Já desde criança, Rafaela Silva precedia sua fama. Quando viam seu nome como adversária das filhas nos campeonatos de judô, as mães das outras competidoras se estressavam. Antes mesmo de as crianças subirem no tatame, elas já sabiam que viriam os três tapinhas, estratégia oficial usada para interromper lutas. “Elas falavam logo para o meu treinador: ‘minha filha não vai lutar com ela não, ela vai matar minha filha’”, relembra Rafaela, aos risos. Naquela época, não havia concorrentes à altura da garota da Cidade de Deus, favela da zona oeste do Rio de Janeiro. Rafa vencia todas as lutas nos 10 primeiros segundos.
Desde então, aquela menina sem rivais cravou seu nome na história do judô brasileiro, embora as lutas — literais e metafóricas — nem sempre tenham sido tão fáceis quanto as dos campeonatos amadores.
Rafaela entrou para a equipe principal da Seleção Brasileira aos 16, no mesmo ano em que levou o título mundial do sub- 20. Na categoria profissional, chegou a lugares inéditos: é a única judoca brasileira a ganhar o ouro nos Jogos Olímpicos, no Pan-Americano e no Mundial.
A próxima parada é em Paris. A preparação para os Jogos Olímpicos, que acontecem entre os dias 26 de julho e 11 de agosto, toma quase todo o tempo da atleta de 32 anos. Ela treina de manhã e à tarde, seis vezes na semana. E seguirá o ritmo intenso até embarcar para a capital francesa. No caso, com o mesmo pensamento de 2016: sem pensar em medalha, focada em cada luta.
Apesar da rotina olímpica, Rafaela gentilmente encontrou dois buracos em sua disputada agenda: um para tirar as fotos que estampam a capa e as próximas páginas de CLAUDIA — e outro para conversar conosco.
Tímida, a judoca chegou ao estúdio na zona oeste carioca numa manhã de sábado, sem dizer muitas palavras. Topou a maquiagem leve — embora a esposa, Eleudis Valentim, tenha garantido que ela limparia o rosto assim que chegasse em casa —, assim como os penteados e os looks, diferentes dos que usa no dia a dia. Só se soltou um pouco quando a companheira pediu para trocarmos a playlist e colocar alguns dos artistas favoritos de Rafa: L7nnon e Ludmilla.
“Nunca fui capa de revista. Meus pais ainda nem sabem, mas vão ficar orgulhosos. Quando a gente era criança, meu pai trabalhava como entregador, e sempre levava uma foto nossa com medalha [a irmã dela, Raquel, também lutava judô] para mostrar para os amigos. Com certeza vão ficar felizes”, diz.
“E acho importante ser a capa de junho, mês do orgulho. A gente ainda vê coisas ruins acontecendo com pessoas só por causa da orientação sexual, por gostarem de outro ser humano. Servir de exemplo, ser essa referência, é muito importante”, completa.
O início da carreira de Rafaela Silva
Foi o pai quem levou Rafaela e a irmã Raquel para o judô, num projeto de uma associação local. Criadas na Cidade de Deus, as duas encontraram no esporte um futuro melhor.
Rafa queria futebol, mas só tinha vaga para os meninos. Ela se contentou com o judô e puxou a irmã. “Eu gostei porque, depois de começar a treinar, conquistei meu espaço. Desde muito nova eu gostava de jogar bola, soltar pipa, rodar pião. Só que os meninos não me escolhiam, não me deixavam jogar, porque eu era menina. Aí comecei a vencer deles no treino e ganhei respeito”, conta.
Aos 7 anos, entrou para o Instituto Reação, do judoca Flávio Canto, onde ficaria até assinar com o Flamengo, em 2021. A brincadeira virou coisa séria. Aos 12, Rafa partiu para a primeira competição internacional, o Pan-Americano na República Dominicana. “Eu passava três semanas fora e uma aqui no Brasil. Convivia mais com as pessoas do judô do que com a minha família”, diz.
A dedicação ao esporte privou a jovem de algumas comemorações. “Eu não podia comemorar meu aniversário, porque dois dias depois eu tinha uma competição. Se eu comesse bolo, ficaria acima do peso. Eu via meus amigos brincando e eu não podia ter o mesmo. Me incomodava, mas meu treinador me mantinha na linha, mostrava que aquilo era importante para eu chegar no Mundial, na Seleção, nas Olimpíadas”, recorda.
Os treinos também a afastaram da sala de aula. Com tantas viagens, Rafa não dava conta de acompanhar os colegas e abandonou os estudos. A atleta só recuperou os anos perdidos com um supletivo: uma das exigências para entrar no programa para atletas das Forças Armadas Brasileiras, onde passou oito anos, de 2014 a 2022, era a conclusão do Ensino Médio. Chegou até a cursar duas faculdades: psicologia e educação física. “Mas foi impossível seguir qualquer uma com essa rotina de treinos”, afirma.
Dias de luta: doping e adversidades
O interesse por psicologia surgiu de um momento delicado na vida da atleta. Em 2012, a judoca foi derrotada logo na segunda luta dos Jogos Olímpicos. Dois anos antes, a Federação Internacional de Judô havia mudado as regras e banido um tipo de golpe — chamado de catada de perna. Rafaela se equivocou e aplicou o golpe proibido na adversária húngara. Foi desclassificada das Olimpíadas.
Aos 20 anos, ela desabou a chorar. Esperava encontrar apoio dos brasileiros em suas redes sociais, mas só se deparou com ódio e muito racismo. “Aquilo me machucou tanto que eu não queria falar sobre o assunto. Queria abandonar o judô. Fiquei meses sem treinar, sem encostar no quimono, sem vontade de fazer nada”, relembra. A atleta chegou a responder a alguns comentários maldosos na internet, na mesma moeda. Só piorou a situação.
Foi ali que começou a fazer terapia, para cuidar da saúde mental. E foram os benefícios da psicologia que a estimularam a se matricular no curso. Felizmente, o desgosto pelo esporte não durou muito tempo.
Rafa logo encontrou uma nova treinadora que a desafiou a olhar para as próximas Olimpíadas: qual sensação ela tinha ao se imaginar como telespectadora, de fora da competição? Ela voltou a treinar e deixou de lado os comentários negativos. “Eu só apago os comentários, não respondo. Dizem que quem fala muito faz pouco. Eu prefiro fazer mais do que falar.”
E ela fez. No ano seguinte, ganhou seu primeiro mundial sênior. Nas Olimpíadas do Rio, em 2016, quando o favoritismo passava longe do nome dela, a judoca faturou o ouro.
Três anos depois, a vida daria outro ippon na judoca: um exame de doping havia apontado a presença de uma substância proibida, um remédio para asma. Rafaela perdeu o título Pan-Americano e pegou dois anos de suspensão. Não podia treinar, nem receber qualquer dinheiro vindo do judô — nem mesmo de publicidade.
“Fiquei muito revoltada quando me falaram do doping. Achei que tinham confundido. Eu não tomo nem remédio para dor de cabeça, não tenho asma. Ninguém da comissão acreditava naquilo, todo mundo achava impossível eu ter usado algo proibido”, diz.
Ela conta que, meses depois, entendeu que uma colega de quarto havia usado o remédio. A Federação não aceitou a defesa e Rafaela precisou aceitar os anos de afastamento.
Longe dos treinos, deprimida, descuidou da dieta. Não saía de casa para nada. Só percebeu o ganho de peso quando tentou colocar uma roupa que não servia. Pegou outra peça, que também não coube. Ao subir na balança entendeu: estava 11 quilos acima do peso ideal. Ou se cuidava, ou ficaria de fora dos Jogos de Paris, em 2024.
Assim, começou a correr (ainda que não gostasse dessa atividade física), só para se manter em forma. E voltou forte. No fim de 2022, conquistou pela segunda vez o título mundial e, em 2024, o ouro no Pan-Americano.
Dias de glória
No meio da tristeza da suspensão, Rafaela encontrou um aconchego: o relacionamento com a judoca paulista Eleudis. As duas se conheciam desde muito novas, pelas competições, mas nunca havia rolado nada.
Eleudis, ao contrário de Rafa, se relacionava com homens. Quando rolou o primeiro beijo, em 2019, ela avisou: “Olha, mas eu não sou sapatão, viu?”. Rafa levou com bom humor. “Tá bom, então. Só quando a gente se encontrar, a gente se pega e tudo bem”, respondeu.
Nem mesmo a distância afastou as duas. De Avaré, no interior de São Paulo, Eleudis trocava mensagens o dia todo com Rafa, que estava no Rio de Janeiro. Por causa das competições, até que elas se encontravam com bastante frequência — e acabavam ficando juntas em todas as oportunidades.
Três meses depois de começarem a ficar, em maio, Eleudis se mudou para o Rio de Janeiro, atrás de um novo clube. As duas se casaram um ano depois, em 2020 — só a festa que foi adiada, por causa da pandemia.
“A gente tem uma história muito parecida, ela também não tinha muita estrutura, nem perspectiva. E encontrou isso no esporte. A gente tem uma admiração parecida, gosta da força uma da outra, de ter dado a volta por cima, de lutar pelos nossos sonhos”, conta.
Eleudis recebeu o apoio da mãe e dos irmãos — com exceção de um deles, que demoraria um pouco mais para aceitar a cunhada. Rafa, por sua vez, já havia conversado com os pais sobre sua sexualidade há anos. “Meu pai falou que o que importava era minha felicidade e que eu seguiria sempre sendo filha dele”, diz.
Os planos de Rafaela Silva para o futuro
Rafaela pretende encerrar a carreira de lutadora em 2028, após os Jogos de Los Angeles. “A Rafa não teve muita lesão na vida, e nenhuma cirurgia realmente séria, então consegue competir em alta performance por mais esses anos”, confirma Eleudis.
Depois disso, a campeã olímpica pretende trabalhar dentro da equipe técnica de alguma confederação no exterior. “Eu estudo muito o judô, conheço os golpes de cada lutadora. Então as pessoas já me pedem muita ajuda. E o pessoal lá de fora, da Confederação, quer que eu trabalhe com eles quando eu me aposentar.”
Eleudis acredita no conhecimento e na paixão da companheira pelo judô: “Ela passa as horas de descanso vendo vídeos de luta. Então, ela conhece até as jogadoras mais desconhecidas de outras categorias, de peso acima ou abaixo do dela”, conta.
O plano mais próximo de Rafaela Silva, porém, é mais humilde e também já está definido: tomar litros de refrigerante assim que as Olimpíadas terminarem. “Eu tomava muito refrigerante, desde manhã, com pão e ovo. Mas precisei parar, porque perder peso é difícil. Não vejo a hora de poder tomar de novo. Já falei que não vou aparecer nos treinos por um tempo”, brinca a judoca.
A nossa torcida é que ela abra a sua merecida coquinha com o sorriso aberto e a sensação de dever cumprido.
TEXTO: Carol Castro
FOTOS: Raquel Espírito Santo
STYLING: José Camarano
BELEZA: Chicão Toscano
SET DESIGN: João Pedro Schiavo
DIREÇÃO DE ARTE: Kareen Sayuri