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Gaby Amarantos relembra momentos desafiadores na sua carreira

Mulher negra da periferia de Belém, não tem vergonha de falar de vagina ou de todos os procedimentos que fez no corpo até aprender a se amar

Por Texto: Isabella D’Ercole | Fotos: Fernando Louza
Atualizado em 17 fev 2020, 11h15 - Publicado em 30 nov 2019, 08h00
Gaby Amarantos relembra momentos desafiadores e de superação na sua carreira
 (Fernando Louza/CLAUDIA)
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O que faz alguns artistas virarem estrelas? Além do talento, certas pessoas têm um componente a mais – misterioso para a maioria, mas, para elas, natural. É a capacidade de ter os olhos (a cabeça, os ouvidos, a voz) no futuro, de estar sempre à frente do seu tempo. O estrelato não é alcançado facilmente; a trajetória é longa e, por vezes, só ficamos sabendo dela anos depois, quando a consagração já se consolidou.

Ser uma estrela envolve se expor, tornar públicas coisas que tantos outros escondem. Significa também ser vulnerável muitas vezes, aguentar julgamentos, pressões dos poderosos da indústria, ataques à autoestima. Assim como outras estrelas, Gaby Amarantos, 41 anos, mãe de Davi, 10, já passou por todas essas etapas – e ainda enfrenta boa dose de maldade e questionamentos. Mesmo assim, lá está ela, no auge, fazendo música, apresentando o Saia Justa, no GNT, ganhando dinheiro e rompendo preconceitos.

Gaby Amarantos não é uma personagem. Quando sai do palco, ela não “se desmonta”. Anda por aí com roupão de oncinha, turbante no cabelo e óculos de sol. A extravagância toda. Mas a mulher que já cantou no Barbican Center, em Londres, e no Central Park, em Nova York, é sensível e delicada também.

Depois de um dia longo de trabalho – em que fizemos as fotos desta matéria, em Aruba –, ela sentou-se olhando o mar, rezou, meditou e chorou. Em seguida, agradeceu à equipe. As conquistas não passam batidas, por menores que sejam. A cada ligação fechando parcerias ou contratos, gritos e sorrisos. A cada foto linda, abraços. Tamanha energia a mantém em movimento e lhe dá forças para seguir seu caminho.

No mês passado, a cantora lançou, em parceria com Duda Beat, Xanalá. Música e clipe falam da vagina, incentivando a mulher a explorar e conhecer seu corpo. “Quero que a gente quebre esse tabu. Esta revolução é feminina e começa pela vagina. Falamos de autoestima e não pode ser superficial, tipo: ‘Ah, aceito essa gordura aqui’. É mais do que isso. Tem gente que nunca se olhou no espelho, se abriu, se tocou, se estimulou. É um direito nosso ter prazer e precisamos aprender a conquistá-lo”, disse durante nosso encontro, já em São Paulo.

A faixa no cabelo protegia um curativo. Alguns dias antes, durante um show, a cantora tinha se desequilibrado e batido a cabeça em uma barra de ferro. Continuou cantando e só depois foi para o hospital – levou cinco pontos. “A vibe era linda demais, não queria parar”, justifica a leonina, que virou meme nas redes sociais, já que o episódio foi registrado em vídeo.

Nossa conversa foi das origens da paraense que cresceu no Jurunas, bairro da periferia de Belém, aos memes após o acidente, passando por relatos de episódios de racismo, revelações sobre a relação com o corpo e os objetivos na carreira. “A sociedade não está acostumada a ver uma mulher negra, fora do padrão corporal, que veio do Norte, da periferia, ficar rica e ser bem-sucedida”, afirma.

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Gaby Amarantos relembra momentos desafiadores e de superação na sua carreira
(Fernando Louza/CLAUDIA)

CLAUDIA: Por que você quis escrever uma música sobre a vagina?

A gente precisa entender o poder que tem, especialmente as mulheres. Isso envolve quebrar muitos padrões. Essa é uma parada tão opressora que chega até a xana. O Brasil é um dos campeões no número de cirurgias íntimas. As mulheres diminuem os lábios, mudam a cor deles pra rosa; tudo pra ficar novinha. A xana também conta uma história, a dos amores que você teve. E ela é linda como é. Essa padronização, de todo mundo fazer plástica para ter o nariz da fulana, os lábios da sicrana… Isso ainda vai dar muito errado. Acho que vamos perceber em uns cinco anos.

CLAUDIA: Essa percepção demora mesmo. Até para você levou alguns anos. Sei que está fazendo transição capilar, voltando aos fios cacheados, mas alisou por muito tempo. E me lembrei também de quando participou do quadro Medida Certa, do Fantástico. Isso tudo também é padronização.

Menina, só fui perceber dois ou três anos depois! O padrão escraviza, está ligado ao machismo, ao patriarcado. Caí na armadilha porque, quanto mais ia embranquecendo, emagrecendo, mais seguidores eu ganhava. E eu achava que aquilo era sinal de sucesso. Eu não tinha referências de beleza. Ligava a TV e via paquitas. Ao iniciar na carreira, eu fazia testes e ouvia: “Essa menina canta pra caramba, a gente só precisa alisar o cabelo dela, fazer uma lipo, afinar o nariz”.

CLAUDIA: Era a condição para dar certo.

Claro. Tanto que, quando comecei a fazer sucesso, a primeira coisa que fiz foi uma lipo, aos 21 anos. Depois outra e outra. Fiquei viciada em cirurgia plástica. Eu ia a um médico muito doido, já falecido. Bastava reclamar de uma gordurinha local que ele dava anestesia e fazia hidrolipo na hora. As pessoas me elogiavam, as bandas me queriam. Para dar certo, tive que me encaixar.

CLAUDIA: Hoje você faria outra cirurgia?

Nunca mais. É bom saber disso. E, se eu pudesse, diria para a Gaby de 21: “Gata, fica de boa, você tá ótima”. Hoje eu olho para meu corpo e fico feliz, me sinto bem. Claro que tenho uns surtos às vezes, mas respiro e tento me lembrar do que gosto em mim. Na internet, usam algumas fotos minhas como exemplo de corpo que você não deveria ter para vender tratamentos. Nem denuncio. Sei que me cuido. Mas vejo de perto essa pressão pelo padrão da imagem.

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CLAUDIA: O quadro do Fantástico foi em 2013. Então essa questão foi mais bem resolvida agora?

Eu amo comer, comida pra mim tem uma relação ancestral, das origens. Só que eu tive que fazer as pazes com isso. Antes, enquanto eu comia, já começava a me drenar, pra não acumular. Além da bulimia, que se estendeu até 2014. Só me curei dela porque queimou minhas cordas vocais e era uma ameaça verdadeira à minha carreira. Fiquei um tempo sumidinha para me tratar.

CLAUDIA: E como rompeu com tudo isso?

Em 2017, gravei um filme que ainda não saiu porque a cultura nacional está sofrendo com o conservadorismo atual. Mas é sobre uma serial killer que mata machistas com sua gangue de travestis. E ela é compulsiva alimentar. Come quando mata, transa. Mergulhei na personagem e vi que ela não podia ter aquele corpo magro que eu tinha na época; o corpo dela era político. Engordei 16 quilos, que mantenho até hoje. A libertação enfim chegou. Mas é um processo de reafirmação constante, de assegurar para mim mesma que estou linda, de postar foto e ganhar elogios dos seguidores.

Gaby Amarantos relembra momentos desafiadores e de superação na sua carreira
(Fernando Louza/CLAUDIA)

CLAUDIA: Falando de carreira, você ampliou sua área de atuação. Fez filme, está no Saia Justa. Por que quis participar do programa?

A Taís Araújo fez um ano de Saia. E eu estou há dois. Somos as únicas mulheres negras a participar. Isso é um ponto. Mas também porque é a oportunidade de mostrar para um público diferente a realidade do Norte, falar de indígenas, Amazônia. Temos tanto a mostrar, mas os próprios brasileiros só começaram a nos descobrir agora. E é outra realidade. Não poderia abrir mão de estar num lugar de relevância para essa parcela da população levando a cultura nortista.

CLAUDIA: Sua música já sofreu muito preconceito. Falam que é ruim. Como você lida com isso?

Há um ódio classista da elite pseudointelectual branca que acha que só MPB é bom e torce o nariz para outros ritmos, como o brega e o funk. Mas teve uma época em que o samba foi considerado ruim; e hoje é cult. Acho que o mesmo acontecerá com esses outros ritmos. Nosso país também valoriza muito o que vem de fora. Se eu não mostrasse músicas e artistas brasileiros para meu filho, ele só ouviria gringos, porque os aplicativos de música sugerem isso para ele. Ou então, nas 50 mais ouvidas do país, sertanejo, funk. Os artistas independentes têm menos espaço e, geralmente, menos grana. Eu sei porque sou independente. Só que graças a Deus sou rica e posso investir todo o meu dinheiro nos meus clipes, na minha música. Tem gente que compra bolsa, eu gasto em clipe. Outro dia, com o pessoal do Quebrando o Tabu, fui ler os haters na internet. Uma falava: “Gostava mais da Gaby quando ela era pobre”. A sociedade não está acostumada a ver uma mulher negra, fora do padrão corporal, que veio do Norte, da periferia, ficar rica e ser bem-sucedida.

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CLAUDIA: Sua carreira foi impactada pelo racismo?

Foram muitos os episódios. Tive que respirar diante deles e responder com arte, com inteligência. Fui estudar, ler, viajar. Mas não perdi as raízes. Sou a menina da periferia que ascendeu. O normal, nesses casos, é postar foto com carrão, com mansão. E eu acho bom. Para a galera preta, ostentar é um ato político. Mas optei por investir no conhecimento para poder rebater os preconceituosos. O que me salvou foi a música. Não fosse ela, eu teria três filhos e um pequeno negócio lá no meu bairro de origem ou seria caixa no supermercado. Mas não é só talento; eu tive que estudar muito para chegar aqui.

CLAUDIA: Quando entendeu o que era racismo?

Desde muito cedo. Quem nasce na periferia tem a noção clara do que lhe falta. Meu bairro era minha bolha, éramos iguais. Um pouco mais velha, fui para uma escola particular. Não era uma escola de elite, nem incrível. A diferença social era pouca. Mesmo assim, enfrentei preconceito. Era a única negra. Só eu tinha cabelo crespo. Sofri tanto bullying. Fui namorar com 24 anos. Tinha rolos, claro, mas só me assumiram já adulta. A solidão da mulher negra é uma coisa muito séria e real. Eu não achava que merecia alguém. Meu marido (Gareth Jones, que trabalha com Gaby) é inglês. Ele me dá vibrador de presente. Macho brasileiro ainda é muito machista, nunca faria isso. Hoje, vejo um monte de menina pretinha que tem exemplo, representatividade. Ufa! E eu falo todos os dias para minhas sobrinhas que elas são lindas.

Gaby Amarantos relembra momentos desafiadores e de superação na sua carreira
(Fernando Louza/CLAUDIA)

CLAUDIA: Seu filho mora com sua irmã e suas sobrinhas em Belém. Como tomou essa decisão? Já foi cobrada por isso?

Quando engravidei, o pai do Davi mandou eu me virar. Eu queria ter aquele filho, mas achei que era o fim da minha carreira. Quinze dias depois que ele nasceu, fui fazer meu primeiro show. Minha mãe ficava com o Davi. Aí ele já foi para o caribé, que é um mingau de farinha fina. Com uma mamadeira, ele dormia a noite toda e eu ia cantar. Um mês mais tarde, durante um show meu em Recife, um cara do programa do Faustão me convidou para cantar. Foi quando Faustão me anunciou como a Beyoncé do Pará. Mas ele viu que tinha mais ali do que uma cover e ficamos oito minutos no palco. Depois disso, muita gente me chamou. Quando o Davi tinha 1 ano, minha carreira estava bombando. Eu estava ganhando dinheiro e mandando para casa. Em dois anos, comprei um apartamento. Doía ficar longe, mas eu tinha tanta resiliência. Quando minha mãe morreu, minha irmã passou a cuidar do Davi. Eu digo que ele é um pouco filho dela, como minhas sobrinhas são um pouco minhas filhas. Nunca deixei a culpa me consumir. Eu olho pra trás e vejo o que construí. Estamos quase em 2020 e ainda tem quem cobra mulher que viaja a trabalho e deixa o filho com o marido. É inaceitável. Aí eu pergunto: “Manas, vocês vão ficar sofrendo e se privando ou vão lá encarar?”.

CLAUDIA: Você ainda mantém sua casa no Jurunas e fica lá quando está em Belém. Por quê?

Eu não quero que Davi seja um playboy que não tem contato com as diferenças. Meu filho estuda numa escola muito boa em Belém, mas ele vai todo fim de semana para o Jurunas tomar banho na piscina de plástico, jogar bola com os meninos do bairro. Eu quero que ele tenha consciência social.

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CLAUDIA: Cansa ser Gaby Amarantos?

Hoje eu consigo equilibrar minha vida. Faço pausas diárias e também tiro uns períodos off. Em 2012, no boom da carreira, eu trabalhava que nem um burro de carga, quase pirei. Essa conta veio uns dois anos depois. As mulheres precisam se dedicar ao autocuidado. Temos que nos colocar como prioridade também, zelar pela nossa sanidade mental. Ainda mais eu, que sou uma mulher negra e sofro com racismo, machismo, pressão estética. Eu acordo, faço meu reiki, medito, respiro, aí eu vou. Talvez há uns dois anos eu estaria na cama chorando depois desse vídeo da queda, que viralizou, achando que minha carreira tivesse acabado. Hoje já sei reverter isso a meu favor.

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