“Juntamos, literalmente, a fome com a vontade de comer.” É assim, com bom humor, que Adriana Salay gosta de definir sua união com Rodrigo Oliveira. Foram essas as palavras que escolheu nos seus votos de casamento, e também as que usa quando perguntam sobre esse encontro de almas.
A vida da historiadora sempre foi guiada pela pesquisa sobre a alimentação, mas, ao unir as escovas de dente com o chef do tradicional restaurante Mocotó, suas motivações e pesquisas ganharam outros significados grandiosos.
Quando conheceu Rodrigo, a intenção era saber mais sobre o cenário alimentar brasileiro, num grupo de estudos entre pesquisadores e cozinheiros. Anos depois, a relação profissional virou namoro e o início de muitos planos — incluindo filhos e, também, ações sociais.
“Trabalhamos o mesmo objeto, que é a alimentação, mas de óticas distintas. Apresentei para ele muitas coisas que lia. Vejo que ele mudou o discurso, e temos um afinamento de visão de mundo. A generosidade, o jeito como ele trata as pessoas, como ele divide e compartilha o mundo, ele me ensinou sobre isso também”, declara.
Por muitos anos, Adriana se debruçou em pesquisas sobre a fome, temática do seu doutorado, que levou seis anos para ser concluído. “Analisei a fome até 1946, fim da Segunda Guerra Mundial, e havia relatos horrorosos de mães que mataram os filhos e casos de canibalismo. Fiquei muito impressionada. Quando começou a pandemia, apesar de não ser uma guerra, enxerguei como uma catástrofe que também mexeria com a sociedade na mesma proporção. Sabíamos que as pessoas vulnerabilizadas seriam as mais atingidas”, recorda.
Numa dessas noites sem dormir, sem saber como seria o dia seguinte, Rodrigo deu a ideia de distribuir marmitas, e assim surgiu o Quebrada Alimentada. “Fomos simplesmente fazendo e a coisa ganhou complexidade”, explica Adriana sobre a iniciativa que já ofereceu cerca de 120 mil marmitas, com cardápio pensado por Rodrigo.
Parte dessa ideia surgiu em 2018, numa pesquisa feita pelo casal comparando práticas do Mocotó ao IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da Vila Medeiros, bairro que abriga o restaurante na Zona Norte de São Paulo. Descobriram que o salário médio dos funcionários é quase o dobro dos salários da região. À época, 65% dos funcionários do Mocotó eram residentes do próprio bairro.
“Para mim, foi uma fuga para aquela dor que eu sentia. Os relatos de fome são muito pesados, mas o que você faz com isso? Eu poderia definhar ou transformar isso numa ação.” Adriana passou a coordenar o projeto e hoje toma conta da comunicação, mapeamento, relacionamento com as famílias e captação de recursos.
“Temos que dividir o que é bom para que as pessoas se sintam amparadas, acolhidas e bem acostumadas a receber afeto.”
Adriana Salay
O próximo passo é a construção de uma nova cozinha-escola no bairro, dentro de uma ocupação que abriga 860 famílias, despejadas durante a pandemia. “É um lugar não só para distribuir refeições, mas que cria um núcleo de transformação. Os trabalhadores da obra são pessoas da própria comunidade”, explica sobre o projeto que viabiliza ainda cestas básicas para 250 famílias e tem parceria com uma Unidade Básica de Saúde, identificando famílias em vulnerabilidade. “Uma coisa que nos perguntam muito é se distribuímos as sobras do Mocotó, mas somos contra isso. Temos que dividir o que é bom para que as pessoas se sintam amparadas, acolhidas e bem acostumadas a receber afeto.”
Contudo, a relação de Adriana com a comida não se limita à teoria. Habituada a estar nesse local, a historiadora foi criada por uma família de origem croata e italiana — ou seja, era na cozinha que as histórias aconteciam. “Cozinhava domesticamente, mas depois que comecei a andar com cozinheiros, falei: ah, eu não cozinho, não”, brinca.
“Mas cozinhava bastante antes de casar, aliás, de ter filhos. Depois da chegada das crianças, fiquei mais com a função do lanche; sou eu quem monto as lancheiras e mando pra escola.”
Apesar da modéstia, era de Adriana a tarefa de cozinhar em família: “Fui criada com minha bisavó, que era croata. Ela era cozinheira e a impressão que tenho é que ela se juntou muito com a comunidade italiana. Então, cresci nesse tipo de cultura de macarrão com repolho e com batata — que a gente brinca que é o maior pleonasmo que existe [risos], mas era algo que comíamos”.
Num menu dividido com o marido para este editorial a quatro mãos, Adriana elegeu três receitas que exemplificam suas muitas versões. O nhoque e a tortilha são preparos que remetem às memórias distantes, de quando observava a bisavó cozinhar, e que passou para a rotina da família, principalmente aos domingos.
Já as panquecas estão sempre na lancheira das crianças, visto que Adriana é a responsável por prepará-las diariamente, garantindo algo que faça os olhos dos pequenos brilharem (as da página anterior, aliás, foram devoradas por Alice e Pedro, filhos do casal, logo após as fotos). Douradinhas e aromatizadas com cumaru (ou essência de baunilha), foram preparadas na tapioqueira rendada desenvolvida pela marca Mocotó — disponível na lojinha do restaurante.
Os pratos escolhidos por Rodrigo deixam sua marca registrada na gastronomia: uma culinária sertaneja e com o toque autêntico do chef. As receitas fazem parte de um menu que marca os 50 anos do estabelecimento criado por José de Almeida. O pai do chef fundou o Mocotó, que no início era uma Casa do Norte, em 1973.
Foi nesse cenário que Rodrigo se desenvolveu e viu o lugar se transformar em restaurante, e, nas suas mãos, ganhar reconhecimento mundial. Hoje, na comemoração do aniversário, seu propósito é ser “um restaurante melhor para o mundo”.
Os dadinhos de tapioca, um símbolo de sua trajetória, ganham uma nova versão feita com cereais fermentados. “Foi uma maneira de tornar a nossa receita ainda mais inclusiva. Ela é vegana, supernutritiva e, ao mesmo tempo, rica e untuosa pela macadâmia”, explica Rodrigo.
A carne de sol guisada é feita à moda de suas tias: “É servida com pirão preparado com leite fresco, queijo coalho da fazenda Atalaia e farinha de mandioca da Fazenda Maniwa”, diz o chef em referência à fazenda em Socorro (PE), um de seus projetos agroflorestais.
“Aprendemos com a Adriana que se podemos restaurar um indivíduo, quem sabe, podemos restaurar também uma comunidade.”
Rodrigo Oliveira
Já do sítio Mulungu — outro espaço cuidado pela família, este em São José dos Campos (SP) —, vêm as mangas. O cardápio festivo traz de volta o cajá-manga, sobremesa célebre do Esquina Mocotó: “vegana, refrescante e feita de pura fruta, com um toque de baunilha da Bahia”, define o chef.
Tão diferentes entre si, os pratos do casal representam bem a dualidade de seus universos, que acabam se complementando de tantas formas. “O Rodrigo tem muito da coisa sertaneja, inclusive nos hábitos domésticos. Ele queria fazer cuscuz de café da manhã e eu achava muito! Porque para mim era só pão. Mas daí a gente foi se encontrando; hoje acho o máximo comer cuscuz de manhã.”
Com doçura, Rodrigo não perde a oportunidade de exaltar a esposa: “A Adriana me disse que aprendeu com a nossa família a repartir o que temos e não simplesmente dar o que está sobrando. Mas a verdade é que aprendemos com ela que cozinhar é um ato político e que se podemos restaurar um indivíduo, quem sabe, podemos restaurar também uma comunidade”, finaliza o chef.
Confira aqui o passo a passo das receitas de Adriana Salay e Rodrigo Oliveira
CRÉDITOS DE EQUIPE
Texto Marina Marques
Fotos Julia Mataruna
Edição de Arte Catarina Moura