E
m março de 2020, enquanto os adultos acompanhavam ansiosos o desdobramento de uma crise mundial inédita para a maioria de nós, as crianças deixavam suas rotinas na escola para estudar em casa. “No começo, ele adorou a ideia. Achou que ia ser muito legal, porque parecia um período de férias”, fala Carla Raas, gerente de marketing e mãe de Rafael, 12 anos, e de Cecília, 9 meses.
O que ninguém esperava era que o tempo de isolamento fosse durar quase dois anos. Aqui estamos, no final do segundo ano escolar impactado pela pandemia da Covid-19, e as dúvidas dos pais e os desafios para as crianças não acabaram ainda. Com a maioria das escolas retomando as atividades presenciais – com 100% dos alunos em sala de aula todos os dias ou em modelo híbrido –, os pais começam a perceber nos pequenos as consequências mentais do que vivemos.
“Vimos, nesse tempo em casa, o comportamento dele mudar. Primeiro, notei que ele estava menos engajado nas aulas. Tinha dias que ele não acordava, perdia as primeiras atividades. Depois, as notas começaram a cair. Meu filho nunca tinha tirado notas vermelhas e ele é uma criança que se cobra muito, algo que sempre me preocupou. Era perceptível que ele estava desestimulado. Essa alteração no humor chegou à relação com a família, o Rafael passou a ser menos carinhoso. Ele estava desenvolvendo um quadro depressivo, com fobias. Buscamos ajuda profissional”, lembra Carla, que, mesmo receosa com a volta à escola, preferiu deixar Rafael atender as aulas presencialmente.
“Ele convive com meus avós, que têm mais de 90 anos, e com a irmã bebê. Além disso, só tomou a primeira dose da vacina. Mas eu resolvi experimentar para ver o que acontecia.” O resultado foi o melhor possível. Rafael retomou a concentração, as notas subiram e, o mais importante de tudo, voltou a ser uma criança bem-humorada e leve.
“Emoções e laços positivos aumentam o vínculo e facilitam o processo de aprendizado. O olho no olho é mais efetivo para o ensino”
Renato Caminha, psicólogo
“Até a autocobrança diminuiu, o que achei um ganho nessa confusão toda”, completa a mãe. Segundo o psicólogo Renato Caminha, especialista em terapias cognitivas na infância e presidente do Congresso Brasileiro de Terapias Cognitivas da Infância e Adolescência (Concriart), é fundamental que os pais, os professores e a escola ofereçam, antes de qualquer coisa, acolhimento.
“É preciso promover a conexão empática, conversar, ouvir e ficar atento aos sinais. Se a criança está extremamente agitada e ansiosa ou demonstra retração social, deve ser observada mais de perto. Vimos um aumento dos casos de automutilação, que é um comportamento pré-suicida e exige atendimento. Caso a mãe, o pai ou o responsável estejam percebendo essas reações ou se sintam inseguros em relação à saúde mental da criança, recomendo procurar ajuda profissional”, acrescenta Renato.
A situação descrita pelo psicólogo foi exatamente o que aconteceu na casa da enfermeira Ana Cristina Esmeraldo, de Fortaleza. Trabalhando na linha de frente durante a pandemia, ela não conseguia acompanhar de perto a rotina de João Eduardo, 14 anos, e de Ana Júlia, 8.
Sabia, contudo, que as tarefas estavam atrasadas e que Ana Júlia apresentava uma regressão na capacidade de leitura. Mas o que deixou a mãe em estado de alerta foi uma conversa com o filho mais velho.
“Ele parou de fazer as refeições conosco, passava o dia fechado no quarto jogando videogame e se revoltou. Numa aproximação minha, ele revelou que já tinha tido pensamentos suicidas. Corri para achar uma psicóloga e ela nos ajudou muito. Parei de brigar com ele para ficar conosco, resolvi respeitar os tempos do João. Ele melhorou, mas fez bastante diferença quando ele pôde começar a ver os amigos. Eu não apresentei nenhuma resistência, porque sei que o isolamento foi cruel para os adolescentes”, fala a enfermeira, que viu João retomar os hábitos de antes da pandemia, como jantar com os pais e passar tempo com a irmã.
“Eu e meu marido nos sentimos muito culpados, mas não podíamos deixar nossos empregos e eu ainda estava lidando com aquela tensão de trabalhar em hospital, com as mortes. Foi um período muito difícil e só agora parece que estamos vendo uma luz”, diz Ana Cristina, que também conseguiu contratar uma professora para dar reforço para a caçula e afirma que já há progresso. “A escola acha que ela ficou tímida e criou um bloqueio de leitura, mas que, aos poucos, vai destravando”, explica a mãe.
Especialmente durante a adolescência, a convivência com o coletivo é determinante para a personalidade e a formação de autoestima e autonomia.
“Os adolescentes se comparam muito e o reconhecimento de si mesmo e do outro ficou reservado à câmera por muito tempo. Isso dificultou o desenvolvimento. Também sabemos que muitos de nós tivemos problemas com a alimentação, praticamos menos exercícios, mudamos muito fisicamente – insegurança que abala ainda mais os jovens. Tivemos que deixar as pessoas entrarem em nossas casas através das videoaulas, os amigos viram os ambientes que frequentamos, os irmãos juntos, o pai dando bronca. É uma exposição que não acontecia antes”, explica Georgia Vassimon, psicopedagoga, professora do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora de curso e diretora na instituição de São Paulo.
“Essa questão social é difícil de entender, porque não temos precedentes. Vejo o Rafael acuado. Ele quer paquerar, mas tem receio de tirar a máscara, tem dificuldade de conversar com as meninas. Fico pensando no que isso vai causar na formação social dele a longo prazo”, diz Carla.
De acordo com Georgia, as consequências mentais da pandemia sobre as crianças e adolescentes podem demorar algum tempo ainda para aparecer, afinal, tudo é muito recente e não chegamos ao fim dessa crise. E mesmo quem já parece ter melhorado merece uma dose extra de atenção, pois podem haver recaídas e pioras.
“Temos que deglutir isso tudo e entender os impactos que vão surgir. Para isso, é essencial observar a si mesma e aos outros, especialmente os filhos. Também é importante manter um canal de conversa aberto, falar sobre os medos e as incertezas dos pequenos. Essa tarefa os pais não vão poder delegar, porque faz diferença o retorno com uma situação estruturada em casa. Já vemos que os filhos das pessoas que não demonstram medo com a volta às escolas costumam se adaptar melhor”, afirma a psicopedagoga.
A opinião dos especialistas é unânime sobre priorizar a saúde mental em vez de pensar nas notas e matérias agora. Todo aprendizado será recuperado a seu tempo. Mas, para isso, é preciso que a criança esteja saudável e conseguindo se envolver emocionalmente.
“Nessa faixa etária, eles têm as janelas socioemocionais abertas. Isso permite socialização intensa e aprendizado das ferramentas sociais. Emoções e laços positivos aumentam o vínculo e facilitam esse processo. Por isso que o contato e o olho no olho é mais efetivo para o ensino. Quando entramos no digital, ainda mais dessa forma urgente, é como se tivesse faltado algo nutricional para o desenvolvimento”, acrescenta Renato.
“É importante manter um canal de conversa aberto, falar sobre os medos e as incertezas. Já vemos que os filhos das pessoas que não demonstram medo com a volta às escolas costumam se adaptar melhor”
Georgia Vassimon, psicopedagoga
Portanto, não será possível correr atrás das notas e matérias se a socialização não estiver em dia. “Caso você ainda se sinta insegura, converse com seu filho para entender, entre vocês e sem a influência da opinião alheia, os limites da convivência. Pode ou não dividir o lanche, emprestar o brinquedo? Tem que chegar num meio-termo em que todo mundo vai se sentir confortável”, aconselha Georgia.
Tempo demais nas telas?
Há algum tempo, discutimos a ameaça que a internet e o tempo gasto nos dispositivos eletrônicos podem representar à saúde mental das crianças. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde passou a considerar o vício em jogos eletrônicos uma doença e especialistas da área de psicologia comparavam a adição à tecnologia ao vício em drogas. Era aconselhado que os pais limitassem o tempo de tela dos filhos.
E então veio a pandemia e a vida das crianças e adolescentes passou a ser, na maior parte do tempo, concentrada no celular, computador e televisão. As atividades extracurriculares foram trocadas pelos jogos, as aulas online passaram a ser acompanhadas pela navegação nas redes sociais.
Sem muita saída, os pais dobraram suas regras. Mas e agora? “O ideal é retomar, aos poucos, as limitações de telas. Os pais devem propor outras atividades aos filhos – e não só proibir o uso dos aparelhos eletrônicos. É indicado organizar momentos em família que gerem interesse e promovam prazer.
Pode ser uma volta de bicicleta ou uma volta no parque, um jogo de tabuleiro, montar um quebra-cabeças”, sugere o psicólogo Renato Caminha. Caso seja possível, combine com outras mães encontros com os amigos no cinema, numa exposição ou até almoços e jantares. Procure retomar a socialização no mundo offline e deixar as telas para momentos combinados na rotina.