O outro lado da culinária japonesa: cozidos, ensopados e até suflês
Os pratos podem não parecer cardápio japonês – mais identificado pelos pratos crus. Mas é uma bela página da culinária tradicional nipônica
Muito além dos olhos puxados, a postura ereta, o jeito contido e a voz macia anunciam a herança oriental. Neta de imigrantes japoneses, a chef Telma Shiraishi (de quimono laranja) preparava-se para fazer o que mais gosta – compartilhar comida e conhecimento – num canto do Pavilhão Japonês, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, onde foram registradas as imagens desta reportagem.
Essa mulher de 47 anos, que de frágil só tem a aparência miúda, carrega uma trajetória interessante. Trocou a faculdade de medicina por uma atividade que deixaria aflorar sua criatividade – algo muito forte nela. Encontrou-se na moda.
Dos laboratórios, onde se dedicava a pesquisas científicas, seguiu para o ateliê do estilista paulistano Fause Haten. Desenhou roupas, raspou o cabelo de um lado só, passou a vestir-se com peças extravagantes. Mas foi migrando para a cozinha discretamente.
Ao organizar jantares para amigos, descobriu um talento que, como conta, não foi tão valorizado pela família como a profissão de médica. Ser cozinheira, porém, era o que a realizava. “Existe um conservadorismo arraigado na comunidade japonesa.
Escolhi fazer o que me dava prazer.” Assim, mergulhou nos livros; desta vez sobre culinária e cultura nipônicas. Em 2007, abriu o restaurante Aizomê, consagrado na capital paulista, o maior reduto da população do Japão no exterior.
Desde o ano passado, ela é a chef responsável pelos banquetes oferecidos no consulado-geral desse país, em São Paulo. Um enorme reconhecimento. Para garantir fidelidade à tradição, Telma aprofundou-se no omotenashi, termo que se refere à hospitalidade. “O japonês é cortês, acolhedor e preocupado com o bem-estar do outro”, justifica. “É por isso que o coletivo funciona bem por lá”, acrescenta.
Foi com esse espírito que ela recebeu as amigas Yasmin Yonashiro, Carolina Oda e Yumi Novais. O cardápio privilegiou pratos quentes, uma especialidade da anfitriã. “São ensopados, cozidos e algumas friturinhas que confortam neste inverno”, define.
Juntas, ainda aproveitaram para brindar os 110 anos da imigração japonesa na nossa terra. Telma é delicadeza pura.
Decoração
Paciência, concentração e amor. É preciso combinar esses três preceitos não só na cozinha mas também ao decorar a casa em dias de festa. Arte milenar japonesa, o ikebana marca os encontros à moda oriental. “Não se trata de espetar flores, folhas e galhos.
Quem executa esse arranjo encontra alegria, persistência e paz”, destaca Emilia Ryoka Tanaka , fundadora e presidente da Associação de Ikebana Kado Ikebono Tatibana da América Latina.
Aos 89 anos, ela ensina a criar uma composição de sucesso: “Tudo depende de como você se sente no dia. Um ikebana bonito é consequência do seu estado interior”. Embora a técnica seja complexa, uma dica de Emilia, transmitida por ela há 60 anos e repetida neste almoço, é escolher espécies da estação – assim como Telma faz com os ingredientes.
“Valorizar o que está disponível na época é um princípio da cultura japonesa”, pontua a chef, que enfatiza o uso de produtos brasileiros.
“Preparo conserva de maxixe, bolinho de cará e cozinho com peixes da nossa costa”, diz. Ela se nega a servir salmão no Aizomê. Ao lado do gyosa de carne e do mix de tempurás, o clássico chawan mushi é um flã quente de ovos com camarão e cogumelos.
Tradição japonesa
Equilíbrio, para os japoneses, é essencial. Telma explica que, em uma refeição, cinco elementos devem estar em perfeita harmonia – “temperatura, quantidade, técnica e sabor dos pratos, além da postura adequada das pessoas ao redor da mesa”.
Este é também o número de sabores que uma receita tem de reunir, idealmente. “É preciso sentir o doce, o salgado, o azedo, o amargo e o umami, conhecido como o quinto gosto”, descreve. “Ele dá a sensação de peso na boca, de comida redonda, representa o fator delicioso do prato.”
Em geral, ingredientes fermentados cumprem essa missão. “É por isso que o saquê está em quase todos os preparos”, afirma. Como no sukiyaki, apelidado de fondue japonês.
Feito em utensílio próprio, leva carne fatiada fino, tofu, folhas e legumes. “Convidamos as pessoas a se servir à vontade nessa panela, que fica no centro”, explica Telma.
Outro prato que funciona bem nas baixas temperaturas é o yosenabe, fumegante caldo com peixe e frutos do mar. Ambos casam com saquê (seco, como os do tipo junmai) e, acredite, cervejas. “Indico rótulos maltados, mas de corpo leve, como os munich dunkel”, diz Carolina Oda, sommelière especializada na bebida.
Costumes
Servir chá à vontade é, para os orientais, um símbolo de cortesia. “Ideal para todas as horas, assim como o cafezinho por aqui”, diz Telma.
Embora existam vários tipos, o mais apreciado é o verde, a exemplo do famoso matchá. Diferentemente do que muita gente pensa, nem precisa de uma grande cerimônia para oferecê-lo. “O simples ato de preparar uma xícara já é um ritual carregado de espiritualidade e significado”, ressalta.
O chá leva à contemplação. A chef faz isso ao ar livre, no jardim zen do Pavilhão Japonês, observando as plantas. “Cuidadosamente planejadas, são distribuídas de acordo com suas cores, formas e texturas”, explica. “A finalidade é estimular as pessoas a exercitar a meditação”, acrescenta.
Telma também se dedica com esmero ao preparo de doces (não muito adocicados). Prova disso é a apetitosa cheesecake de tofu com calda de frutas vermelhas e o suflê de chocolate meio amargo com compota de laranja kinkan. “Apesar de no Japão as sobremesas não terem grande destaque, no Ocidente elas são essenciais. Tem cliente do restaurante que fica até ansioso pelo momento final”, conta, orgulhosa.
Agora é com você! Reproduza algumas receitas da culinária japonesa na sua casa:
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