Josefa: um restaurante marcado pela identidade feminina e receitas originais
É num espaço repleto de referências ao passado que Bel Crozera e Tainá Tancredo criam os pratos contemporâneos do restaurante no Paraíso (SP)
Muito se fala em gastronomia afetiva, a ponto até da banalização do termo. Mas o Josefa busca, de fato, um resgate da essência desse sentimento. No endereço recém-inaugurado no Paraíso, em São Paulo, as proprietárias gostam de enfatizar que um restaurante é feito de técnica, esforço e muito trabalho — a prova disso são suas receitas contemporâneas frisadas pela complexidade.
Contudo, a afetuosidade está presente em toda a atmosfera do estabelecimento com jeito de casa de vó. “A comida precisa de tempo, de reparo, de disciplina, de dureza; ela não tem essa função afetiva. Ela é profissional, mas servida num ambiente que desperta memórias”, define a sócia Bel Crozera.
A cozinha do Josefa é composta por duas figuras femininas intensas, diversas e complementares. Tainá Tancredo é coração, e se emociona ao falar de sua trajetória ao lado da amiga e sócia.
“Ela sempre chora, cara. Uma vez eu cheguei aqui durante a obra e ela estava abraçando o pedreiro e chorando”, gargalha Bel, demonstrando a intimidade que só uma verdadeira amizade pode conceder.
Entretanto, quando está na cozinha, Tainá é tomada por uma concentração inabalável, herança de sua trajetória marcada pela gastronomia francesa. Quem agrega descontração para esse cenário é Bel Crozera, tanto no dia a dia como no cardápio. Sem formação acadêmica, a chef gosta de exaltar a experiência obtida com os chefs com quem já trabalhou no passado.
“Eu não terminei a faculdade. Certo dia, um professor apontou que eu mais faltava do que ia para a aula, me disse que eu estava apta e deveria procurar um freela na área.” Concordando com ele, a chef foi em busca de uma oportunidade.
Desde então, a paulistana já passou por casas badaladas na capital, como a cozinha descomplicada da Void, e também por estabelecimentos em Lisboa, Belo Horizonte e no Rio de Janeiro — ali, no antigo bistrô francês Formidable, foi onde seu caminho felizmente cruzou-se com o da amiga carioca, em 2015.
“A gente tem um perfil parecido e sempre tive uma admiração muito grande pelo trampo da Tatá, então nunca a perdi de vista. Tenho uma parte muito criativa que me ajudou a chegar aos lugares, e acho que ela também sempre olhou para isso”, conta Bel sobre a decisão de convidar a amiga a embarcar na ideia de ter o próprio restaurante.
“Quando ela me ligou, eu estava trabalhando numa cidadezinha em Portugal, num momento horroroso da vida, com muitas saudades da família. Num primeiro momento, pensei que ela estava muito louca. Eu queria dar aula, e ter um restaurante é uma tarefa de muito desgaste, nunca esteve no meu radar. Mas quando ela me deu essa abertura, a vontade de realizar só foi crescendo.”
O que não se pode negar é a garra em comum que ambas uniram ao idealizar o Josefa, que começou de um desejo latente de Bel em expressar sua criatividade culinária, e que ganhou forma quando as duas se juntaram para fazer o negócio acontecer.
O primeiro sinal de que as coisas estavam no caminho correto veio da escolha do nome. Quando Bel enviou para a amiga uma lista com nomes femininos, foi o de Josefa que brilhou aos olhos de Tainá. “Eu pirei logo quando falei ele em voz alta e percebi sua sonoridade. E só depois a Bel me disse que era o nome da avó dela”, recorda a chef carioca.
“Acho que chegou a hora da gente pegar a rédea de tudo isso e tocar do jeito que a gente acredita”
Tainá Tancredo e Bel Crozera, chefs e sócias do Josefa
A escolha simboliza ainda a vontade das cozinheiras de trazer uma marca própria para o negócio: “Esse é um espaço onde eu posso fazer aquilo que já faço há 20 anos, só que de uma maneira feminina. É poder orquestrar uma empresa a partir da nossa visão, que é feminista: não essa coisa de ‘bandeirinha’, mas de verdade, todo dia querendo me impor e sendo silenciada, tendo que levantar a voz. Tentar colocar isso na cozinha é um processo que durou 20 anos. Acho que chegou a hora da gente pegar a rédea de tudo isso e tocar do jeito que acreditamos”, dizem as duas juntas, sempre se complementando.
A sintonia dentro e fora da cozinha, aliás, foi essencial para o desenvolvimento do negócio, desde sua concepção até hoje, lidando com todas as frentes que um restaurante exige. “Para dar certo, é necessário que não haja uma briga de ego entre as duas. Então, é preciso poder palpitar, pois não estamos disputando nada, mas sempre com respeito. É uma troca”, relata Tainá, ao que Bel já acrescenta: “Eu sempre busco a opinião dela para tudo, e ela sempre me apoia muito”.
Josefa traz um espaço com referências ao passado
Para abraçar essa história, as chefs optaram por um ambiente que traduzisse a trajetória marcada por laços de carinho e também pelo desejo de um espaço sustentável, que prezasse pela consciência do reuso. Tainá, que sempre amou garimpar, trouxe para o restaurante peças vindas dos mais inusitados contextos.
“Meus avós têm 73 anos de namoro”, conta ela sobre sua relação forte com a família. Foi a partir dessas lembranças que foi construída a decoração do Josefa: peças das casas das proprietárias, dos familiares e doações de amigos — muito provavelmente você vai encontrar no salão algum item em comum com a casa de sua avó, sejam as cadeiras de madeira ou as toalhinhas de crochê.
“A comida precisa de disciplina, de dureza; ela não tem essa função afetiva. Ela é profissional, mas servida num ambiente que desperta memórias”
Bel Crozera, chef e sócia do Josefa
Além do espaço físico, essa construção coletiva também aparece em alguns pratos, caso da broa de milho, que serve de cama para a criação com patê de fígado e coração de galinha. A sobremesa surgiu do caderninho da avó de uma amiga e foi transformada em um dos carros-chefe da casa.
O pavê também tem aquele gostinho familiar, já que a base do creme vem de uma receita de Cecília, tia de Bel. Nas mãos das chefs, o doce ganha equilíbrio com um toque de flor de sal, e textura com o biscoito de noz-moscada. Chamado de “sucrilhos” pelas cozinheiras, a bolachinha surgiu do erro de um preparo, quando Tainá se esqueceu de incluir ovos no preparo.
“Todo mundo gostou tanto que agora o pavê não pode mais ser servido sem ele”, relata Bel. Já a bochecha suína caldosa com gohan grelhado é o exemplo de como funciona o fluxo das chefs, a receita inicial veio de uma ideia de Bel, mas ganhou corpo nas mãos de Tainá, famosa pelos caldos intensos e saborosos.
E é com esse menu marcado por pratos inventivos, e tão difíceis de serem rotulados, que as duas têm escrito o comecinho da história do Josefa. “A gente ainda está na fase de correr atrás. O restaurante foi criado a partir de muitas memórias, mas ele ainda vai criar suas próprias histórias, e nisso só o tempo pode ajudar.” Que venham os próximos capítulos.
Créditos de produção
Texto: Marina Marques
Fotos: Bruno Geraldi
Edição de arte: Catarina Moura