“A Força do Querer”: entenda o que é ser transgênero como a Ivana
Lucas Queiroz e Raphael Henrique Martins já iniciaram o processo de transição de gênero e contam suas histórias.
As regras e padrões de comportamento pareciam ser imposições para que ele fosse aceito nos grupos de amigos. Ele não entendia por que devia usar maquiagem e exaltar sua feminilidade com roupas de mulher. “O fato de me intitular mulher não parecia ser suficiente. Não era algo que me fazia sentir completo. E carreguei isso por muito tempo: um peso de não saber quem eu era”, desabafa.
Quem está acompanhando a novela da Globo A Força do Querer deve ter notado que esse breve relato poderia ter sido retirado dela. Ele poderia expressar as sensações da personagem Ivana e ter sido dito pela atriz Carol Duarte, 25 anos, em uma cena da trama escrita por Glória Perez. Mas ele veio da boca do jovem Lucas Silva Queiroz, 21 anos.
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Lucas é um homem transgênero. Isso significa que, embora tivessem determinado que Lucas era uma mulher quando nasceu, devido às suas características biológicas, ele nunca se reconheceu como tal. Apesar de suas características físicas, o estudante de artes visuais sempre se sentiu homem. Logo, Lucas pertence à comunidade T da sigla LGBT, que representa os transexuais e travestis.
Assim como Ivana, Lucas se sentia desconfortável ao ser forçada a vestir saias e vestidos. As roupas masculinas lhe agradavam muito mais. Essa preferência, porém, o fazia questionar se algo estava errado com ele. “Achava que tentar me vestir de masculino era completamente errado. Acabei me ‘feminilizando’ para não sofrer xingamentos e agressões”, conta.
Outro ponto em que a história de Ivana e Lucas se cruzam: ele só entendeu quem era de verdade ao ser apresentado a outras pessoas trans. Na novela, a personagem de Carol Duarte compreende que pode passar por uma transição de gênero e, enfim, se sentir bem com seu corpo ao conhecer Tereza Brant – interpretada pelo ator transexual Tarso Brant.
Foi no início da faculdade, há três anos, que Lucas teve o primeiro contato com o universo trans. Em rodas de conversa da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) ouviu depoimentos que contemplavam os seus sentimentos de incômodo com o corpo e o incentivaram a assumir a sua identidade.
“Os relatos me deram coragem para sair do armário. Em um dos encontros, peguei o microfone, fui para o palco e me assumi, finalmente, como Lucas para todo mundo que estava presente“, lembra o estudante.
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Nesse mesmo universo, ao qual Lucas foi apresentado, vive Raphael Henrique Martins, 30 anos. Como o universitário, o bacharel em serviço social também percebia que algo não o fazia se encaixar nos padrões.
Similar à personagem da novela, ele costumava esconder os seios para não deixá-los salientes na roupa. “Desde criança, sempre percebi que meu gênero não era o feminino. Aos 15 anos, eu realmente fui saber que era transexual”, conta o paulistano.
O primeiro contato de Raphael com o mundo trans também se deu com a ajuda de um amigo. “Quando comecei a trabalhar no Centro de Referência da Diversidade, um amigo meu se assumiu trans. Minha reação foi de extrema felicidade por ter decifrado o que eu era. Mas também veio um sentimento de tristeza pela luta que ia ser contra o preconceito”, relembra.
Dificuldades em ser aceito
O preconceito citado por Raphael, de fato, ainda é um dos principais desafios para a população transgênero no Brasil.
A transfobia, presente na sociedade, põe em risco a vida de quem pertence à comunidade T. De acordo com a Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra), 40% dos assassinatos de pessoas trans registrados no mundo acontecem no Brasil, . Em 2016, o país bateu um recorde alarmante: 347 transexuais e travestis foram mortos em território nacional, de acordo com o Grupo Gay da Bahia.
Para a psicóloga Tatiana Lionço, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), a violência contra a comunidade T é motivada por dois estigmas que a transexualidade carrega: o de ser associada à prostituição (principalmente para mulheres) e o de ser classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um distúrbio mental.
“A patologização da transexualidade é uma forma de controle da expressão de gênero. (…) A medicina afirma que se trata de uma doença mental, mas não tem base orgânica, consistindo em uma arbitrariedade moral na atribuição de anormalidade”, defende a psicóloga.
A luta contra o preconceito ainda acontece em cada espaço que a população trans marca presença. Apesar de a faculdade ter proporcionado a Lucas a compreensão sobre si mesmo de que precisava, foi lá que ele vivenciou um caso de violência.
“Sofri agressão física dentro da sala de aula. Esse episódio impactou profundamente a minha vida. Quando fui denunciar o ocorrido à polícia, fizeram pouco caso de mim, mesmo vendo quão frágil eu estava e minha mão enfaixada. A agressora saiu impune e eu com profundas marcas, que ainda me perturbam”, contou o universitário.
Raphael também enfrenta resistência à sua identidade de gênero. Mas, diferentemente de Lucas, a principal batalha acontece dentro de casa. “Minha mãe foi a primeira pessoa a saber que eu era trans. Foi tranquilo, tanto que o nome Raphael foi ela quem me deu. Ela foi a pessoa que mais me acolheu. Meu irmão mais velho, entretanto, não me aceita e não fala comigo por causa disso”, revela ele.
Transição com amor
Apesar de todas as dificuldades em ser aceitos, Lucas e Raphael encontraram pessoas que os amam e que acolheram suas decisões.
Há quatro anos, Lucas divide um apartamento com o namorado, um homem cisgênero (termo que designa quem se identifica com o gênero determinado no nascimento), a primeira pessoa a quem revelou que desejava tomar hormônios para adquirir características masculinas. Ele está em tratamento hormonal com o acompanhamento de endocrinologista há seis meses.
“Quando me assumi, meu namorado disse que me amava do jeitinho que eu fosse: homem, mulher, sem gênero… Isso não mudou em nada nossa vida”, lembra o estudante.
Sim. Lucas é um homem transgênero que namora um rapaz cisgênero. Ele é, portanto, um homem trans homossexual. Afinal, identidade de gênero e orientação sexual são dois termos completamente diferentes, ressalta Tatiana: “Identidade de gênero é como você se reconhece: como homem ou mulher. Orientação sexual é o que move o seu desejo. Que pessoas despertam o seu desejo sexual”.
É por isso que Ivana, apesar de estar prestes a começar um tratamento hormonal para ter o corpo com características masculinas, continuará interessada em Cláudio, seu ex-namorado. A personagem, assim como Lucas, é um homem transgênero gay.
Raphael também não está solteiro. Mas, diferentemente de Lucas, Raphael é hétero e sente atração por mulheres. Casado há seis anos, é com a esposa que ele divide cada etapa de sua transição, que teve início há três anos.
O processo se iniciou com a introdução de doses de hormônios e deve ser finalizado com a retirada do útero. “Eu não quero fazer a cirurgia de mudança de sexo. As intervenções corporais estão sendo um pouco lentas, mas já dá para notar uma aparência masculina em mim. Decidir tomar hormônios foi a melhor escolha que fiz”, comenta.
Representatividade e conquistas
Assim como Lucas e Raphael iniciaram o tratamento com hormônios, Ivana passará a fazer uso contínuo da substância em seu organismo nos próximos capítulos de A Força do Querer.
A presença de uma personagem trans na novela das 21 horas foi elogiada pelos rapazes. “Muita gente nunca soube que o termo ‘transgênero’ existia, como eu no passado. Agora é possível ter conhecimento da vivência das pessoas trans e de suas dificuldades em se relacionar com a sociedade em geral”, comenta Lucas.
A psicóloga Tatiana enfatiza que a representatividade na mídia é um importante passo para que pessoas trans compreendam quem são. Ela lembra da repercussão da autobiografia de João Nery, o primeiro transexual de que se teve notícia no Brasil, Viagem Solitária – Memórias de um Transexual Trinta Anos Depois. “Várias pessoas, ao tomar conhecimento dos relatos presentes na obra, tiveram a chance de se ressignificar por meio da identificação com os depoimentos“, conta sobre o livro, lançado em 2011.
Se o reconhecimento na mídia está sendo oferecido em horário nobre na TV Globo, o reconhecimento do poder público avança em ritmo moderado. Recentemente, foi aprovado o uso do nome social no CPF por pessoas trans. Para Lucas, essa conquista representa a garantia de acesso a serviços básicos – como saúde – e o fim do constrangimento gerado pelo uso de dois nomes distintos pela mesma pessoa.
“Nada melhor do que ouvir os outros nos chamar pelo nome certo e ver os documentos com o nome correto sem ter aquela sensação de ‘mas meu nome não é esse, eu não me identifico assim’ “, comemora ele.
Raphael, por sua vez, lembra que o documento ainda pede que o nome civil acompanhe o nome social. Para ele e Tatiana, a maior conquista para a comunidade trans acontecerá quando cada cidadão e cidadã puder mudar seu nome em documentos definitivamente. “A pessoa trans não tem obrigação de fornecer o nome que tinha. Ninguém tem obrigação de explicar que é trans“, enfatiza a psicóloga.