quando você pode – e deve – acionar a justiça

O barulho acordou Hevellen, 18 anos, filha de Hirlen, que havia dado à luz 19 dias antes. Mesmo de resguardo, entrou na confusão e atirou uma pedra no padrasto. O homem se dirigiu ao pronto-socorro, Hirlen à delegacia. Contou o fato ao policial, e ele foi se informar do estado de saúde do bombeiro, no hospital.

“O escrivão disse que meu marido estava ferido e eu não apresentava hematoma algum.” Temendo a inversão das coisas e, acreditando que seria responsabilizada, a heroína do Jardim Independente I, que já enfrentara a violência doméstica em dois casamentos anteriores, desistiu do boletim de ocorrência.


“Aconteceram traições, separações, novas uniões e ameaças pesadas. Forasteiros diziam às mulheres: ‘Eu não sou daqui, você não sabe do que sou capaz. Não tente me deixar’ “ — Leda Uchôa, titular da Delegacia da Mulher


Leda Salgado Uchôa, titular da Delegacia da Mulher, afirma que as paraenses não são submissas, embora denunciem pouco. Ainda assim, os BOs cresceram com a autonomia conquistada na economia aquecida por Belo Monte. “Muitas começaram a trabalhar e a considerar novas possibilidades”, diz.

“Voltavam para casa e encontravam o marido furioso, imaginando que elas estavam com um amante.” Para a delegada, isso mexeu com as relações de poder entre homem e mulher. Aconteceram muitas traições, separações, novas uniões e ameaças pesadas. “Forasteiros diziam às mulheres: ‘Eu não sou daqui, você não sabe do que sou capaz. Não tente me deixar’.

”No fim das obras, porém, o abandono partiu deles, que foram embora. “Os seus bebês ficaram conhecidos como ‘filhos da barragem’ ”, relata a pedagoga Mayelle Wagner.

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Jeanne Coletto, 36 anos, a chefe do clã de mulheres: “Não é fácil ser avó tão cedo. É preciso criar as filhas e a neta e cuidar para que não nasçam outros bebês” (Victor Moriyama/CLAUDIA)

O caldo ferveu ainda na partilha das indenizações que a Norte Energia pagou na desapropriação de cerca de 5 mil casas, afetadas pelas alterações no curso do Xingu. “A mulher que vivia junto por conveniência quis a parte dela para começar uma nova vida”, lembra a delegada.

A psicóloga Sandra Vieira passou a atender no fórum os agressores. “Eles estavam sofrendo. Trocaram uma jornada profissional que, em Altamira, terminava às 5 da tarde por turnos que incluíam a madrugada”, conta. “Ficavam sem ver a família, se deprimiam e bebiam.”

Os desapropriados seguiram basicamente para cinco conjuntos com casas de planta única, os Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), construídos pela Norte Energia. “Foi aí que a cidade passou a ter periferias”, explica Mayelle. “Vivíamos todos, pobres, médios e ricos, com as casas próximas umas das outras.”

A mudança ainda não está assimilada, sobretudo pelas mulheres. “Elas perderam a convivência com as vizinhas antigas, ficaram longe do comércio, do trabalho e da escola dos filhos”, diz.

O abandono escolar e as reprovações aumentaram. Embora o consórcio tenha providenciado escolas, em muitos RUCs não há creches suficientes. Nem ensino médio. Os estudantes pegam o ônibus, chegam atrasados para a primeira aula e saem cedo, pois o transporte é raro.

Em artigos para o Dossiê Belo Monte, escritos por acadêmicos, ambientalistas e agentes públicos, há menção à taxa de reprovação no ensino fundamental, que caíam desde 2007 e voltaram a subir atingindo 40,5% entre 2011 e 2013.

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No comércio de Jaci, na Avenida Tancredo Neves, os clientes ficam para além das grades: “Temos que evitar assaltos” (Victor Moriyama/CLAUDIA)

MULHERES SOZINHAS

Em Altamira vive uma legião de jovens avós. Lúcia Ribeiro, 31 anos, tem dois netos. Tereza da Silva, 34, três (incluindo gêmeos). Jeanne Coletto, 36, é louca por Hadassah Beatriz, 8 meses. Separadas, elas se viram para dar conta.

“Não é fácil. Tenho que criar as filhas e a neta, e cuidar para que não nasçam outros bebês”, diz. Jeanne faz marcação cerrada sobre a caçula, Kílvia, 14 anos, desde que Raíssa, 17, engravidou. “Kílvia só sai comigo.

Até às aulas de capoeira vamos juntas.” Ela e o marido eram pastores de uma igreja evangélica. “A noite de Altamira ficou tão quente, com tantas prostitutas bonitas, que ele largou a família, o trabalho, tudo”, revela.

A cidade continua fazendo uma cerveja gostosa que leva seu nome, tem restaurantes interessantes, mas as conversas sempre incluem o medo de sair à noite.

O professor Daniel Vallerius, da Faculdade de Geografia da Universidade Federal do Pará, em sua pesquisa de doutorado, ouviu de universitários que a violência é o maior problema urbano. Para ele, a percepção é ainda maior que os índices de crime. “A sensação de insegurança afeta a maneira como a população usufrui a cidade”, explica.

Quase todas as casas têm grades e, no domingo à tarde, com movimento menor, o comércio atende atrás delas. A frente da loja de conveniência Tequilas, na prestigiosa Avenida Tancredo Neves, está protegida pela armação de metal de cima a baixo.

Jaci Souza, 32 anos, e sua irmã Nira, 33, não param um segundo. Abrem uma portinhola na altura do peito, passam as caixas de cerveja, pegam o dinheiro, fecham, voltam com o troco, abrem, entregam para o freguês. “Temos de evitar assaltos”, justifica Jaci.


“Eu não me canso de lutar. Quero voltar para a beira do rio. Viver em um ambiente parecido com o lugar de onde saí, arrancada” — Francineide dos santos, pescadora


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Os Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), onde a Norte Energia colocou as famílias desapropriadas (Victor Moriyama/CLAUDIA)

As mulheres de Altamira se protegem, mas não se retraem. A pescadora Francineide dos Santos, 48 anos, é a síntese da força que jamais cessa. Ficou sem o marido – “a lida da pescadora envelhece o corpo dela muito cedo”, afirma – e não tem mais seu canto na Ilha da Neide.

As águas engoliram os bichos, a roça, a mangueira, o cajueiro e as memórias dos cinco filhos que criou no chão de 250 metros de frente e mil de fundo. “Foi como tirar o melhor pedaço de mim”, diz. Ela não recebeu indenização pela casa e pesca, que ficou impossível. Mas rejeitará uma quantia magra.

Francineide não sabe escrever, porém, fala bem, de igual para igual com o Ibama, o Ministério do Trabalho, a Justiça e os homens da Norte Energia. Com o conselho dos ribeirinhos, está quase convencendo o consórcio.

“Quero voltar para a beira do rio. Viver em um ambiente parecido com o lugar de onde saí, arrancada”, garante. “E não será em um RUC, onde a parede da casa não aguenta um gancho de rede.”

Não quer que se repita com ela o ocorrido com índios de algumas das 20 etnias do Xingu. Os guardiões da Amazônia se viram empilhados em casas de blocos cinza, como as das periferias das cidades, no meio do verde machucado.

Índios, aliás, teriam denunciado à Fundação Nacional do Índio (Funai) que operários contratados para obras de infraestrutura nas aldeias fumaram crack e se relacionaram com índias, havendo suspeita de exploração sexual das mais novas, por trabalhadores, como registrou o professor Assis Oliveira, da Universidade Federal do Pará em artigo para o Dossiê.

Com jeito pacato, Dalva, a mãe de Jéssica, acompanha a vida da cidade, perplexa. “Acho que Altamira não volta mais a ser o que era. Eu tomava banho no igarapé e, até pouco tempo, sentava na calçada para conversar com meus vizinhos. Mas algum conserto o povo vai ter que fazer.”

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Francineide, com saudade da vida e da pesca no Xingu: “Foi como tirar o melhor pedaço de mim” (Victor Moriyama/CLAUDIA)
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