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Morenas, mulatas, bronzeadas, exóticas? Não. Elas são negras

Mulheres contam como se descobriram negras e a diferença que isso faz na prática

Por Gabriela Kimura
Atualizado em 11 abr 2024, 17h53 - Publicado em 19 nov 2015, 13h00
Juliana Mavalli (/)
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Descobrir-se negra envolve muito mais do que os traços físicos, o cabelo e a cor da pele. Em um mundo no qual pouco (ou nada) se ouve falar sobre os grandes líderes negros, o outro lado da história negra no Brasil e repetidamente os padrões de beleza eurocêntricos são reafirmados, compreender-se negra e afirmar isso para o mundo é um processo longo e muitas vezes doloroso.

“Pode parecer algo pontual, mas é um processo que vai se desenhando e uma hora a ficha cai. Já sentia coisas na infância conectadas com minha cor de pele e meu cabelo, que não eram considerados ‘bonitos’, mas não conseguia nomear. Conseguia perceber algo, mas não via que era o fato de ser negra. E por mais que fosse evidente, não conseguia entender”, afirma Bianca Santana, jornalista, professora da Faculdade Cásper Líbero e autora do livro “Quando Me Descobri Negra“.

Tem algo na nossa subjetividade que é muito ferido: ‘todo mundo que se parece desse jeito é alguém que eu não quero ser’

BIANCA SANTANA

A verdade é que o Brasil não é um país que recebe bem a “pele mais escura”: a taxa de feminicídio é a mais alta desde 1980, principalmente entre as mulheres negras, representando um aumento assombroso de 35% desde 2006. De acordo com o Mapa da Violência divulgado pela FLACSO Brasil, a tendência é que o índice entre as negras cresça, enquanto entre as mulheres brancas, reduza. A democracia racial, no Brasil, é uma ilusão. “A gente tem essa ideia muito errada de democracia racial, de um país multirracial. A população negra ocupa o mesmo espaço de subserviência da época da abolição: não houve nenhum movimento nesse sentido. Ocupamos papéis que, muitas vezes, pessoas brancas evitam”, explica Bianca.

Ileine Machado
Ileine Machado ()

A mensagem que se recebe é que não vale a pena ser negra – e então acontece o embranquecimento. É um sofrimento diário de “esconder” os fios crespos, disfarçar os traços do rosto, evitar o bronzeamento; é saber que seguranças de lojas ficam de olho em você. “O processo de embranquecimento é algo que a gente experiencia há muito tempo: quando se imagina bem-sucedida, você quer se encaixar no padrão; quando vai comprar maquiagem e não encontra o seu tom, ou o fato de alisar os fios”, elucida Eliane Serafim, idealizadora do projeto Encrespa Geral.

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Para a autora norte americana Bell Hooks, ser negra, muitas vezes, está na combinação de cor de pele, cabelos e traços do rosto. Conforme elas se combinam, é mais fácil se passar por “branca” ou não nos lugares – o que resulta naquele famoso clichê “mas você não é negra, é morena/mulata/bronzeada/(insira aqui qualquer sinônimo que você já ouviu)”.

O que nós aprendemos a achar bonito esteticamente não é o que são as mulheres negras.

BIANCA SANTANA

Mas como, afinal, se chega ao “sou negra e ponto final”? Conversamos com algumas mulheres para entender melhor esse processo identitário complexo, longo e que prova o quão importante é a luta continuar:

Patrícia Avelino, do canal Vida Crespa

Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal ()

“A minha identidade negra começou a surgir em 2004, quando comecei a me enxergar em outras mulheres negras, como a Negra Li. Em casa minha família não fazia questão desse empoderamento, mas sempre me ensinou e falou sobre racismo. Antes disso, não gostava do meu cabelo. E não tenho vergonha de dizer que não gostava de ser negra. Tive muitos problemas durante a infância e adolescência, porque só me identificava com mulheres brancas, só tinha amigas brancas e só gostava de meninos brancos, mas era sempre a piadinha da escola. Então, quando vi que uma mulher negra era bonita na sua naturalidade, quis ser assim também. Parei de passar química no cabelo, mas tive uma recaída em 2007. Começar a me relacionar, dormir e acordar com uma pessoa vendo meu cabelo crespo me fez tropeçar nesse caminho rumo à liberdade capilar.

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Eu achava que estava 100% certa da construção da minha identidade, mas me vi assombrada pelas palavras de racismo que sofria na escola. Então novamente passei química nos meus cabelos.

Comecei a não me enxergar novamente, sentir falta da liberdade de ter meu cabelo crespo 100% natural. Em 2009 raspei a cabeça para começar do zero. Foi então que pensei que muitas outras mulheres negras também podiam sofrer por isso, Criei meu canal no YouTube para compartilhar com elas meus desafios. Acreditei que assim não estaríamos sozinhas: nem eu nem elas. Hoje sou 100% segura da minha identidade. Nada vai abalar isso: tanto que fiz uma tatuagem da palavra crespo no braço, porque hoje ele está na cabeça, na pele, na alma.”

 

Jarrid Arraes, cordelista

Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal ()

“Durante a maior parte da minha vida, me identifiquei como ‘morena’ ou como ‘miscigenada’. Meu pai é negro e minha mãe é loira, então nasci com a pele mais clara, mas com o cabelo e todos os traços faciais e físicos compreendidos como características negras. Sofri muito racismo, desde o bullying na escola até situações de discriminação quando saía com a minha família. Meu irmão, filho do segundo casamento de minha mãe, é branco. Então, quando saíamos juntos, eu sempre era ‘confundida’ como a babá do meu irmão, ainda que fosse apenas uma criança. Muitas vezes abri a porta da minha casa e perguntaram onde estava a minha patroa. O cabelo, que eu alisei por muitos anos, também foi alvo do racismo cruel da sociedade. Mas demorei muitos anos para compreender que eu era negra, ainda que meu tom de pele fosse mais claro. Felizmente tive o apoio de outras mulheres negras, que me ajudaram a estudar sobre a história do Brasil e as consequências da escravidão na nossa cultura, e a partir daí entendi que eu era parte de algo muito maior, que a valorização da minha negritude era um ato político de resistência contra o racismo.

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Nayla Ribeiro
Nayla Ribeiro ()

É importante também compreender que dentro do grupo de pessoas que se declara como pardas, não há somente pessoas negras, mas também de ancestralidade indígena. Eu trabalhei como recenseadora no último Censo e entrevistei centenas de pessoas que eram visivelmente negras, mas se identificavam como pardas ou até mesmo como brancas. Marquei a opção declarada por elas, mas ficou um gosto amargo na experiência. Ainda precisamos lutar muito para que o racismo deixe de ser um poder intimidatório e para que tenhamos mais oportunidade de conhecer nossas origens, a história da população negra no Brasil e a importância de valorizar a identidade afrobrasileira. Em muitos casos, as pessoas não se declaram negras porque ainda sentem medo da palavra e do que implica ser negro no Brasil. Se ainda vivemos em uma cultura que relaciona a negritude com termos depreciativos e más qualidades, que chama o cabelo crespo de ‘ruim’ e ainda associa as pessoas negras com papéis subalternos ou até mesmo criminosos, é difícil romper esse estigma.

É mais fácil se dizer ‘moreno’, ainda que aquele indivíduo experencie o racismo todos os dias, ainda que a sociedade o enxergue como alguém negro.

Quando a identidade é abraçada, ela se torna um fator de fortalecimento. Acredito que isso é resultado dos esforços do movimento negro e das políticas de ações afirmativas que vêm gerando cada vez mais debates sobre as questões raciais e o problema do racismo no Brasil. Com mais acesso à informação, as pessoas passam a refletir mais profundamente sobre suas origens e características físicas. Estamos ainda muito longe do ideal, mas já temos alguns avanços.

 

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Eliane Serafim, idealizadora do projeto Encrespa Geral

Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal ()

“Fiz uma cirurgia e fiquei 20 dias em casa. Quando me olhei no espelho, quis ‘me ver’. Alisei o cabelo durante muitos anos, mas percebi que ele não cabia mais para mim. Em casa não se falava de racismo, e quando eu era criança escutava coisas como ‘não vai conseguir nada com esse cabelo’, ‘quem nasce para soldado nunca vai ser coronel’. Então, entrei no cabeleireiro e dei R$ 10 para a moça cortar tudo. Depois disso a minha vida mudou radicalmente! Essa não é a única forma de se identificar, mas é um dos caminhos e um caminho forte. É difícil para as pessoas perceberem que o crespo é natural: elas enxergam de uma maneira muito depreciativa, como um desleixo.

A mulher precisa ser respeitada em sua amplitude, poder escolher fazer o que quiser com o cabelo!

É um processo que envolve descoberta e fortalece – mais ainda onde dói. Até porque a mulher negra sofre também em casa: ser desvalorizada pela família, pelo parceiro é algo que machuca mais do que pelos outros. Acaba que essa escolha não é só pelo cabelo, é pela pele mesmo. E se enxergar fora daquilo é um movimento doloroso, mas muito recompensador. No fim você se sente mais capaz de fazer as coisas. 

Essa mudança me fez renascer: sou uma mulher mais plena, mais confiante, eu enegreci, me sinto completa no que faço. Me especializei em terapia capilar (tricologia) e queria ajudar as pessoas nas dores delas. Elas colocam turbante, maquiagem e você não sabe para onde olhar de tanta gente bonita. É tentar fazer com que as pessoas se sintam mais fortes. Hoje o projeto Encrespa geral está em 22 cidades e em sete países: as dores são muito parecidas, muda o lugar, mas o contexto é o mesmo. A gente precisa voltar às nossas raízes.”
 

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MC Soffia, rapper

Morenas, mulatas, bronzeadas, exóticas? Não. Elas são negras

Com apenas 11 anos e muito estilo, MC Soffia vem ~destruindo~ o preconceito por onde passa. Suas músicas têm letras que apontam como o racismo afeta diariamente a vida de mulheres, crianças e homens negros. “Negros sofrem racismo no Brasil porque os brancos acham que são donos do país, que podem sair xingando por aí, mas na verdade o Brasil é dos índios. Só porque eles escravizaram os negros e os índios, não significa que seja tudo bem fazer piada”, fala, em entrevista por WhatsApp.

Os raps de Soffia, como Menina Pretinha, ensinam que é lindo e não há nada de errado em ser negra e ter cabelos crespos: “Menina pretinha / Exótica não é linda / Você não é bonitinha / Você é uma rainha”. Dá gosto de ver uma criança se empoderando, contando (e cantando) para o mundo que sua cor não limita seu crescimento – e ainda melhor ver que que o mundo também tem ganhado referências incríveis para mais meninas como Soffia.

Ser negra para mim é ter orgulho da minha cor, do meu cabelo, da minha boca, de tudo. Eu não tenho vergonha, gosto de ser assim. Já tive, mas hoje eu me gosto do jeito que sou!

MC SOFFIA


Nayla Ribeiro, fotógrafa

Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal ()

Nayla Ribeiro apaixonou-se pela fotografia em 2013, e também pelo ensaio sensual de mulheres. Para ela, essa é a maneira de demonstrar e explorar toda a beleza que cada uma tem, com suas particularidades. “Esses ensaios me encantam! Eu só ajudo elas a se descobrirem”, explica. Ela decidiu criar o projeto Mulheres de Raízes para mostrar toda a força, a beleza e o universo da beleza negra. Algumas fotos do projeto ilustram esta reportagem.

Nayla Ribeiro
Nayla Ribeiro ()

“Tenho 23 anos e passei minha adolescência toda ouvindo que o bonito era ter cabelo liso, que cabelo enrolado era coisa de gente pobre que não tem dinheiro para alisar. É complicado, tem muita gente diz que o racismo está na nossa cabeça ou fala que é bobagem. Quando tomei conhecimento que isso era um preconceito, resolvi me aceitar… e estou há quase um ano sem alisar. Por causa da transição, busquei pessoas com histórias semelhantes e comecei a conversar com elas. Aí vi que nos apoiando ia ser bem mais fácil, por isso resolvi fazer esse projeto e ajudar as outras mulheres a se aceitarem. E mostrar que não precisamos de um cabelo liso para sermos aceitas na sociedade!”

 

 

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