Santuza Prado sempre foi apaixonada por moda. Por anos trabalhou como consultora e personal stylist e seguiu como figurinista na área de publicidade. Ela não sabia, mas sua vida mudaria drasticamente depois do nascimento do sobrinho Gustavo. Gugu, como é chamado pela família, era uma criança saudável e muito alegre como outra qualquer. Ao completar 7 anos, professoras da escola começaram a perceber algumas mudanças em seu comportamento e uma maior dificuldade em acompanhar as aulas.
Algum tempo depois, Gustavo foi diagnosticado com lipofuscinose, uma doença degenerativa caracterizada pelo depósito anormal de certas substâncias nos neurônios, com comprometimento cognitivo e motor. Santuza sempre ajudou o irmão e a cunhada nos cuidados com o sobrinho e, como profissional da moda, prestava atenção especialmente a um aspecto: a dificuldade para conseguir trocar suas roupas e cuidar de sua higiene. “Hoje ele tem 22 anos e mais de 80 quilos. Além de ser difícil para quem troca, é difícil pra ele, que fica muito inquieto. A cada troca, ele tinha convulsões. Era difícil até para enfermeiras especializadas”, conta Santuza em entrevista a CLAUDIA.
Depois de ter seu terceiro filho, ela resolveu diminuir o ritmo das produções e campanhas. Foi nesse período, com um pouco mais de tempo livre, que pensou que poderia usar seus conhecimentos em moda para criar alguma coisa que ajudasse o sobrinho e outras pessoas com dificuldade de mobilidade e deficiências. “Eu me sentia angustiada assistindo ao esforço dos pais nos cuidados com o Gustavo e, ao mesmo tempo, desconfortável com a profissão que escolhi, ao perceber que sua promessa de oferecer bem-estar era restrita a pessoas sem limitações de mobilidade e, de preferência, altas e magras”, diz Santuza. Em uma conversa com uma amiga enfermeira geriatra, percebeu que essas dificuldades também se estendiam aos idosos. Assim, começou um longo período de pesquisa para conseguir desenvolver peças que tornassem a vida dessas pessoas mais fácil.
O início
“Comecei a pesquisar muito e a conversar com muita gente. Tive um encontro com um grupo de meninas cadeirantes que mudou completamente minha percepção. Uma delas me disse que tinha o sonho de ir no show do Paul McCartney, mas era praticamente impossível pelas dificuldades de locomoção e de troca de sonda em ambientes públicos. A partir daquele momento eu tive certeza de que queria trabalhar com essas pessoas”, conta a figurinista.
A primeira peça criada por Santuza foi o moletom Gu Prado, em homenagem a seu sobrinho. É um conjunto de moletom que se abre inteiro e se fecha quase como um envelope, com auxílio de um zíper. Assim, além de facilitar a troca de roupas, também fica mais fácil trocar fraldas ou sondas sem ter que movimentar o paciente. Essa foi a peça que deu origem à Freeda Moda Inclusiva, fundada por Santuza e sua sócia Juliana Sevaybricker.
Como fã de Frida Kahlo, Santuza se lembrou de sua história várias vezes ao produzir as peças para a marca. A homenagem à artista se somou à liberdade que ela queria dar para as pessoas com deficiência (PCDs), idosos e pessoas com mobilidade reduzida. “Hoje temos 14 peças, todas muito pensadas para atender às necessidades dos nossos clientes e suas famílias e cuidadores. Algumas delas tiveram mais de 5 protótipos até chegar no modelo atual. Cada uma que eu produzia, testava no meu sobrinho e mandava para amigas geriatras e enfermeiras para testarem nos pacientes. Recebia os feedbacks e aí fazia tudo de novo levando em consideração o que não tinha ficado tão bom”, conta.
A segunda peça da Freeda, uma das campeãs de vendas, é a camisa James, desenvolvida depois de Santuza descobrir que havia pacientes com Parkinson que levavam mais de 40 minutos para fechar os botões de uma camisa. O modelo possui ímãs no lugar dos botões, para facilitar o fechamento da peça.
Dificuldades de produção
As principais dificuldades surgiram justamente na criação da camisa James. Quando decidiu fazer a peça com ímãs, Santuza não conseguia encontrar ninguém que conseguisse embalá-los a vácuo para evitar eles oxidassem quando a camisa fosse lavada. Depois de muito procurar, a estilista encontrou uma pessoa que faria o trabalho, mas a muitas horas de distância de Belo Horizonte, onde mora. “E é ainda mais difícil porque, como o resto do mundo, infelizmente, os fornecedores e costureiras, não são preparados para lidar com esse grupo. Muitas vezes a gente liga querendo produzir algo e é muito difícil fazer com que eles entendam como estou pensando a peça”, explica a estilista.
Além de todas as facilidades para vestir, há também um cuidado com o tecido de fibra de bambu, que é confortável e não machuca a pele delicada dos idosos, proteção nos zíperes e nos elásticos. Segundo Santuza, tudo isso precisa ser pensado porque uma pessoa acamada fica mais sensível e qualquer pedacinho de roupa que fique encostando em um lugar errado pode ferir e irritar o paciente.
Esses pequenos detalhes encarecem muito as peças, o que dificulta as vendas. É um mercado pouco falado e pouco conhecido, por isso, ainda são produzidas poucas peças. “Mas eu sinto uma melhoria bem grande nesse aspecto. Quando começamos a Freeda percebemos que havia vários nichos que precisavam de atenção na moda. É um meio muito falho. Hoje em dia temos um grupo com várias marcas inclusivas, existem algumas especiais para pessoas com nanismo, outras para crianças com mobilidade reduzida ou com deficiência. Nós nos apoiamos muito, quando alguém chega e me pergunta se nós não temos roupas para criança na Freeda, por exemplo, eu indico outra marca. É um movimento muito legal”, afirma Santuza.
Vendas
As vendas da Freeda são feitas completamente através do e-commerce da marca. Por muito tempo, Santuza e Juliana tinham o sonho de transformar a marca em uma loja física, mas ao trabalhar por mais tempo com o público PCD, perceberam que não seria uma boa ideia, porque dificultaria o acesso dessas pessoas. Através da loja online, conseguem vender para todo o país e facilitar a entrega das peças às pessoas.
Em cada uma das peças no site, há um vídeo explicando como vestir, além de indicar o público para quem a peça é ideal e possíveis contraindicações. Esses detalhes são coordenados por Juliana e o marido de Santuza, Fernando, que trabalha com publicidade.
Próximos passos
Apesar da diminuição do ritmo com a pandemia, Santuza tem muitos planos para a Freeda nos meses seguintes. A próxima peça que deve ser desenvolvida é um macacão exclusivo para pessoas que tem Alzheimer. “Às vezes essas mulheres se esquecem onde estão e tiram a roupa. O macacão vai ajudar nesse sentido”, explica a fundadora.
Outro ponto importante é o foco no relacionamento com enfermeiros e cuidadores. Eles sabem como é cuidar desses pacientes e, principalmente, quais as maiores dificuldades que enfrentam. As peças da Freeda também podem facilitar seu trabalho, então, Santuza conta que quer realizar algum tipo de parceria com eles, para que possam apresentar os produtos aos pacientes e receber uma comissão com as vendas. “Queremos focar ainda mais na terceira idade, porque eles também são esquecidos. Às vezes, vestir uma roupa causa muita dor e ninguém pensa nesses idosos que tem reumatismo ou artrose. Nossas peças que fecham nos ombros são um sucesso porque diminuem as dores, já que a pessoa não tem que levantar os braços pra vestir. Queremos aumentar a presença nesse espaço e também buscar um investidor para conseguir crescer em escala”, afirma.
Empreender em um mercado tão específico e pouco falado é desafiador. Não há dúvidas de que iniciativas como a da Freeda podem melhorar a qualidade de vida de milhões de pessoas, mas pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida ainda são invisíveis para o mercado de moda e mesmo para boa parte dos investidores. Por isso, praticamente não há referências a seguir ou histórias bem-sucedidas para se inspirar. “A Freeda quer mudar isso e está tentando, mesmo com poucos recursos. Um passo de cada vez e, quem sabe, teremos histórias felizes pra contar”, finaliza Santuza.