Quando era criança, Thamy Corrêa não sabia que podia ser cientista. Apesar de receber muito incentivo familiar para os estudos, seu mundo – como ainda é o de muita gente hoje – era dividido em coisas “de menino” e coisas “de menina”. A ciência não parecia se encaixar nas brincadeiras de boneca. Só no Ensino Médio, quando o mundo se surpreendia com a ovelha Dolly, o primeiro mamífero a ser clonado, ela se encantou com a possibilidade de ter uma ideia e poder comprová-la com experimentos. “A falta de representatividade definitivamente foi um obstáculo para entrar nessa área”, conta a bióloga do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), onde desenvolveu uma família de enzimas capazes de degradar plásticos PET, aliviando seu descarte e acúmulo no meio ambiente. Graças a esse trabalho, ela foi uma das seis brasileiras reconhecidas no Prêmio Mulheres na Ciência América Latina. Agora, com a ajuda de uma irmã professora, ela “recruta” meninas nas escolas para incentivá-las a sonhar com essa profissão.
Dados globais mostram que mulheres representam apenas 35% dos profissionais no setor de STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, na sigla em inglês). No Brasil, elas são 26%, de acordo com o International Development Research Center, uma realidade que Érika Freitas, PhD em genética humana e molecular, entende. As colegas eram maioria no curso de ciências biológicas, mas, à medida em que foi avançando na carreira, seu gênero tornou-se minoria. “Uma mulher tem sempre que se justificar e provar que é melhor que um homem para ocupar cargos de liderança”, lamenta. Ainda durante a graduação, após dois anos de iniciação científica e desejosa de fazer o mestrado, ela já lidava com esse machismo. “Meu orientador disse que eu não tinha chance, porque ele já tinha selecionado dois homens para o grupo de pesquisa. Achava que mulheres iriam engravidar e largariam o projeto no meio”, diz. Atualmente, Érika é gerente executiva de dois grandes laboratórios e chefia equipes onde todos os cargos de coordenação, com exceção de um, têm liderança feminina.
Retorno social
Renata Bannitz sempre foi uma criança curiosa, que gostava de física e matemática. Decidiu cursar biologia porque adorava a ideia de trabalhar num laboratório, de jaleco branco. Já no primeiro semestre da faculdade, fez iniciação científica e, com uma sólida trajetória de pesquisa, pulou direto da graduação para o doutorado na USP. “Quando concluí, senti necessidade de que meu conhecimento chegasse à sociedade e não ficasse restrito à academia, porque o Brasil lidera rankings de produção científica, mas é lanterninha em inovação”, conta. Por isso, ela criou, em 2017, a Biobreyer, empresa na qual ela e o sócio desenvolvem novas opções de biofármacos para tratar a leucemia infantil. Esse trabalho também lhe rendeu o Prêmio Mulheres na Ciência América Latina, realizado pela3M.
“Além do reconhecimento pessoal, prêmios como esse são um grande propulsor para todas as mulheres no mercado, onde ainda percebemos que os altos cargos em empresas investidoras e instituições de fomento são, invariavelmente, de homens”, acrescenta. Renata, que tem uma filha de um ano, acredita que o fomento à participação feminina deve começar cedo, em casa. “Muitas meninas ainda ganham de presente bonecas e jogos de panela, quando há outros mais interessantes, como dinossauros, meu primeiro microscópio, coisas que expandem o horizonte”, diz. Em 2017, um estudo publicado na revista Science indicou que os preconceitos de gênero fazem com que as meninas se sintam menos “talentosas” que os meninos já a partir dos 6 anos, o que impacta suas escolhas de carreira.
Tento ensinar minhas filhas que se trata de achar um lugar no mundo para viver nossa potência, mas que isso dá trabalho
Maira Habimorad, CEO do Inteli
“É preciso mostrar mulheres em posições de destaque em diferentes áreas, algo que não era comum em minha geração. Por isso, tenho conversado com crianças nas escolas para falar de ciência, perguntar quais mulheres cientistas elas têm estudado. Nos meus livros, só via fotos de Albert Einstein, Galileu Galilei, Darwin… Por trás deles todos, sabemos que havia muitas mulheres envolvidas em suas pesquisas”, diz Jaqueline Goes, biomédica que mapeou o genoma do Sars-Cov-2 e tornou-se conhecida internacionalmente. Ela foi uma das cientistas escolhidas pela Mattel para ser homenageada com uma boneca Barbie à sua imagem e semelhança pelo trabalho na pandemia. “As meninas precisam saber das disparidades de gênero no mundo, mas também precisam ter exemplos a serem seguidos para romper essa realidade”, afirma Jaqueline.
Inovação
E que melhor exemplo do que Nina Silva? Eleita no ano passado a Mulher Mais Disruptiva do Mundo pela Women in Tech, ela é idealizadora e sócia do Movimento Black Money, uma plataforma de afroempreendedorismo que conecta produtores e fornecedores negros aos consumidores, oferece crédito e oportunidades de educação tecnológica, além de planos de inclusão racial para empresas parceiras. Nascida no Jardim Catarina, em São Gonçalo (RJ), na época a maior favela plana da América Latina, Nina teve o primeiro contato com tecnologia quando foi trabalhar na adolescência para ajudar a família. “Tinha que implementar um sistema integrado de gestão empresarial e eu não sabia absolutamente nada de TI. Quando comecei a aprender, me empolguei e fui autodidata. Só depois de anos na área ganhei cursos que custavam cinco vezes o meu salário cada um. Gastava horas depois do expediente lendo as páginas do manual e fazendo linhas de código”, lembra.
Quem pensa em manter o status quo está com uma mentalidade analógica, e não digital
Nina Silva, do Black Money
Com 21 anos de experiência e tendo passado por diversas multinacionais, uma de suas maiores ambições é colocar mais mulheres, principalmente negras, ao seu lado. “Já passei por clientes duvidando de que eu fosse a gestora do projeto, perguntando se eu não era a recepcionista. Nunca tive pares, eram sempre raríssimas as pessoas negras em cargos de liderança onde trabalhei, e poucas mulheres também”, relata, clamando uma mudança de mentalidade nas organizações. Para Nina, paridade significa inovação. “Quem pensa em manter o status quo está com uma mentalidade analógica, e não digital. Uma empresa com um programa de trainee para formar mulheres e pessoas negras como líderes mostra para o consumidor que ela te olha de igual para igual”, exemplifica.
Quem sabe disso é Maira Habimorad, CEO do Instituto de Tecnologia e Liderança (Inteli), em São Paulo, que tem o desafio de incentivar a presença (e a manutenção) feminina em cursos tradicionalmente masculinos, como engenharia de software. Além da política de bolsas, na qual pelo menos dez vagas são reservadas para elas, Maira leva a sério a tal da representatividade. “Aqui, as alunas veem mulheres ocupando cargos estratégicos e até de maneira simbólica. Todas as plataformas de ensino e atividades, por exemplo, homenageiam grandes mulheres da área”, diz. Uma delas é batizada de Ada Lovelace, matemática considerada a criadora do primeiro programa computacional. Mãe de duas filhas, Maira sabe que ela mesma é espelho para as novas e futuras gerações. “Nem sempre meu trabalho as inspira, mas tento ensiná-las que se trata de achar um lugar no mundo para viver nossa potência, além de uma simples maneira de pagar as contas. Quero ensiná-las que podem ser quem quiserem, mas que isso dá trabalho.” Desde que visitou o trabalho da mãe pela primeira vez, a mais velha, de 12 anos, parece estar segura: quer ser engenheira computacional.