Como boa parte dos brasileiros, Bárbara Franz usa roupas de segunda mão desde que nasceu. Com duas irmãs mais velhas, ela “herdou” peças do guarda-roupa delas, que, depois, repassou para a caçula. “Também ganhei algumas que eram da minha mãe e da minha avó. Uso até hoje”, conta ela à CLAUDIA, aos 33 anos. “Aprendi a pensar no consumo de itens usados como forma de economizar, mas, na vida adulta, entendi que essa é uma prática de sustentabilidade. Hoje, adoro brechós”, diz a grande entusiasta da moda circular. Bárbara garimpa especialmente tecidos naturais, como algodão, linho, viscose e lã. “Fujo do poliéster, porque sei que microplásticos se soltam das fibras e vão parar nos oceanos. Além disso, peças em tecidos naturais geralmente duram mais.”
Hoje, 70% dos compradores de itens usados “gostam do fator sustentável” associado ao consumo desses produtos, comparado com 62% em 2018, de acordo com o estudo A (re)descoberta da moda seminova no Brasil, realizado pelo Boston Consulting Group (BCG) e o Enjoei, que ouviu 3 mil pessoas de todo o país, de diferentes idades e perfis socioeconômicos. A estimativa é de que esse mercado cresça de 15% a 20%, ultrapassando o
valor do mercado de fast fashion até 2030.
O setor têxtil é responsável por cerca de 8% da emissão de gases de efeito estufa no mundo, perdendo apenas para a indústria petrolífera. Além disso, a produção de um quilo de tecido envolve a utilização de mais de meio quilo de agentes químicos e uma grande quantidade de água. Isso sem contar o impacto ambiental da cultura do descarte: estima-se que um caminhão de roupas usadas seja despejado em aterros ou queimado a cada segundo no mundo. O estudo Pulse of the fashion industry, publicado pela BCG em 2019, indica que até 2030 a indústria global de vestuário e calçados terá crescido 81%, chegando a 102 milhões de toneladas de roupas e acessórios, exercendo uma pressão sem precedentes sobre os recursos do planeta.
Apesar da preocupação com o impacto socioambiental do consumo pesar, a sustentabilidade não é o primeiro fator que faz com que as pessoas apostem na moda circular. “O principal é o preço. A maioria das pessoas compra porque quer algo de qualidade com um preço bom. Depois, vem a questão da sustentabilidade, seguida pelo público que é caçador de achados, que gosta de peças únicas”, diz Ana Luiza McLaren, cofundadora do Enjoei.
Marília Gabriel, de 25 anos, representa uma mistura de todos esses perfis. Ela começou a comprar peças de segunda mão aos 17 anos, para ajudar uma associação beneficente, e, hoje, consome quase exclusivamente de brechós. “Sempre penso no tanto de água consumida na fabricação de cada roupa, na mão de obra muitas vezes precarizada que está por trás. Nesses lugares, você paga menos por roupas de mais qualidade e consegue até achar marcas de luxo”, conta ela, que compra principalmente bolsas, camisetas e jeans. Além desse hábito, Marília leva peças que ela mesma já não usa para trocar por outras nas lojas de segunda mão. Durante os dois anos de isolamento devido à pandemia de Covid-19, também vendeu
algumas peças pela internet.
Ana Luiza considera que essa é uma prática que vem se naturalizando. “As pessoas ainda sentem vergonha de vender as próprias roupas. Mais do que vergonha, é uma espécie de culpa por vender em vez de doar. Mas a realidade é que sempre tem aquelas roupas que nem são doadas nem vestidas, ficam se acumulando no armário. Essas são as peças que geralmente são vendidas. Quem tem o hábito de doar não vai deixar de fazer isso”, argumenta. Há relatos e documentos históricos que mostram que já no século 17 havia um mercado aquecido de compra e venda de peças usadas em Veneza e Londres, inclusive de famílias nobres. Nos anos 1980 e 1990, as visitas aos brechós tornaram-se mais populares.
Atualmente, nem o segmento de luxo escapa dessa tendência de mercado, pelo contrário. Segundo outro estudo realizado pela BCG, a compra e venda de itens luxuosos de segunda mão alcançou 36 bilhões de dólares no mundo, cerca de 9% de todo o mercado desse setor. O crescimento é puxado pelas vendas online, responsáveis por 25% do total, sendo os millennials e a Geração Z os maiores consumidores. “A experiência de compra de itens usados na internet é tão similar àquela de comprar uma peça nova que esse consumo mais sustentável vai se consolidando de forma orgânica”, comenta Ana Luiza.
DNA sustentável
Para Jonathan Marques, consumo circular e consciente tem a ver com a união de sustentabilidade e design de moda. “Não precisa deixar de ser fashion para ser sustentável”, diz o fundador da recém lançada plataforma ADN Reset, que reúne mais de 12 marcas que adotam técnicas limpas de criação e tem uma seção de economia circular, onde usuários podem criar perfis para trocar roupas, acessórios e calçados. “Eu mesmo era alguém que consumia muito e tinha o guarda-roupa sempre cheio. No meio de uma crise existencial para entender com o que eu gostaria de trabalhar e como contribuir para a sociedade [ele foi primeiro advogado e depois atuou no marketing de luxo], percebi que não fazia sentido esse acúmulo de bens e comecei a me desapegar das coisas.”
O propósito, diz o fundador, é incentivar “o consumo de uma moda com valores” e o entendimento de que algo sustentável não é feio ou sem graça e pode, sim, ter um design associado ao valor da peça. O princípio é similar ao que norteia a estilista Ana Luisa Fernandes nas coleções da Aluf, marca criada por ela em 2018. “Comecei me questionando o que justifica a criação de moda num mundo superlotado de coisas e passei a pensar o design como solução”, conta ela, que trabalha exclusivamente com matérias-primas nacionais. Além de fomentar a economia e empregar a mão de obra locais, essa decisão aproxima as cadeias produtivas, diminuindo a necessidade de transportes e, consequentemente, a emissão de CO2.
Ana Luisa cria peças com alto valor de custo, mas não acredita que sustentabilidade precise ser sinônimo de luxo. “Faço peças sob medida, com tecidos de maior qualidade e mais duráveis. O que hoje é considerado luxo é a moda cotidiana de antigamente. Não critico o consumo em fast fashions, porque acho que esse é um discurso elitista considerando a realidade brasileira, mas acredito que o segredo é entender a sustentabilidade aliada à tecnologia, para que esse consumo menos nocivo seja cada vez mais acessível para todos.”
Foi justamente apostando na tecnologia que Fernanda Veríssimo e Raquel Ferraz fizeram da Yes I am Jeans, que surgiu em 2012, uma marca que os clientes associam à sustentabilidade. Além da durabilidade e do caráter atemporal do jeans, elas escolheram trabalhar com tecelagens que têm processos mais limpos de produção e, assim, compensar pelo menos um pouco o grande consumo de água na indústria têxtil.
“São empresas que usam citronela em vez de pesticida para proteger os tecidos, e goma de mandioca para engomar as peças, em vez de produtos industriais. Também buscamos lavanderias que economizam ou reutilizam água, além de adotarmos tingimentos naturais”, explica Raquel. “Sempre acreditamos no slow fashion e no consumo consciente, mas foram os próprios consumidores que passaram a nos enxergar assim. Como muitas marcas, fazemos o que é possível, mas ser totalmente sustentável requer ter o controle de toda a cadeia de produção, e isso é muito difícil”, pondera Fernanda.
O cuidado também envolve pensar em cortes e modelagens que transitem entre dia e noite e que combinem com quase todas as peças do guarda-roupa de uma pessoa. Para a próxima coleção, estão desenvolvendo uma calça 100% feita de lixo têxtil. Em São Paulo, onde fica a única loja física da marca, há um pequeno projeto que recebe os jeans usados dos clientes e faz upcycling das peças, que voltam para a arara para serem revendidas com etiqueta de segunda mão. “Se trata de comprar de maneira apaixonada, quando há um encanto real pela roupa, não de forma desenfreada”, resume Raquel. E você, o que tem feito para ter um armário mais sustentável?