Na imensidão que se abria à sua frente, chamaram a atenção da jovem Nicole Neumann, 18 anos, os cactos vistosos que se misturavam às plantas retorcidas, típicas do sertão. Toda a vegetação estava coberta por uma camada de poeira vermelha. Ao fundo, no cume das montanhas, ela enxergava pontos verdes de mata, resultado das chuvas recentes, raras por ali. O chão, seco na maior parte do ano, tinha alguns trechos de lama.
Era a primeira vez que a estudante competia no Rally dos Sertões, a maior prova automobilística nas Américas, que dura quase dez dias e já acontece há 29 anos – em 2020, o percurso teve 5 mil quilômetros. Ao seu lado, comandando o volante, sua mãe, Corina Neumann, 54 anos, uma lenda. Ela foi a primeira mulher a correr nesse rali, em 1995. Por anos, teve o pai como navegador, posição assumida por Nicole neste ano. Como o patriarca e o irmão de Corina costumavam correr de moto, ela acabou se envolvendo no automobilismo, mas nunca fez aulas ou curso para esse tipo de direção.
Foram muitas edições desde então. Corina pulou alguns anos, mas lembra-se de, depois do nascimento de Nicole, tirar leite dentro do carro entre etapas. “Eu só parei quando comecei a pagar a escola da minha filha, pois não conseguia arcar com os dois gastos. Também já levei Nicole só para acompanhar a prova. Fomos com meu carro, sem competir, só para que ela visse como era. Quando falo de rali, meus olhos brilham, e eu passei esse bichinho para ela”, conta Corina, de São Paulo.
Nicole cresceu no rali e aprendeu mecânica com o avô. Sabe de cor o nome das peças e também como consertá-las ou ajustá-las – algo que fazia toda noite quando encerravam mais uma diária. A função de navegação também foi herdada, mas ela reforçou o conhecimento com vídeos no YouTube.
Neste ano atípico, o Rally dos Sertões foi adiado e também sofreu alterações em questões organizacionais. Medidas de precaução contra o novo coronavírus incluíam o uso de máscara e redução das equipes, que não puderam se hospedar nas cidades, como é comum, nem entrar em contato com a população local.
Claudia Grandi, 50 anos, sentiu falta do calor do público. “É muito gratificante porque as pessoas, especialmente as crianças, ficam o dia todo esperando o rali chegar. Elas acenam para o carro, pedem autógrafos. E, quando veem que é uma mulher, fazem aquela cara de espanto. Nesta edição, paramos num posto para abastecer onde tinha um pessoal fazendo trilha de bicicleta, várias mulheres. Elas vieram tirar foto com a gente, no carro. Quase não conseguimos ir embora”, conta, rindo.
Claudia, que é de Brasília, começou no automobilismo como jipeira em trilhas e competições. Muitas vezes, à noite, ela ainda estava atravessando rios enquanto a chuva caía. Com o marido, assistiu ao Rally dos Sertões em 2002.
Sua primeira participação, contudo, foi só em 2006. Voltou em 2010 e, de 2012 até hoje, nunca mais abandonou a prova – mesmo que vá trabalhando em alguma equipe, e não na pista. “Todo ano, a sensação na largada é a mesma. Dá um frio na barriga, a mão treme. Demora uns 30 minutos para relaxar”, lembra Claudia, que é navegadora e prefere os instrumentos roots aos tecnológicos de hoje.
Também tem a frieza necessária para encarar situações de risco. Já capotou três vezes. Em uma delas, o carro nem desligou. Caiu com as rodas no chão e o piloto seguiu. Na última, o veículo ficou de cabeça para baixo e não foi encontrado pelo pessoal de apoio. Era meio-dia. Às 9 da noite, nem sinal da organização. Sua dupla resolveu ir até a cidade mais próxima. Conseguiu uma carona e voltou com a promessa de socorro e com uma marmita de arroz, feijão e ovo frito. “Foi a melhor refeição da minha vida”, conta, bem-humorada.
Por algum tempo, Claudia, que tem dois filhos, fez dupla com o marido e jura que sabia separar as brigas dentro do carro da vida real. “Eu era nova nisso; então às vezes errava. E ele era muito competitivo, ficava bravo, xingava. Mas sou muito tranquila, faço pra relaxar, pra esquecer o mundo, então levo numa boa. Se achasse que era sério, o casamento não tinha sobrevivido”, diz.
Claudia perdeu o parceiro há três anos e pensa nele quando está atravessando o Jalapão, lugar aonde os dois costumavam ir. Ela é disputada por pilotas que confiam em sua experiência. Este ano, o convite veio de Helena Soares. Juntas, formaram a equipe Rainhas Racing e compraram coroas de plástico. O carro cor-de-rosa ganhou cílios gigantes nos faróis. Não tinha como passar despercebido. Feliz ficou o patrocinador. E não só com os diversos registros da mídia mas também com o resultado: terceiro lugar na categoria.
Apesar de toda a bagagem, Claudia já ficou de fora do rali por causa de falta de patrocínio, uma constante entre as equipes femininas. O custo total com inscrição, veículo, equipe de apoio, peças extras e combustível pode ultrapassar os 100 mil reais. “Meu próximo objetivo é participar como pilota. Eu estou pronta, é só alguma marca me chamar”, diz, provocativa.
Problemas reais
Dinheiro é um grande entrave para o aumento da presença feminina no Rally dos Sertões. Mesmo as pilotas mais consolidadas ainda encontram dificuldade de arranjar patrocínio, que dirá as novinhas, uma das justificativas por que faltam novatas na prova. Esse é um panorama que Helena Deyama está obstinada em mudar.
Este ano, com a pilota de moto Moara Sacilotti e a jornalista Karina Simões, ela fundou a equipe Musa – Mulheres Unidas Sertão Adentro. “Meu sonho é ter um time inteiro feminino, com pilotas, mecânicas, equipe de apoio. Mas isso é muito complicado. Então, com o pé no chão, resolvemos começar pelo mais fácil neste ano desafiador por si só, as motoristas”, diz ela, que é pilota oficial da Can-am, marca de seu UTV, um tipo de veículo.
Helena também já correu com caminhonete da Mitsubishi, mas começou no mundo aventureiro do esporte com a motocicleta que comprou aos 19 anos, juntando o dinheiro de dois anos de trabalho e contando com uma ajudinha do pai. Aos 35, trocou a moto por um jipe, que a acompanhou nos anos iniciais de competições. “Quebrava todo dia”, lembra Helena, que se formou designer para não desapontar o pai.
Em sua primeira raid com o veículo, como são chamadas as provas, era a única mulher. Sentiu o olhar dos outros competidores, que foram de curiosos para respeitosos quando que ela venceu. Helena, que correu seu primeiro rali aos 39 anos, com os próprios recursos, sem auxílio da família nem equipe de apoio, coleciona títulos e gosta de dizer que sua casa é decorada com troféus.
“Assim que ganhei, falavam que ia chover patrocínio. Que nada! Fui atrás de cada um deles; é duro chegar em quem toma a decisão final. Mesmo assim, consegui conexões legais com o passar dos anos”, conta ela, que hoje se dedica exclusivamente ao esporte e faz palestras motivacionais para diversos grupos de lideranças e de mulheres. “Abri mão de muita coisa para realizar meu sonho, como casar, ter filhos”, diz.
Aos 60 anos, Helena faz parte do Ladies Drive Brasil, clube dedicado a apaixonadas por carros com mais de 100 membros. Ali, em alguns encontros já identificou mulheres com carros esportivos, que correm no asfalto, e com motos que sonham em entrar para o rali.
“Falta apoio, incentivo. Quero poder oferecer o respaldo de uma equipe para que elas se sintam preparadas. Procuro então parcerias com diversas marcas voltadas ao público feminino para garantir uma estrutura bacana. Também acredito que podemos compartilhar conhecimento para atrair mais mulheres. A nossa presença nesses espaços e nossas conquistas também são ferramentas de captação”, continua Helena, que pretende deixar um legado. “Meu sonho é sermos a maior equipe feminina de rali do mundo.”
Em 1998, Helena foi até a largada do Rally dos Sertões só para prestigiar. Viu ali, em sua moto, a jovem Moara Sacilotti, então com 18 anos. A paulista praticamente foi criada sobre rodas. Ganhou a primeira moto aos 7 e já entrou para as competições.
“Falta apoio, incentivo. Quero poder oferecer às mulheres o respaldo de uma equipe para que se sintam preparadas”
Helena Deyama, pilota
Herdou a paixão do pai e da mãe, compartilhou com o irmão, que também correu o Sertões, e contagiou o marido, com quem tem hoje uma companhia de turismo de moto na Serra da Mantiqueira. Mas sua estreia não se tornou fácil só porque era próxima do esporte. Assim que tomou a decisão de participar, saiu atrás de patrocínio.
“Foi a primeira vez que sofri machismo escancarado. Ouvi que ia gastar o dinheiro dos outros à toa, que, se eu fosse homem, aprovariam o apoio. Consegui bem pouco, mas meu pai ia andando atrás de mim e me ajudava toda vez que eu caía”, recorda ela, que tem 1,60 metro de altura e não alcança o pé no chão quando está sobre a moto. “Adapto a suspensão para o meu peso porque essas motos consideram usuários médios, de 1,75 metro de altura e mais de 80 quilos”, explica.
Ela foi a primeira mulher na categoria moto do rali e este ano chegou à sua 20ª edição. Moara acredita que a presença constante do pai desencorajou piadinhas masculinas, mas algumas vezes ela ouviu homens apostando quantos dias ela aguentaria na corrida.
Ela também se lembra de que, no início, quando as corridas ainda não eram cronometradas por sistemas, o sujeito que imprimia as planilhas com as posições grifava a linha dela com marca-texto cor-de-rosa e ironizava dizendo que os que ficavam abaixo não poderiam falar com ele. “Era ridículo, mas eu ficava calada. Só pensava: ‘Vou treinar bastante e isso vai mudar’.” Quinze edições depois, Moara havia vencido todos os concorrentes frequentes. O jogo virou e em 2018 a prática foi oficialmente proibida.
Aos 41 anos, Moara considera que está em sua melhor fase. Malha cinco dias por semana a fim de manter o condicionamento físico, faz pilates e fisioterapia. Tudo para aguentar as longas jornadas de oito ou nove horas pilotando à base de barrinhas nutritivas, que come quando para para abastecer, a cada 200 quilômetros.
O treino específico faz no dia a dia, trabalhando, e em pistas de motocross. Para ela, mais importante do que isso é a maturidade, um diferencial “para não fazer besteira”. Só uma vez pensou em parar, em 2016, ao fazer tratamentos para engravidar. Tentou por dois anos e, com o marido, resolveu suspender o processo. “Vou até onde meu corpo aguentar e quando ele reclamar da moto, sigo para o UTV”, afirma.
“Quando falo de rali, meus olhos brilham, e eu passei esse bichinho para
Corina Neumann, assistente executiva e pilota
minha filha”
Com paixão e um pouco de conforto
Muitas vezes, Sandra Dias, 51 anos, viu o marido, Glauber Fontoura, ir para o Rally dos Sertões. Ela ficava em casa cuidando dos dois filhos do casal e da empresa de eventos que eles comandam juntos. Em 2013, com os garotos já crescidos, entrou para a equipe de apoio dele. Foi quando notou que aquele universo masculino precisava do acréscimo de mulheres e começou a procurá-las para o staff.
No mesmo ano, incentivada por Glauber, decidiu pilotar em uma prova menor, em Curitiba. Estava indo embora antes de anunciarem os resultados quando foi barrada por um integrante da organização que disse que ela precisava esperar. Saiu dali, de sua primeira prova, campeã.
O Rally dos Sertões era uma consequência óbvia e em 2016 lá estava ela na linha de largada. Em cinco anos, foram cinco pódios e três títulos, inclusive se tornou a primeira mulher a consagrar-se campeã na categoria Master da modalidade Regularidade, que pontua a precisão e excelência da direção, e não a velocidade.
Já à vontade no ambiente, no segundo ano decidiu montar um salão de beleza itinerante, que acompanhou o rali. Virou febre entre as mulheres e também entre os homens. Mesmo dirigindo até 12 horas por dia, Sandra terminava à noite com o cabelo feito.
Sem conseguir patrocínio, ela conta com a empresa dela e do marido e mais o apoio financeiro de amigos para bancar toda a estrutura, que já chegou a 140 pessoas e ganhou o nome de Vila FD. Sandra é procurada por muitas mulheres que sonham em participar do Rally dos Sertões. Ela as incentiva, explicando que o ambiente não é o clichê masculinizado que esperam.
“Ouvi que ia gastar o dinheiro dos outros à toa, que, se eu fosse homem, aprovariam o apoio”
Moara Sacilotti, pilota e empresária
Também faz surpresas para as que já trabalham no evento, levando lembrancinhas. “Este ano foi uma camiseta pink escrita ‘Elas no Rally’. É para mostrar que podemos chegar aonde quisermos”, diz. A paixão é tanta que ela admite que sofre de abstinência quando a prova se encerra, independentemente da colocação.
“Viramos uma família, é um lugar acolhedor em que todos se tornam amigos.” Seu sonho é, em breve, competir com o marido na categoria Velocidade, mas nunca juntos, já que os dois são pilotos. “Nem daria, acho que eu mato o Glauber”, diverte-se ela. “No começo, eu era a Sandra do Glauber; hoje ele é o Glauber da Sandra”, continua, rindo.
O que falta para termos mais mulheres eleitas na política