“Percebemos quando o comportamento dela mudou. Ela pediu de presente de Natal um kit de maquiagem infantil, nós demos. Mas pensamos que ela usaria eventualmente, só que não. Todos os dias, acordava e passava a maquiagem, muita. À noite, após o banho, ela colocava o pijama e passava também. Tornou-se um problema ter que limpar o rostinho dela”, conta a tia de uma menina de seis anos, que repentinamente começou a se preocupar muito com a aparência. A fonte preferiu contar a história em anonimato.
Outro problema relatado pela familiar da criança era o uso excessivo de filtros nas selfies. A situação ficou séria a ponto da garota chorar quando era chamada para fotos em família com a justificativa do registro não ter intervenções. “Foto só com filtro! Ela chegou a se recusar a sair na foto e chorar quando não deixávamos usar, mesmo explicando que não era necessário, que ela é linda, que a foto é para nós etc. Passou a me questionar o tempo todo o por que eu não usava maquiagem, brincos, esmalte, saltos. Ela não convive com pessoas assim, que estejam o tempo todo produzidas”, ressalta a tia.
O que deixou ainda mais os familiares em alerta foram os pedidos para ter as imagens com efeitos postadas nas redes sociais. “Também vieram os pedidos para que as fotos fossem postadas na internet, como vídeos no Tik Tok, e a preocupação para ver quantas curtidas ela havia recebido. Nós não somos muito ativos nas redes sociais, então estranhei”, afirma.
Foi aí que a tia recorreu aos pais da sobrinha para relatar tudo o que estava percebendo. “Eu e meu irmão conversamos muito sobre um atendimento psicológico. Eles [os pais] cogitaram, mas, quando as aulas voltaram, houve uma melhora significativa. Então, a ideia acabou ficando de lado. Eles decidiram tirar o celular dela e restringir o acesso ao contato dos avós e tias, o que já foi uma enorme mudança”, apontou.
A onda de distorção de imagem
Em dezembro de 2020, a Dove fez um levantamento, nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Brasil, que mostra que o comportamento observado nesta família é presente em 84% das adolescentes de 13 anos que usam aplicativos de retoque de imagem para distorcer a aparência. 78% das jovens também tentam mudar ou ocultar alguma parte do corpo que não gostam.
A pesquisa foi conduzida pela Edelman Data & Intelligence, uma consultoria global e multidisciplinar de pesquisa, análise e dados, com 503 meninas de 10 a 17 anos e 1.010 mulheres de 18 a 55 anos.
Outro ponto notado pela pesquisa é que 89% das jovens relataram que compartilham selfies na esperança de receber validação de outras pessoas. A busca por padrões inatingíveis e cruéis geram um impacto duradouro e prejudicial na autoestima e confiança corporal dessas meninas.
“Como é quase impossível manter os jovens longe da internet e não se tem uma estimativa exata da melhor idade para se ter acesso ao meio, o foco é pensar a forma que esse acesso está sendo feito pela criança e adolescente. Pais sem perceber provocam desde cedo essa interação ao colocar um vídeo infantil para um bebê assistir”, afirma a psicóloga Lara Cannone, mestre em mulheres, gêneros e feminismo.
A psicóloga ainda fala como essa observação pode ser feita. “É necessário analisar quanto tempo seu filho fica nas redes sociais, quais sites acessa, se faz outras atividades além do mundo tecnológico, têm conexões com brinquedos, objetos materiais, crianças da sua idade, atividades da vida real”, explica.
Acompanhamento
Em casos mais complexos, é indicado uma terapia familiar, mas depende muito do paciente avaliado. “A terapia com criança sempre envolve a família, mesmo que não estejam participando nas sessões. A psicóloga fica em comunicação e, caso seja necessário, ela indicará a terapia familiar. Então em um primeiro momento vale a pena escutar a orientação da profissional que conhece o caso, porque cada um vai ter um encaminhamento específico.”
Outra ressalva é que influenciadores digitais também podem mudar o comportamento da criança. “A própria palavra influenciador já diz muito, eles falam muito como pessoas devem seguir suas vidas, mostram uma versão editada deles mesmos. Jovens se frustrarem por não terem a mesma vivência, da pessoa que sempre estão acompanhando”, diz a especialista.
“Adolescentes quando têm acesso a filtros disponibilizados por imagens influentes na internet, também colaboram muito nisso. O que comprova a massificação da igualdade estética, que é nada mais é do que a imagem de pessoas bonitas e desejáveis”, alerta.
Prova disso é que, segundo a pesquisa, 35% das jovens brasileiras entrevistadas falaram que se sentem “menos bonitas” ao verem fotos de influenciadores ou celebridades nas redes sociais.