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Tudo junto e misturado: a diversidade das famílias mosaico

Em uma sociedade cada vez mais diversa, abrir espaços para novas configurações familiares é urgência tanto para nossa mente quanto para a lei

Por Lorena Tabosa
13 ago 2024, 16h00
família mosaico
Família mosaico é composta por múltiplos vínculos afetivos (Getty Images/Getty Images)
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“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” — eis aquele tradicional provérbio africano que exemplifica bem o significado de uma família mosaico. A ideia de compartilhar as responsabilidades familiares e de viver em comunidade, portanto, é centenária e ressoa entre parentes até os dias de hoje.

Apesar disso, diversas configurações de família ainda sofrem estigmatização e dificuldades legais para existirem no Brasil. Conhecida como pluriparental ou tentacular, uma família mosaico é composta por múltiplos vínculos afetivos, que podem incluir madrastas, padrastos, meio-irmãos, filhos dos novos cônjuges dos pais e por aí em diante. A configuração pode variar.

De acordo com Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010, essas famílias foram classificadas como “reconstituídas” e representavam 16% das 57 milhões de unidades domésticas avaliadas. Mais de uma década depois e com crescimento na quantidade de divórcios, é possível que esse número já seja bem maior.

A chef Mari Sciotti, 38 anos, foi mãe pela primeira vez aos 20. Nas últimas duas décadas, ela passou pela experiência de construir uma família em que todos convivessem em harmonia.

“Eu e o pai do Theo ficamos juntos até ele ter 3 anos. Hoje, ele não é mais vivo, mas sempre foi um pai extremamente amoroso e eu pude contar muito com toda a estrutura familiar dele”, diz.

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No Censo do IBGE de 2010, essas famílias foram classificadas como “reconstituídas” e representavam 16% das 57 milhões de unidades domésticas avaliadas. (Getty Images/Getty Images)

Quando Mari conheceu o atual marido, o empresário Alexandre Diniz, o filho ainda não tinha completado 4 anos. Em pouco tempo, já moravam juntos e cada pessoa da família tinha seu lugar. Hoje, os laços se expandiram ainda mais com os filhos Serena, Celeste e Santiago (que deve nascer em breve).

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“O Theo sempre soube que ele tinha um outro pai, ainda que meu marido seja uma figura paterna muito forte. Os lugares foram respeitados e acabou que funcionou muito bem, com uma cooperação entre todas as partes”, pontua.

A comunicadora Maiara Melo, 31, viveu situações opostas. Na juventude, conviveu com pai e mãe separados. Hoje, constrói sua própria família-mosaico, de uma forma diferente daquela que viveu.

“Cresci entre duas casas. Meus pais iniciaram novos relacionamentos. O da minha mãe já acabou e meu pai está com a mesma pessoa até hoje, cerca de 25 anos depois. Mas meus pais não se davam bem e o relacionamento da minha mãe com meu ex-padrasto era péssimo”, lembra.

O estigma de “família destruída”

Relatos menos positivos sobre famílias-mosaico de algumas décadas atrás, como o de Maiara, são comuns. O estigma de “família destruída” acompanhou separações e divórcios de toda uma geração de casais. As mulheres, além disso, também lidavam com casos de abandono de companheiros.

“O que acontecia até décadas atrás era uma naturalização do modelo heterocisnormativo. Então, tudo o que fugisse desse padrão era tido como desestruturação e não como outras formas de estruturação”, afirma Ana Lucia Gondim, psicanalista e doutora em psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento humano pela USP.

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A construção da família patriarcal e heteronormativa remonta à Antiguidade. Na Grécia e na Roma antigas, houve a migração de uma constituição matriarcal de família — o laço consaguíneo com as mães é o único que pode ser sempre comprovado, afinal — para a figura do homem como centro do núcleo familiar e detentor de direitos sobre todos os integrantes. E uma vez casados, apenas a morte poderia separar o casal.

Em seu consultório, Ana Lucia já atendeu famílias tentaculares, classificadas com essa denominação no início dos anos 2000, pela também psicanalista Maria Rita Kehl.

Os tentáculos remetem ao polvo, demonstrando que somos capazes de abraçar diversas pessoas e acolhê-las na família. Segundo Maria Rita, essa é a estrutura da família contemporânea, em oposição ao núcleo composto por um pai, uma mãe e os filhos.

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Ainda hoje, em relacionamentos heterossexuais, a maior parte da respon- sabilidade pelo cuidado das crianças, após a separação do casal, fica com as mães (Getty Images/Getty Images)

Ao se ver construindo sua própria família tentacular, ao lado do marido, Pedro, e do filho Bento, 3, fruto de outra relação, Maiara enfrentou os traumas da sua família de origem. Ela entendeu, contudo, que era possível criar laços afetivos entre todos.

“O fato de Pedro ter crescido e vivido em uma família-mosaico saudável ajudou. Ele teve uma referência de família plena, acolhedora. Isso contribuiu para que eu me sentisse segura em colocá-lo na vida de Bento, em decidir ter a nossa família e essa nova configuração, com a nossa filha (Pilar, ainda na barriga) e Bento totalmente integrados”, conta. “Tudo isso foi possível diante de muita conversa, baseado nas experiências dele, mas nas minhas também, porque eu sabia o que eu não queria.”

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A partir da nova família em construção, os pais de Maiara voltaram a conviver, os de Pedro se tornaram referências de avós para Bento e a família paterna é presente. No meio de tanta gente, o diálogo é a base de relações sadias e o caminho defendido por psicólogos e advogados na solução de possíveis conflitos. Especialmente quando alguns dos tentáculos da família são crianças.

“Quanto mais a gente desnaturaliza um único modelo de família, tirando a exclusividade do que é o papel da mãe ou do pai, e mais arejadas forem essas configurações, menos embates vão acontecer de forma violenta”, explica Ana Lucia.

Legislação precisa reconhecer as famílias mosaico

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Uma pesquisa do Datafolha mostrou que, em 2023, metade das mães no Brasil eram solo (Getty Images/Getty Images)

Ainda hoje, em relacionamentos heterossexuais, a maior parte da responsabilidade pelo cuidado das crianças, após a separação do casal, fica com as mães. Uma pesquisa do Datafolha mostrou que, em 2023, metade das mães no Brasil eram solo.

E há casos em que o casamento termina de forma conflituosa e vai parar na Justiça. Nos tribunais, no entanto, existe um vácuo para as famílias-mosaico. A legislação não acompanhou as mudanças na configuração das famílias, o que dificulta a manutenção de direitos e deveres de cada um.

“O reconhecimento formal da socioafetividade e seus efeitos com relação a pensão, guarda, convivência e herança é, sem dúvidas, a principal lacuna. As famílias-mosaico devem assumir o protagonismo do cenário jurídico por representarem a esmagadora realidade brasileira, merecendo tutela, interesse e decisões singulares e flexíveis, adequando-se ao caso concreto”, avalia a advogada Maria Fernanda Vaiano, especialista em Direito da Família.

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Segundo ela, o Código Civil, de 2002, carrega evidências do atraso legislativo. Ainda não é comum, por exemplo, que juízes aceitem a guarda compartilhada.

Em casos de divórcio com filhos, na maior parte dos casos a guarda principal fica com a mulher, uma opção que nem sempre é do interesse do casal e das crianças — e ainda tem a tendência de sobrecarregar as mulheres com os trabalhos de cuidado.

“As leis sobre Direito de Família já nascem defasadas. A constante mutação da sociedade não é acompanhada pelos tribunais. Ou seja, a solução nem sempre estará na lei. No caso do Direito de Família, quase nunca está.”

É nesse ponto que entra a jurisprudência, um conjunto de decisões dos Tribunais de Justiça e das Cortes Superiores, que pode servir de exemplo para casos futuros. Se uma decisão judicial já abriu um precedente sobre determinado tema, novas ações podem se beneficiar disso e chegar a resultados semelhantes.

A situação, contudo, tende a ganhar mais uma camada de complicações se a família é homoafetiva. A brasiliense Mariana Fonseca, 35, hair stylist e criadora de um perfil sobre dupla maternidade, diz que quase teve os combinados familiares desfeitos por lacunas e atrasos na legislação no que diz respeito a famílias diversas.

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Ela e a ex-mulher são mães dos gêmeos Noah e Louise, 5, e estabeleceram uma dinâmica própria para a família. “Eu e a Érika temos uma comunicação muito aberta. Decidimos que íamos morar muito perto e nos adequar às demandas de trabalho uma da outra”, conta.

A Justiça concedeu a guarda compartilhada às duas. As crianças ficam metade do mês com uma mãe e o restante com a outra, com a possibilidade de os dias serem distribuídos.

Esse arranjo não é comum e foi conquistado na sorte: o caso foi parar nas mãos de uma juíza que decidiu acatar aquilo que as mães já tinham combinado. Magistrados mais conservadores poderiam ter deixado uma delas apenas com visitas em fins de semana alternados, por exemplo.

À base de amizade, diálogo, respeito e companheirismo, a família de Mariana, Érika, Noah e Louise ramificou-se para incluir novos integrantes. Chegaram Lavínia, noiva de Mariana, Amanda, namorada de Érika, e os filhos delas. Um organismo fluido, uma verdadeira aldeia, com todos envolvidos na construção de sua própria família-mosaico.

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