A história da mulher que adotou (e salvou) quatro crianças que sofriam abusos e agressões físicas pelos pais
Ligia Sommers conta em O Caminho das Cores (Miró Editorial) como conseguiu a guarda das crianças já crescidas, para dar a elas uma família com direito a amor, carinho e cumplicidade, e descreve o caminho de superação percorrido por cada um
“Sempre tive o sonho de ser mãe, mas eu era casada com um homem que não queria ter filhos. Apesar da certeza da minha vontade, ela não se concretizava e o tempo foi passando. Eu estava na minha terceira faculdade, de Terapia Ocupacional, e existe um ano em que lidamos muito com crianças, visitando abrigos, orfanatos e hospitais. Essa experiência me fez perceber que eu seria capaz de amar uma criança mesmo que ela não tivesse saído de mim. E começou a surgir a vontade de adotar um bebê. Sim, um bebê e não uma criança. E no começo, como a maioria das pessoas, eu queria um filho lindo, com traços semelhantes aos da minha família, algo que tornasse mais fácil a adaptação. Foi quando conheci quem eu chamo de “fadinha”, a assistente social que mudou a minha vida.
Ela me perguntou se eu sonhava em ter uma menina loirinha e dos olhos azuis como eu. Já mais madura com a ideia da adoção, respondi que estava disposta a receber o que Deus mandasse. Ela me contou, então, do caso de duas irmãs gêmeas, de seis anos, que estavam esperando por uma mãe (e que, por coincidência, eram muito parecidas comigo). Ainda confusa, disse que queria vê-las de longe, para não correr o risco delas se apegarem. Isso acontece muito em orfanato: aquelas crianças olham para você e, somente com o olhar, parecem implorar para lhes tirem dali.
Fiquei observando as meninas e quando eu já estava quase decidida que queria ficar com elas, a assistente social me chamou de volta e falou: só que tem um problema, não são duas e sim quatro crianças. As gêmeas (que chamo de Azul e Lilás em meu livro) tinham outros dois irmãos (Verde e Vermelho) que estavam chegando ao orfanato, após serem retirados da guarda dos pais. Assustada com a ideia de adotar quatro crianças ao mesmo tempo, disse que iria pensar, e fui conversar com meu marido. Perguntei se tínhamos condição de cuidar de todos eles. Depois de fazer algumas contas, ele disse que sim, mas que aquilo era uma loucura. Conclui que eu só iria seguir a diante se eu recebesse um sinal.
Foi quando fui à missa realizada pelo orfanato para conhecer as meninas. Fiquei ali, observando tudo de longe (não queria ter muito contato com as crianças para elas não criarem expectativas). Nesse dia pedi aos anjos que me dessem um sinal caso alguma daquelas crianças fosse a minha. Em certo momento da missa, o padre pediu que elas escolhessem alguém, do evento inteiro, para dividir um pedaço de pão. Foi quando depois de caminhar por todo o salão, a Azul veio em minha direção e me entregou o alimento. Tive a certeza de que esse era o sinal!
Durante o processo de adoção, mais uma notícia chocante: as quatro crianças eram vítimas de agressões gravíssimas por parte dos pais biológicos. Os corpos das minhas meninas eram inteirinhos queimados. Havia (e existe até hoje) marcas de queimaduras de cigarro por toda parte. O abuso foi denunciado pela própria avó materna, que alegava que o pai passava horas trancado no quarto com as meninas. A avó afirmou que ele “mexia” em todo o corpo delas. Quando a polícia chegou na casa deles, após a denúncia, encontrou as crianças em um quartinho pequeno, sem janela, com o Vermelho amarrado em um carrinho de bebê – desde que nasceu ele vivia assim, preso, sem nunca ter sido desamarrado. Havia comida pelo chão, pedaços de macarrão velho (era assim que eles se alimentavam), junto com uma cadela que havia acabado de dar cria. Eles tinham marcas de todos os tipos pelo corpo. O menor, o Vermelho, havia tomado uma machadada na cabeça, agressão que gerou sequelas irreversíveis, além de uma grande cicatriz na testa.
Devido à seriedade da situação a papelada saiu rápido. Mas tive mais um problema. Consegui, de cara, apenas a autorização de adoção das gêmeas. Os pais queriam a guarda dos meninos, porque consideravam que por serem homens podiam trabalhar e gerar renda para eles. Fiquei desolada por poder levar, a princípio, somente as meninas e por separar os irmãos, que já viviam uma situação difícil o suficiente. Foi quando o Verde, que estava sofrendo por estar longe das irmãs, decidiu que queria morrer. Parou de comer, de falar, não tomava banho. Quando ele estava quase morrendo, as assistentes do orfanato me ligaram, pedindo ajuda. Nesse momento, tive que mexer todos os meus pauzinhos e consegui descobrir quem era o Juiz que estava cuidado do caso dos meninos. O encontrei e, como era um caso de vida ou morte, ele me ajudou. Consegui dar entrada ao processo da adoção dos meninos, que logo já foram morar conosco. Quando chegaram, as gêmeas tinham apenas seis anos, o Verde cinco e o Vermelho, quatro.
Eles se adaptaram fácil ao novo lar, mas as consequências são esmagadoras. Minhas meninas tinham horror a homem. Mesmo separada do meu marido, ele sempre foi um pai presente, mas não conseguia se aproximar das meninas. Elas tinham medo da figura do pai. Por muito tempo elas tiveram dificuldade de se relacionar homens.
Com todos em casa, comecei um verdadeiro processo de purificação nesses corações, que eles diziam estar preto de tristeza. Rezávamos muito, fazíamos aroma e cromoterapia e sessões de psicoterapia. Conversávamos muito sobre tudo o que aconteceu e pedíamos que a chuva levasse toda essa tristeza embora. Numa dessas sessões de “limpeza” espiritual a Azul perguntou se eu lembrava que no dia da missa, no orfanato, ela me deu um pedaço do pão. Disse que sim, claro (afinal, aquele tinha sido o meu sinal). Ela perguntou: sabe por que eu dividi o pão com você? Porque quando eu olhei nos seus olhos eu sabia que você era nossa mãe. Emocionei-me demais, e choro até hoje ao lembrar dessa cena, porque naquele exato momento eu também senti que Azul, Verde, Lilás e Vermelho eram meus filhos do coração.
Os traumas que situações como essas causam em uma criança podem não ter cura. As cicatrizes de queimaduras pelo corpo fazem com que os momentos de horror voltem a todo instante na cabeça das minhas meninas. Elas tiveram problemas de autoestima, apesar de toda a beleza, por dentro e por fora, que elas têm. Para o Vermelho, as consequências foram ainda mais duras.
Sempre soube que ele tinha algum problema. No começo, os especialistas falavam em hiperatividade. Mas eu sabia que não era apenas isso. Ele arrancava as próprias unhas, se automutilava, se queimava de propósito. Por causa de uma lesão cerebral frontal e uma temporal, ele perdeu a capacidade de sentir dor e de controlar seus impulsos. Ele foi matriculado e expulso de mais de oito escolas. Em todas, ele sofreu por incomodar as pessoas. Depois de muitos anos consultando médicos e psicólogos de todas as áreas, encontrei uma pessoa que pediu um exame específico. Foi quando Vermelho foi diagnosticado como psicopata. Hoje ele mora em um instituto chamado Associação de Convivência Novo Tempo, porque ele não pode viver em sociedade.
A boa notícia é que hoje meus filhos são muito felizes. Vivem como qualquer jovem de vinte e poucos anos, fazem faculdade e sonham com futuros surpreendentes. As gêmeas estão noivas – por coincidência ao mesmo tempo. Uma grande felicidade para toda a família! Hoje eles falam muito pouco sobre o passado, porque grande parte dos traumas foi superada. E sei que isso se deve a um longo e duro trabalho que fizemos juntos.
A triste realidade atual brasileira sobre adoção é que existem cerca de cinco mil crianças esperando por pais que as queiram e mais de 31 mil casais na lista de espera. Provavelmente porque são crianças mais velhas, com características físicas que normalmente fogem daquilo que os pais adotivos buscam. E, o pior, é que fica cada vez mais difícil para essas crianças encontrarem uma família que as queiram, mesmo já crescidas. A minha experiência é um exemplo de que adotar filhos já grandinhos pode ser tão bom quanto criá-los desde bebês. As vantagens são inúmeras: existe a questão da empatia, da personalidade, do caráter, que, em uma criança, já está formado e já pode ser identificado – diferente de um bebê. Além disso, assim como aconteceu comigo, eles podem te escolher como mãe. Quer coisa mais bonita do que isso?
A mensagem que deixo, para todas as futuras mães que estejam pensando em adotar um filho, é que elas não coloquem tantas exigências no momento da escolha. Que elas escutem os sinais e se abram totalmente para o que vier. Assim como aconteceu comigo, elas também podem ser escolhidas por suas filhas”.
Toda a renda arrecadada com a venda de O Caminho das Cores será destinada à Associação de Convivência Novo Tempo, instituição onde vive Vermelho e muitas outras pessoas em situação parecida, que precisam de todos os tipos de ajuda.