Conheça cinco mulheres (seriam leoas?) que, com unhas e dentes ou sabedoria e serenidade, protegem suas crias e são capazes de buscar o último fio de esperança por amor
“Pedrinho precisava de um transplante, parte de um tratamento milionário. Fui à luta. Até famosos ajudaram. Faria qualquer coisa para salvá-lo”
Aline Libração da Lavra, 35 anos, supervisora comercial
O meu bebê foi muito planejado. A gravidez transcorria com tranquilidade total, eu me sentia disposta e trabalhava normalmente. Por isso, me surpreendi quando disseram que o intestino do meu filhinho poderia estar com uma obstrução. Os médicos chegaram a cogitar que tivesse síndrome de Down. A partir desse momento, eu me preparei para uma situação bem difícil. Acredito no poder da palavra e repetia sempre para Pedrinho: “Eu te amo e te aceito do jeito que você vier”.
Isso me ajudou a enfrentar tudo que viria e a dar um significado diferente e positivo aos problemas. Com 36 semanas, senti um mal-estar enorme e as contrações vieram. O bebê nasceu e logo percebi que não seria possível levá-lo para casa. O diagnóstico foi síndrome do intestino curto (SIC), uma doença rara. Pode acontecer de a criança nascer sem o intestino delgado – responsável pela absorção dos nutrientes – ou com apenas uma pequena parte dele. O do Pedro estava necrosado e teve que ser extraído quase na totalidade. Meu filho seguiu para a UTI neonatal e permaneceu ali por 169 dias. Chegou a ser o mais velho, mal cabia no bercinho. Em outra cirurgia, seu intestino foi aumentado de 12 para 25 centímetros. Pedro se alimentava por meio de sonda.
Foi transferido para o Hospital Infantil Sabará, em São Paulo, e lá o gastroenterologista constatou a necessidade de transplante. Sim, Pedro precisaria da doação de outra criança. No período que estive com ele na UTI, não deixei de trabalhar, pela internet. Era até uma forma de me distrair, de pensar em outras coisas. Foram oito meses. Dois deles sem pôr o pé na rua. Quando saí, me senti deixando uma caverna, a luz do sol me ofuscou, o barulho dos carros incomodou.
Procurando informações sobre o transplante, descobri que ele só poderia ser feito nos Estados Unidos e que o custo era de 1 milhão de dólares. Não desanimei. Coloquei na cabeça que nada era impossível; eu faria qualquer coisa para salvar meu filho. Comecei, então, uma campanha de doações pela internet, que chamei de Amigos do Pedrinho. Eu não queria que ninguém o visse como coitado. Pelo contrário, essa história poderia gerar um fio de esperança para as pessoas. Familiares e amigos atuaram em mais frentes, como uma caminhada no Parque do Ibirapuera, em que a taxa de inscrição engrossou o financiamento do transplante. Eles promoveram ainda bingos e bazares com muito empenho. Fui também a programas de TV, recebi doação de gente famosa. Milhares de pessoas passaram a acompanhar a história de Pedrinho, num misto de fé, amor, gratidão e caridade. Chegaram muitas mensagens, todas me dando força e inspiração.
Pedro já está com 1 ano e 8 meses. Em outubro passado, fomos para os Estados Unidos, onde ainda permanecemos. Em março, ocorreu o transplante. A briga não para nunca, é uma provação atrás da outra. Ele já enfrentou um processo de rejeição e agora tenta combater um vírus. Mas já se alimenta, pela boca, com papinhas. Fico ao seu lado o tempo inteiro, me preocupo em passar calma e tranquilidade. Meu filho é muito observador, está sempre atento ao que falo. Mas, às vezes, tenho medo, me sinto triste. Nesses momentos, vou para o banho, aproveito para chorar bastante e converso com Deus. Agradeço todos os dias pelo grande milagre de viver com Pedrinho.”
Depoimento a Mariana Conte
“Para não vê-lo sofrer mais, respeitei sua vontade e deixei meu filho morrer em paz”
Lúcia Helena Santos Françozo, 47 anos, dona de casa
Vi Jeferson Felipe, o Fê, sofrer tanto que não suportava mais prorrogar aquilo. Para ele, a vida deixara de fazer sentido. Ainda dói, mas me sinto tranquila. Foi por amor e respeito ao desejo do meu filho que o deixei partir. Fê adoeceu aos 16 anos, logo após o pai morrer de câncer. Sofria com pneumonias seguidas. Levei a um hospital, em Guarulhos (SP), onde moro. A suspeita era de algo parecido com tuberculose. Aos 18, ainda sem diagnóstico, enfrentou uma crise de falta de ar com febre e cansaço. Em um hospital em São Paulo, descobriram a fibrose cística, doença crônica, sem cura, que atinge sobretudo os pulmões. Também havia uma bactéria resistente e rara no mesmo órgão. Por seis meses, Fê recebeu antibióticos por um cateter. Obrigado a ficar em casa, deixou a faculdade e o futebol. Eram inalações e injeções de enzimas diárias, fisioterapia para ajudar na respiração, internações… As crises não davam trégua.
Aos 20 anos, com 1,80 metro de altura, pesava 44 quilos. Sua médica o encaminhou para uma equipe de cuidados paliativos – especialidade que pretende aplacar o sofrimento diante de uma doença que ameaça a vida. A missão era ganhar peso para entrar na fila do transplante de pulmão. Com uma sonda no estômago, recebia os suplementos alimentares. Vi Fê apático e desanimado. Ele estava com 21 anos quando senti que viveria seu último Natal. Reuni a família em uma linda festa. Ele puxou minha irmã Dulce e disse a ela que não tinha medo da morte, porque já não sentia mais prazer algum em viver. Refletiu sobre a fragilidade da vida com tranquilidade. Eu, em contrapartida, não deixei o clima ficar triste. Ele até me perguntou como ainda conseguia fazê-lo rir. ‘Isso é coisa de mãe’, respondi. Chorava escondido, pois sabia que meu filho resistia por mim e pela irmã caçula. Por ele mesmo, já teria desistido. ‘Vou ficar bem, vocês é que vão sofrer um pouquinho’, brincava.
Na última internação, em janeiro de 2011, os antibióticos não faziam mais efeito. Ele chorou muito. Comemoramos no hospital seu aniversário de 22 anos e o fato de ter atingido 50,5 quilos, peso mínimo para o transplante. Mas o desconforto respiratório era tão grande que a cirurgia deixou de ser uma possibilidade. Ele sentia muita dor, mal falava, não ficava sem a máscara de oxigênio. Foi um choque quando soube que teria de usar um respirador artificial. Apesar do susto, perguntou se passaria a dormir melhor. E me pediu para não deixá-lo sofrer mais. Trocamos um sorriso reconfortante. Em seguida, a equipe médica foi aumentando a sedação. Tomei uma decisão: não reanimá-lo caso o coração parasse. A proposta era lhe dar conforto para esperar a morte. Da UTI, seguiu para a semi-intensiva. Assim, pudemos estar com ele nas suas últimas noites. Em uma tarde chuvosa de fevereiro, vi a pulsação quase sumir. Assisti pelo monitor os batimentos cardíacos diminuírem. Fiquei abraçada a ele até o coração parar de vez. Meu filho morreu entre a irmã e a mãe. Em paz. Eu também me sinto em paz.”
Depoimento a Beatriz Koch
“Vi minha filha quase morrer por um tipo raro de alergia. Hoje, luto para que outros bebês não sofram com o mesmo problema”
Mônica Belotto, 39 anos, advogada
Meu primeiro filho, Yuri, tinha menos de 3 meses quando descobri que estava grávida de novo. Elis nasceu no dia 8 de outubro de 2012. Na primeira hora de vida, com hipoglicemia, ela foi levada à UTI e recebeu leite artificial, fórmula que contém leite e aditivos. De volta ao quarto, começou a regurgitar uma gosma esverdeada. Chamamos a pediatra, mas ela disse que aquilo era normal. Três dias depois recebemos alta. Em casa, segui dando o peito e a fórmula. Até que Elis vomitou sangue. Em choque, ela foi direto para a UTI. Não dá para descrever a sensação de ver um bebê de uma semana naquele estado. Para investigar, os médicos abriram a barriguinha dela, mas não chegaram a nenhuma conclusão. Só quando completou 1 ano e 2 meses descobriram o que nos fazia correr para o hospital, apavorados e com enorme frequência. Elis tinha a síndrome da enterocolite induzida por proteína alimentar (FPIES), mal pouco conhecido e bem mais grave que a intolerância à lactose – basta ao alérgico entrar em contato com traços de leite para ter essas reações severas, como ocorre com Elis.
Para evitar que ela ingerisse algo contaminado com leite, não comíamos mais fora de casa. Logo surgiram as críticas: ‘Relaxa, Mônica, não leve a doença tão a sério’. E a pior de todas: ‘Mãe neurótica é que deixa a filha doente’. Um dia, comprei um leite vegetal para testar. No quinto, fui com Elis ao mercado comprar mais, pois parecia que estava lhe fazendo bem. Ali, no meu colo, ela teve a pior reação. Ficou letárgica e com os lábios roxos. Eu sabia que tinha 40 minutos para chegar a um pronto-socorro e evitar que ela sofresse uma parada cardíaca. A caminho do hospital, pedi ajuda aos deuses, tive dó de mim. Descobri depois que, apesar de o tal produto ser vegetal, continha traços de leite provavelmente por ser produzido em máquinas que processavam alimentos lácteos também.
Elis foi forte, superou a situação. Eu, não. Cheguei em casa e disse ao meu marido: ‘Vamos atrás da maior autoridade no assunto’. Era a médica americana Anna Nowak-Wegrzyn, que nos encaminhou para a presidente da Associação Internacional de FPIES, nos Estados Unidos. Na conversa, percebemos que ninguém sabia muito sobre a síndrome nem qual era o melhor tratamento. Liguei para a gastropediatra da Elis e pedi ajuda. Queria médicos que topassem uma empreitada para enfrentar o problema e, em pouco tempo, nascia a FPIES Brasil, grupo que estuda e divulga a síndrome aqui. Já são 60 crianças brasileiras diagnosticadas. Parei de advogar para me dedicar a isso.
O trabalho é difícil, as finanças e o apoio ao projeto são escassos, às vezes precisamos tirar dinheiro do próprio bolso. Só não desisto porque a cicatriz na barriga de Elis não me deixa esquecer. Ela me dá forças, eu arregaço as mangas e vou em frente.”
“Quero justiça para o meu filho e mudar a realidade truculenta da periferia”
Débora Maria da Silva, 55 anos, criadora do grupo Mães de Maio
Eu era uma dona de casa. Hoje, coordeno o grupo Mães de Maio, que tem uma causa: acabar com a matança de jovens pobres e pretos. Só entendi o genocídio dessa juventude no dia 15 de maio de 2006, quando um projétil atingiu meu filho Édson, na época com 29 anos. Era domingo, meu aniversário, e a família comemorava com um almoço, em Santos (SP). O estado tinha dado o toque de recolher porque no dia 12 começara uma guerra sangrenta que não era nossa, mas entre a polícia e o Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa que dominava os presídios. Nunca se matou tanto quanto naquele maio. O primeiro balanço contou 493 cadáveres; a ONG Conectas Direitos Humanos, 532; pesquisadores americanos da Universidade Harvard, 600. Nossa primeira vitória foi convencer a imprensa de que os mortos não eram bandidos: 2% tinham passagem pela polícia.
Falei até com a presidenta. Em 2013, recebi em Brasília uma medalha do governo no Fórum Internacional de Direitos Humanos. Pedi a Dilma para empenhar o Congresso e a nação na desmilitarização da PM, uma das polícias que mais matam no mundo. ‘Aqui são liquidadas 56 mil pessoas por ano, 33 mil de 12 a 18 anos. Existe pena de morte na periferia’, eu disse a ela.
Que futuro os jovens terão se a sangria não for estancada? Para que reduzir a maioridade penal? Criança negra nasce podendo ser presa, é gerada sem direitos, sujeita a uma educação falida que não prepara para um futuro digno. E o Estado transforma as favelas em depósito de suspeitos para mostrar que existe uma segurança pública atuante. Mas atuar acabando com nossos filhos?
As lágrimas me ensinaram a resistir no meu direito. Na Rádio Trianon, debati com um desembargador do tribunal que julgou em 2012 o caso do meu filho – só na parte civil – e concluiu que o estado de São Paulo era culpado. Disse a ele que queremos o julgamento criminal. Se o estado tem culpa, que aponte o matador. Questionei também por que arquivaram os inquéritos. Ele respondeu que havia um erro na base, na Polícia Judiciária, que deveria descobrir a autoria. ‘Ora’, retruquei, ‘é inaceitável que uma polícia mate, a outra não apure e o Ministério Público, numa canetada, peça o arquivamento.’ A conversa acabou aí.
Édson já havia sofrido preconceito por viver na periferia. Considerado suspeito de um assalto, assinou uma confissão sob tortura. Foi condenado e preso por dois anos. Não descansei enquanto não juntei provas e apontei à Justiça o verdadeiro assaltante. Um indulto limpou sua ficha, e ele começou a trabalhar. Ao sair de casa, naquele domingo de maio, foi rendido no posto de gasolina. Os policiais chegaram dando murros. Édson mostrou o holerite, e a PM foi embora. Logo depois, acabou sendo alvejado. A polícia pesquisou 23 vezes sua ficha na tentativa de justificar que morrera por ser bandido.
Já fizemos um filme e um livro sobre nossa luta. Reúno mulheres por todo o país querendo multiplicar a visão das mães na sociedade. Quero que isso gere políticas públicas de educação, saúde e segurança. E, para não falar só em mortes, trabalho com crianças dos cortiços de Santos, em ações que envolvem teatro e hip hop. Assim, podem ter chance de viver dias melhores.”
Depoimento a Patricia Zaidan
“Sem dinheiro e sem estudo, criei coragem e saí de casa para que minhas filhas não apanhassem do meu marido”
Maria Julia de Carvalho, 66 anos, aposentada
Meu martírio começou depois de um ano de casada. Naquela época, Luís, meu marido, passou a beber com muita frequência. Quando chegava em casa, não apenas me batia como ameaçava me matar com faca ou por estrangulamento. Como ele ficava muito alterado pela bebida, eu conseguia escapar. Mas não era fácil. Cheguei a passar noites ao relento, debaixo de uma árvore. Ele não me achava porque era uma escuridão imensa naquele interior do Ceará, sem energia elétrica. Nasci no Rio Grande do Norte, mas minha mãe me entregou aos 28 dias de vida para uma tia, que me criou no sertão cearense. Como ela não podia engravidar, ao visitar minha mãe biológica, que já tinha quatro crianças, pediu que lhe desse o bebê. Eu vivi uma infância feliz; só lamento não ter ido à escola. Vê se pode: meu pai queria me manter analfabeta para que eu não escrevesse cartas para os namorados.
Luís foi meu segundo namorado. A gente morava perto e ficamos juntos em uma festa de São Cosme e Damião nos anos 1960. Eu tinha 19 anos; ele, 22. Como minha mãe era contra o namoro, fugi de casa e me casei sem o consentimento da família. No início, foi bom. Sem contar que graças a ele tenho dois grandes tesouros: minhas filhas, Edna e Francisca. Mas a bebida não apenas arruinou a vida de Luís como quase acabou comigo e com as crianças. Não me esqueço de uma noite em que ele chegou bêbado e corri para fora da casa para não sofrer violência. A ideia era retornar quando ele ‘apagasse’ na cama. Mas, quando voltei, vi Edna na janela fazendo gestos para que eu não entrasse. Ela sabia que o pai estava atrás da porta com uma roçadeira (espécie de foice) para me matar.
Esse foi a gota d’água. Eu tinha que poupar as minhas meninas. Elas acompanhavam, apavoradas, aquela situação. Uma vez Luís chegou a empurrar as duas, e eu morria de medo de que ele batesse nelas também. Meu maior desejo era dar uma vida feliz às minhas filhas. Movida por isso, criei coragem e resolvi sair de casa apenas com um saco de roupas, mas levando comigo Edna, então com 6 anos, e Fran, 3. Os primeiros meses foram na casa de parentes. Depois, cheguei a Orós (CE), onde morava minha mãe biológica. Fiquei ali por sete anos, trabalhei em uma fábrica de processamento de algodão, onde finalmente aprendi a ler e escrever. Para mim aquilo foi libertador!
Sempre guiada pela necessidade de dar uma vida confortável às meninas, resolvi mudar para São Paulo, onde ainda vivo. Edna veio na frente, morou com minha irmã. Fiquei quatro anos sem ver minha filha. Foi horrível, a saudade era enorme! Um dia, no início dos anos 1980, peguei o ônibus em Orós com a Fran e enfrentamos três dias de viagem até São Paulo. Não tinha dinheiro para nada e meu irmão nos pegou na rodoviária. Com a ajuda de amigas, comecei a trabalhar como costureira em casas de família e depois fui para uma fábrica de bonecas.
Por seis anos, morei em um quartinho com Edna e Fran. Era uma vida dura. Às vezes a gente precisava dividir um ovo frito. Mas, com o tempo, elas começaram a trabalhar, e as coisas foram se ajeitando. Edna tem hoje 46 anos, é mãe de Glauber, 25 anos, trabalha com telemarketing e faz faculdade de letras. Já Fran, que era estilista no Brasil em uma grande marca de moda praia, mudou-se para os Estados Unidos em 2001 e continuou com essa atividade. Lá se casou com um economista, o Joseph, e há três anos me deu uma neta, Julia, batizada assim em minha homenagem.
Não posso reclamar de nada. Atualmente passo seis meses do ano em San Diego, na Califórnia, na casa da minha caçula, e o restante no Brasil. E todos os dias agradeço a Deus por ter conseguido criar duas mulheres tão generosas e batalhadoras. Essa é, sem dúvida, minha maior realização.”
Depoimento a Ana Paula Orlandi