A cantora e empresária Preta Gil quer que o Brasil vença a apatia, o medo e o preconceito para ser uma potência do amor. Para isso, sabe que a arte e a beleza são ferramentas importantes para nos fazer sonhar grande
“Tenho no meu DNA a música afrodiaspórica”, dispara Preta Gil. Em 2022, a cantora carioca celebra seus 20 anos de carreira com um disco novo. Movida por toda sorte de sentimentos provocados pela pandemia de Covid-19 (ela própria enfrentou a doença duas vezes), Preta surge guiada por um objetivo quase universal neste momento de profundo luto coletivo: resgatar a si própria. Enquanto o nome do novo trabalho com composições próprias segue em aberto, ela rememora sua produção de estreia, Prêt-à-Porter (2002), entrega-se às relações familiares e profissionais e encontra espaço para ser inteira, sem retoques ou edições. “É uma espécie de renascimento”, conta ela nessa conversa sincera.
Moldar-se dentro de um parâmetro nunca foi natural para a artista. No início da trajetória, nem ela sabia muito bem definir como era o som no qual estava investindo. “Eu falava nas entrevistas que fazia afoxé funk”, diz para CLAUDIA. “Por muito tempo, eu me vi sozinha defendendo um gênero musical que rola na Bahia, mas não tinha muita compreensão da crítica na época sobre o que era aquilo de fato. Há uns três anos, vejo muita gente no mercado fazendo esse som que eu consigo sentir que é parecido com o que eu fazia há 20 anos: uma música brasileira com influência africana, muito swingada, com claves importantes do afoxé — isso está no Prêt-à-Porter e vai estar no álbum novo.”
Para chegar novamente na cadência contagiante de “Sinais de Fogo”, seu primeiro grande sucesso, regravado recentemente em parceria com a cantora Agnes Nunes, de 19 anos, Preta precisou atravessar vários tipos de luto. Da ausência dos palcos à passagem da avó e do seu melhor amigo, o ator e humorista Paulo Gustavo. “Eu fui num fundo de poço real, um estado de tristeza, de desespero”, desabafa. “Mas eu tentei e tento todos os dias ressignificar essa dor em mim, pensando em como o Paulo gostaria que eu estivesse reagindo, como ele gostaria de me ver feliz. Estar no convívio com o meu filho e minha neta, viver essa presença de amor e afeto, me dá forças para continuar.” Ainda assim, quando ela pisou no estúdio para começar as gravações, há cinco meses, desabou.
“O primeiro dia foi uma dor muito grande – porque criar é muito prazeroso, mas também muito doloroso. Você tem que se conectar com a sua inspiração e buscar esse sentimento nas coisas boas da vida. No cenário pandêmico e caótico em que a gente está, fica difícil. A atmosfera não é propícia para isso. Eu fui pela arte”, defende. Também foi fundamental a presença de produtores que pegaram nas mãos da cantora e disseram: “Você vai conseguir”. Segundo Preta, sem essa rede de apoio e incentivo, ela possivelmente não se arriscaria como compositora e, talvez, nem houvesse um disco em vista para o segundo semestre de 2022.
‘‘Eu fui num fundo do poço real. Estar no convívio com o meu filho e a minha neta, viver essa presença de amor e afeto, me dá forças para continuar’’
– Preta Gil
No aguardado álbum, rememorar será palavra-chave. Mas não espere saudosismo. Em um balanço contraditório, ao mesmo tempo em que a memória reafirma quem é Preta Gil e que som ela quer fazer, a memória trai. O campo das lembranças sublinha e exemplifica o que nós já pensamos sobre nós mesmos, mas ignora tudo que mudou. E que fique claro: Preta mudou, e muito. “Prêt-à-Porter era eu sendo eu. Eu me assumindo bissexual. Eu me desnudando na capa, entende? A partir disso, eu comecei a entender como LGBTfobia, racismo e gordofobia são questões sérias no Brasil e passei a combatê-las mesmo sem entender porque eu precisava levantar bandeiras para defender minha existência”, reflete. Agora, ela desbrava outras esferas de autoconhecimento e reconhecimento musical. “É um álbum de 20 anos de carreira: eu cheguei no estúdio com muitas certezas e muitas dores – e foi tudo por água abaixo. Veio uma Preta que não conhecia, uma Preta compositora e criativa musicalmente falando. Nunca tinha me permitido compor e, para mim, concretizar isso já é uma vitória.”–
‘‘Eu cheguei no estúdio com muitas certezas e dores e foi tudo por água abaixo. Veio uma Preta que não conhecia, uma Preta compositora e criativa musicalmente falando’’
– Preta Gil
A visão e a postura política de Preta são tão robustas hoje que há algumas premissas das quais ela não abre mão de jeito nenhum. Um editorial como esse com a artista, por exemplo, só se concretiza se não houver alteração nas fotos. “Agora, quando eu faço uma capa de revista, é pelo coletivo. Quando CLAUDIA me coloca em uma capa, mais que me enaltecer, o que está acontecendo é uma reparação histórica. A gente normalizou por muito tempo um padrão de beleza que trouxe muitas mazelas e as revistas têm responsabilidade em transformar esse cenário. Eu sei que eu não sou o padrão de beleza e eu represento essa ruptura. Esta capa, para mim, é de uma relevância enorme porque faz parte da reconstrução desse imaginário coletivo do que é beleza.”
Nessa busca por reorganizar as estruturas, Preta apostou muito nas colaborações. Segundo ela, essa é a parte mais legal de fazer música: poder trocar com pessoas que admira, de gerações ou estilos diferentes. “Nesses últimos dois anos, eu fiz pouquíssima coisa. As três coisas que eu fiz foram featurings com pessoas muito importantes para mim”, conta. Além de Sinais de Fogo, com Agnes Nunes, cantou Meu Xodó, com seu filho, Fran, e a faixa Oro, com Kynnie. “Eu vejo essa nova geração como um grande combustível para que a gente possa crescer e amadurecer como artista”, declara. As doze canções do próximo disco nasceram também do encontro de gente nova com muita ideia na cabeça. Já o processo foi uma experiência completamente diferente de tudo que Preta Gil já tinha vivido. Seus produtores fizeram um camping com seis compositoras. Do encontro, saíram 12 canções, a maioria com coautoria de Preta Gil.
O mês de março marca o primeiro show aberto de Preta e o início de uma série de ensaios de Nós, A Gente, um sonho antigo que, em 2018, ela resolveu dividir com a família: “E se a gente fizesse uma turnê todos juntos?”. Assim, cresceu a vontade de fazer uma turnê com o pai, Gilberto Gil. E há uma boa dose de poder quando um sonho é sonhado por muitos sonhadores. “É um presente que a gente vai se dar, para a vida e para a posteridade. Eu fico imaginando quando a minha neta, Sol, ouvir esse álbum e ver esse especial da família toda dela reunida, criando e se amando”, emociona-se.
‘‘A gente normalizou um padrão de beleza que trouxe muitas mazelas, e as revistas têm responsabilidade em transformar esse cenário. Eu não sou o padrão, eu represento a ruptura’’
– Preta Gil
Ainda em 2022 acontecerá a gravação da segunda temporada de shows na Europa, a concretização do desejo de Preta e um suspiro enquanto a pandemia demonstra que perdurará. Mas aquele clássico da folia carioca, o Bloco da Preta, fica para a próxima. Decidida desde 2021 a não fazer Carnaval, Preta permanece firme na visão de que a festa mais amada do país é a antítese de todas as precauções de saúde que precisamos levar a sério. “O que eu temia aconteceu: veio uma nova variante muito contagiosa”, lamenta. “Tivemos só nessa semana [do dia 11 de fevereiro] mais de 160.000 casos por dia. Não dá para normalizar as mortes e a pandemia. Imagina um Carnaval de rua, em que se misturam vacinados e não vacinados… Não é prudente, não é responsável e não é o momento. A gente tem que controlar a pandemia de forma real, e não abstrata. A gente tem que se esforçar para exterminar essa doença da humanidade.”
Enquanto o disco, a viagem e a volta do Carnaval seguem no seu tempo, o fone de ouvido da cantora baiana tem sido ocupado por Raquel Reis, Marina Sena, Tiago Pantaleão e Gilsons, lançamento do filho. Segundo ela, são esses os artistas que têm feito sua felicidade nos últimos dois anos. “Meu sonho para o Brasil é que a gente consiga vencer o medo. Existe um medo aterrorizador e, por um momento, a gente se deixou abalar”, diz. “O medo do obscuro, do retrocesso, da violência. Isso tudo fez uma parte de nós ficar apática. Eu espero que a gente vença isso e possa voltar a ser quem éramos, voltar a ser essa potência de amor, um país livre, diverso e inclusivo. Eu espero que a gente se una para vencer o medo.” Nós também, Preta!