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Tamara Klink, a 1ª mulher a invernar sozinha no Ártico

A velejadora Tamara Klink passou sozinha um inverno no Ártico. Uma experiência transformadora e reveladora de tudo o que não costuma ser vivido por mulheres

Por Beatriz Lourenço
14 ago 2024, 10h00
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  • Após se tornar a brasileira (entre homens e mulheres) mais jovem a cruzar sozinha o Atlântico, Tamara Klink acaba de entrar para a história como a primeira mulher a invernar sozinha no Ártico. Em julho do ano passado, ela partiu da costa da França a bordo do Sardinha 2, um veleiro de dez metros de comprimento, rumo a um fiorde inabitado na Groenlândia.

    A ideia era ver de perto as transformações da natureza e descobrir quem era ao se desfazer de todas as amarras sociais. Durante oito meses, a navegadora resistiu ao frio extremo, viveu junto de animais silvestres e enfrentou seus medos mais profundos. 

    Aos 27 anos, ela sabe a importância dessas realizações para uma rede de mulheres que vieram antes e que ainda estão por vir. “Fomos excluídas de uma grande parte de acontecimentos históricos”, afirma. “Nos impõem a crença de que precisamos ficar presas em gavetas e não arriscar. Que o único destino possível para uma mulher é aquele que a mantém protegida dos perigos.”

    Durante nossa conversa, ela mencionou que se acostumou a ficar só — e até descobriu que isso pode ser divertido. Percebeu que consegue se sentir completa sozinha. Mesmo que esteja ansiosa para rever os amigos e a família, Tamara não tem pressa para voltar e nem definiu os planos para o futuro. Seu projeto é passar pelas quatro estações na enorme ilha no Ártico antes de voltar ao Brasil e dividir com as pessoas o que aprendeu durante a jornada. 

    Entrevista com Tamara Klink

    Claudia: Como surgiu a ideia de fazer essa viagem?

    Tamara Klink: O Ártico é uma das regiões com os sinais mais claros dos efeitos das mudanças climáticas. Além disso, senti que era importante mudar o imaginário que as pessoas têm do que uma mulher é capaz de fazer. Pessoalmente, também era a oportunidade de entender quem eu era sem amigos, crítica, elogio, profissão — sem nenhuma das coisas que costumamos usar pra nos definir. 

    Esse projeto foi como você imaginava?

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    Não, foi muito diferente. A realização foi mais simples. A preparação, por outro lado, foi bem longa, desgastante e complexa. Tenho falado muito mais sobre a parte romântica, que é estar no mar e no meio selvagem. Mas, antes de vir para cá, passei por um período de incerteza — que é uma sensação mais próxima da vida de todo mundo. Isso significa pagar contas, assumir riscos, contratar pessoas, pedir empréstimo, conviver com atrasos e ficar noites e dias sem dormir. Levei muitos “nãos” e lidei com imprevistos. 

    Poderia dar detalhes do seu preparo?

    Durante um ano e meio, fiz vários tipos de esporte, como escalada, remo e musculação. Com a minha terapeuta, Nair Pontes, aprendi treinamentos de respiração, elaboração de projeções de futuro e interpretação de sonhos. Os sonhos, inclusive, foram muito úteis na hora de tomar decisões assertivas. Aqui, me expus a situações de exaustão, carência, solidão e a perigos diários — por isso, é fundamental saber resolver os problemas de forma rápida.

    Tamara Klink é a primeira mulher a invernar no Ártico.
    Para conseguir lidar com o desafio da viagem, Tamara Klink se preparou física e psicologicamente por um ano e meio. (Divulgação/Divulgação)

    Você fez história ao se tornar a primeira mulher a passar o inverno sozinha no Ártico. Qual é a sensação que isso traz?

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    Que é uma pena que tenha levado tanto tempo para isso acontecer. As mulheres foram excluídas de uma grande parte dos acontecimentos históricos. Foram privadas da exposição ao risco durante muito tempo e isso não é positivo porque não somos frágeis.

    Se pude fazer essa viagem, é graças a muitas mulheres que abriram caminhos antes de mim e que, de certa forma, permitiram a mudança da mentalidade. Tenho certeza que ninguém acreditaria em mim, uma mulher jovem, se não fosse por elas. Cada novo feito de uma mulher hoje não é isolado, mas o resultado de uma possibilidade dada por muitas outras que vieram antes. 

    Foram oito meses na Groenlândia entre o gelo, os animais e o mar. Como descreveria esse lugar para quem não sabe nada sobre ele?  

    O lugar onde estou tem transformações extremas de clima, paisagem e estado físico várias vezes por ano. Entre o inverno e o verão, o sol desaparece completamente ou se torna presente 24 horas por dia. As temperaturas mudam de menos 40 graus a 20 graus positivos. O mar vira terra, mas também congela e a gente pode andar sobre ele.

    Além disso, 90% dos animais vão embora ou reaparecem. Estar na Groenlândia é se adaptar o tempo inteiro. A gente é lembrado, principalmente no inverno, que os humanos sem objetos não podem viver aqui. As ferramentas, roupas, facas, potes e o barco são essenciais. Existem pessoas que vivem aqui há mais de mil anos graças à transmissão desses saberes e aos objetos. 

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    Como você usou a pintura, a literatura, a música ou a dança para se distrair durante esse tempo?

    Eu tinha que economizar a energia elétrica porque usava energia feita pelo vento. Então, inventava músicas e escrevia muito no meu diário. Ler personagens de livros era como encontrar pessoas muito próximas. Por isso, quando acabava uma obra era como se despedir de um amigo ou terminar uma relação.

    Por um bom tempo, a ficção me parecia mais real do que aquilo que eu estava vivendo, assim como os personagens eram mais reais do que a lembrança da minha família ou o encontro com as raposas. Me parecia mais verdadeiro do que abrir a janela para um dia completamente branco, onde não conseguia ver onde começava o céu e onde acabava o mar.

    Você gravou algumas mensagens para sua avó e publicou durante a viagem. Qual é o papel da sua família na realização desse sonho?

    A minha avó não aprovou a viagem. Ela estava preocupada com a possibilidade de nós não nos revermos, o que é bem compreensível. Por isso fiz, antes de partir, vários vídeos para explicar para ela o que eu estava vivendo e que a minha partida não era um abandono.

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    De certa maneira, por mais que estivesse ausente, minha avó recebia o recado através de pessoas que encontrava. Ela era lembrada pelos outros que eu não a tinha deixado. Recebia abraços de pessoas emocionadas. Isso foi importante porque ela é minha melhor amiga. É uma pessoa com quem eu gosto de estar e tenho muita afinidade. É para ela que conto meus pensamentos mais secretos.  

    O que você aprendeu sobre si mesma e sobre a natureza?

    Que não há separação entre humano e natureza. Esse discurso que nos divide permite que a gente acredite que podemos salvar outras espécies, esquecendo que nossa própria está em risco. Isso autoriza a hierarquia das espécies e nos autoriza a acreditar que os recursos não têm fim.

    Durante esse tempo, como encarou a solidão e o silêncio?

    Gosto de estar só e também gostei do silêncio. Acho muito libertador e muito feliz, especialmente para uma mulher, poder estar só e descobrir o que é ser só humana antes de ser mulher. Ser só gestos, carne e osso. Ser só aquilo que ela pode fazer sem ser constantemente comparada, medida, invalidada, desencorajada, sem ser considerada fraca ou incapaz.

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    Quando a gente descobre quem a gente é quando está só, fica mais claro que não existe fraqueza sem comparação, que não somos incompletas e que a solidão não é um problema. Ela pode, inclusive, ser muito divertida.

    O que é ser uma mulher livre?

    É uma mulher que tem coragem de desagradar. 

    Quando a gente descobre quem a gente é quando está só, fica mais claro que não existe fraqueza sem comparação

    Tamara Klink
    Tamara Klink detalhe suas experiências invernando no Ártico.
    Após a experiência, Tamara passou a acreditar que não existe separação entre humano e natureza. (Divulgação/Divulgação)

    Qual foi o momento mais difícil e o mais gratificante da viagem? O mais difícil foi a preparação. Também foi muito difícil lidar com o meu medo e os medos dos outros, que eram adicionados sempre. Acontece que eu conseguia conversar com os meus próprios medos — eles eram finitos, uma hora acabavam porque eu chegava no limite da imaginação.

    Mas os medos dos outros eram sem fim. Cada encontro com uma pessoa nova me trazia um medo que eu ainda não tinha. Então, vim para cá carregada de medos de muita gente. 

    A parte mais gratificante é poder conversar e contar tudo o que aconteceu. Enquanto eu vivia o inverno, tudo se tornou normal. As dificuldades, as restrições, as limitações e as possibilidades de viver em uma placa de gelo se tornaram cotidianas. E agora, conversando com outras pessoas, estou descobrindo o quanto era extraordinário o que eu vivi.

    O que você leva dessa jornada que gostaria de transmitir a outras pessoas? Gostaria que outras pessoas, especialmente mulheres, tivessem a oportunidade de saber o que é ser humana antes de ser mulher. De saber como pode ser bom estar na companhia de si mesma e que pudessem descobrir quão longe elas podem ir usando apenas as próprias pernas.

    O que mais gostei de fazer aqui foram coisas que podemos fazer em qualquer lugar, como caminhar. Por mais que eu me sentisse em perigo por alguns momentos, pensava: “Nossa, hoje andei seis horas. Não sei se teria coragem de fazer isso em São Paulo”.

    Mas, para terminar com algo positivo, também gostaria que todas as mulheres tivessem a oportunidade de, durante algum tempo, descobrir o que é viver se preocupando apenas com a própria sobrevivência e com o próprio prazer — se colocando em primeiro lugar.   

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