“Somos a primeira geração de mulheres criando serviços e produtos para mulheres, até então fornecidos por indústrias lideradas por homens. Os problemas na sociedade são muitos, temos a oportunidade e a responsabilidade de olhar para as especificidades da mulher de igual para igual”. A afirmação é de Lettycia Vidal, publicitária, que se tornou doula e educadora perinatal após acumular tristes histórias, como a violência obstétrica vivida por sua mãe. Aos 27 anos, ela também é fundadora e CEO da Gestar, plataforma que conecta profissionais que trabalham no setor materno-infantil com mães, gestantes e tentantes.
Sabe aquela máxima de que uma mulher puxa a outra? Pois é. Depois de séculos se dedicando a tarefas domésticas, as mulheres acumularam empregos, deixando a exclusividade da gestão e o cuidado com o lar e a família para ingressar no mercado de trabalho remunerado. Se tornaram líderes, empreendedoras, investidoras e, hoje, fomentam negócios que apresentam produtos e outras soluções para o próprio universo feminino. A Gestar, criada em 2020, é considerada uma startup (empresa de base tecnológica e escalável), que passou por diferentes programas de aceleração, como o da comunidade B2Mamy. Atualmente, reúne 245 profissionais parceiras e já impactou 6 mil famílias. E assim o mercado vai se transformando.
A Gestar faz parte de um grupo formado por pouco mais de 20 marcas brasileiras que se reúnem sob o guarda-chuva global das femtechs. Em alusão às fintechs, edtechs, healthtechs e outras categorias de startups, as femtechs são negócios femininos voltados para a saúde e o bem-estar da mulher. O termo foi criado em 2016, por Ida Tin, cofundadora do aplicativo Clue, que auxilia no monitoramento do ciclo menstrual.
“Antes de empreendedoras, somos ativistas, movidas por criar soluções que desconstroem tabus”, defende o manifesto lançado pelo movimento Femtechs Brasil. As marcas integrantes criam produtos e serviços “inclusivos, diversos e necessários”, que vão da menarca a menopausa, de lubrificantes íntimos a soluções para fertilidade, de acompanhamento do ciclo menstrual a prazer feminino.
Segundo mapeamento do estudo Inside Healthecare Report, são 23 femtechs brasileiras. Em comparação, são 542 healthtechs e 13,8 mil startups no país. As principais áreas de atuação são: maternidade, nutrição e bem-estar; diagnósticos e tratamento de doenças; wearables (desenvolvimento de dispositivos, como para monitoramento corporal). Ainda é pouco. Muito pouco.
O Brasil tem uma população de quase 110 milhões de mulheres, sendo mais da metade (51,6%) em “idade fértil”, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD). Toda a evolução tecnológica e científica que avança em velocidade exponencial não foi capaz, entretanto, de mudar consideravelmente uma realidade: a maior parte das pessoas que menstruam ainda usa absorvente descartável.
Podemos dizer que, em quase 100 anos, contamos com três alternativas para ter bem-estar enquanto menstruadas. Importado dos Estados Unidos, o Modess, da Johson&Johnson, foi o primeiro absorvente descartável a ser comercializado no país, nos anos 1930. Já o O.B., expressão alemã que significa algo como “sem bandagem” (ohne binde), foi lançado no Brasil em 1974. E a calcinha menstrual, feita a partir da combinação de tecidos com propriedades antimicrobianas e impermeáveis, foi desenvolvida recentemente, em 2016, por brasileiras. Por que uma evolução tão lenta em um período que saímos, por exemplo, da Kombi para o carro elétrico, do telefone fixo para o iPhone 14?
A engenheira química e empreendedora Raíssa Kist tem a resposta: “Os espaços de liderança são ocupados por pessoas que não menstruam”. A falta de representatividade feminina é resultado de um processo histórico complexo, que só vem sendo reconhecido como nocivo agora. “Era muito difícil avançar em algumas mentorias de negócios quando o assunto central sempre era voltar no primeiro estágio de sensibilização dos homens em relação à menstruação e à necessidade do produto. Nunca chegávamos a falar sobre as dores da estruturação da equipe, dos processos, da empresa em si”, manifesta Raíssa.
Neta de agricultores de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, Raíssa subverteu o formato tradicional dos negócios e criou a Herself, em 2016, quando ninguém perguntava às mulheres como elas se sentiam usando os protetores menstruais existentes. Ela, então, transformou as suas vivências ligadas ao tabu da menstruação em uma empresa com foco em duas frentes: desenvolvimento de produtos tecnológicos para menstruação (biquínis absorventes e reutilizáveis para o ciclo menstrual) e promoção de acesso à informação segura e de qualidade sobre o funcionamento do corpo das mulheres.
Também integrantes do movimento Femtech Brasil, duas líderes no segmento de saúde e bem-estar íntimo da mulher no Brasil, Feel e Lilit se uniram com o objetivo de focar na jornada integrada que ajuda mulheres a assumir e conhecer melhor a própria sexualidade. A Feel é pioneira no desenvolvimento de produtos naturais e veganos para a região íntima da mulher, oferece uma linha composta por lubrificantes, sabonetes e óleos hidratantes. Também na vanguarda, a Lilit lançou no país, em 2020, um vibrador bullet criado e desenvolvido por e para mulheres.
“Não é nada fácil chegar na Faria Lima [avenida que concentra grande número de startups e instituições financeiras] falando sobre vagina, vulva e clitóris: não é bem visto. É tão tabu que gasto boa parte do meu pitch para convencer, sobretudo os homens investidores, que mulheres podem não estar sentindo prazer”, afirma a CEO da Feel, Marina Ratton, que nasceu no interior de Minas Gerais observando — e se incomodando — com as limitações impostas às mulheres.
A Feel captou mais de R$ 1 milhão em investimentos, a maior parte de “investidoras-anjas”, que entendem do produto, do negócio e do mercado. Foi apoiada, por exemplo, pela Sororitê, uma rede de investidoras formada por mulheres que só investem em startups lideradas por outras mulheres. “Ao trazer mais equidade de gênero para o lado do investidor, a gente capitaliza mais mulheres fundadoras de empresas”, afirma Flávia Mello, uma das líderes do fundo. Além dos aportes, é uma oportunidade de fazer parte de um ambiente para conexões e trocas.
Segundo a Femtechs Brasil, apenas 4,7% das startups são fundadas exclusivamente por mulheres. O mercado das femtechs, porém, é promissor: movimentou US$ 18,75 bilhões no mundo em 2019 e a projeção é que chegue a US$ 60 bilhões em 2027, de acordo com um levantamento da consultoria Emergent Research. E as demandas são urgentes e ainda não correspondidas. Um pequeno recorte mostra que 40% das mulheres têm dificuldades para chegar ao orgasmo, enquanto outras 39% sofrem de dores durante a relação sexual, como aponta um estudo da Universidade de São Paulo (USP).
Seja por oportunidade ou reparação histórica, consultorias internacionais apostam que 2023 é um ano decisivo, quando veremos mais pesquisas e investimentos para desenvolver tecnologia e produtos que abordem as dores e o bem-estar geral das mulheres.