Tudo há de se movimentar. É com essa certeza que a chef Andressa Cabral concebe seu apartamento no bairro do Leme, no Rio de Janeiro. “Para mim, é um sintoma muito grande quando você não é capaz de gerir o estado do lugar em que você habita. Nesse espaço, você precisa passar, o vento precisa soprar, a alegria precisa circular”, conta a também professora, empre- sária e apresentadora, que estreou no início do segundo semestre deste ano na Netflix no comando do Iron Chef: Brasil, ao lado de Fernanda Souza.
Quem quer provar as receitas de Andressa pode visitar o restaurante Yayá Comidaria Pop Brasileira ou o gastrobar Meza, ambos no Rio. Conhecer seu ambiente doméstico, porém, não é tão simples.
Depois do meu corpo, que é a minha maior morada, é na minha casa que guardo meus maiores segredos. Faço aqui as maiores comemorações e choro as maiores tristezas
“Eu sou de candomblé. Depois do meu corpo, que é minha maior morada, é na minha casa que eu guardo meus maiores segredos, faço as maiores comemorações e choro as maiores tristezas. É um lugar que eu escolho quem vem, quem vai ser digno de dividir minha intimidade”, diz. Com a mãe, aprendeu a sabedoria popular: “Coração dos outros é terra que ninguém pisa”. Escolher bem quem convida para entrar no seu santuário repleto de plantas, móveis originais e cores foi um jeito de preservar um equilíbrio sutil da casa, levando em conta as intenções de todos e também sua própria intuição. “Quem é de amém, que reze seus améns. Eu sou de axé. Minha casa é toda cheia de firmamentos”, divide, sempre com uma mistura encantadora de leveza e assertividade.
Entre os objetos repletos de sentido da sua decoração esta um porrão que hoje funciona como vaso para um pau d’água: “Quando eu fiz 40 anos, criei uma festa para mim. Comprei o item para trazer esse ar ancestral e depois o levei para meu ilê, onde um espaço sagrado de banho é cercado por pau d’águas. Ele ficou lá sofrendo a ação do tempo, ganhou esse limo e trouxe para casa do jeito que estava”. Na sua carreira, o passar dos anos só fez prosperar seus projetos e amplificar sua potente voz. “A oportunidade de estar na tevê acende em mim o orgulho de performar uma mulher preta que entrega beleza e autoridade intelectual. Isso me seduz muito.”
Gosto de celebrar minha beleza, com toda humildade que essa frase possa carregar. Entendi que não era mau eu viver minha exuberância
Festejar sua própria existência não foi um caminho fácil para quem, desde jovem, ouviu frases como “Está de salto para que? Você já é alta” , entre outros convites para se esconder e apequenar. “Gosto de celebrar minha beleza, com toda humildade que essa frase possa carregar. Gosto de estar cheirosa. Não sou fashionista, mas uso sapatos feitos à mão. Aprendi a colocar numa outra perspectiva meu tamanho no mundo, passei a entender que não era mau eu viver minha exuberância.” Na filha Valentina, de 13 anos, já enxerga uma rota mais livre para o autoamor: “Ela adora uma montação, um close”, brinca, abrindo um sorrisão orgulhoso.
Seu vigor traduz-se em peças do mobiliário que ela mesma desenhou, como a estante da sala: “Não entendo nada de arquitetura, mas montei tudo com dois amigos. Queria usar uma tubulação de gás antiga que tinha a cor do meu metal, o dourado. Combinei uma peça de ponta-cabeça, até os caras entenderem que eu queria uma estética, não uma funcionalidade, foi um tempo”, diverte-se. “No fim, o móvel conseguiu unir as coisas que eu e meu marido, Fernando, já tínhamos.”
O desenvolvimento de um novo prato segue o mesmo ar intempestivo de quem não segue regras, mas aqui, sim, tem método e muita técnica. Tudo tem início no escritório — e não na cozinha, como alguns cozinheiros preferem. “Meu processo criativo tem uma robustez. Começo com um briefing sobre o prato, delimito qual vai ser meu problema, qual é a historia que vou contar. Num mapa sensorial, pego as ideias e vou trazendo as sensações que elas me trazem. É um processo de total abstração, vou usando palavras-chave, faço um moodboard, pego uma imagem se as palavras faltarem. Só depois entro nas propriedades organolépticas e nos ingredientes, daí vou para as panelas”, conta.
Papel em branco, canetinhas e muita criatividade são ferramentas de trabalho. Do design thinking, conjunto de métodos que também ensina aos seus alunos em sala de aula, Andressa traz ferramentas como o duplo diamante, que ajuda a descobrir, definir, desenvolver e entregar inovações para o paladar. A seriedade e elaboração mental nunca anda longe, porém, há paixão e diversão em cada fase do processo. Não falta na sua estação, por exemplo, um potinho de alguma guloseima, como balas ou chiclete, para adoçar o paladar.
“Fiz do escritório esse espaço físico de materialização dessa intenção criativa, fui espalhando cores, percebi que procuro de maneira consciente acessar essa minha criança interna.” Guiada por Iansã, Andressa deixa as portas abertas para gratas surpresas e boas risadas, mas não desrespeita tradições importan- tes. Nem ela, nem a família comem alimentos restritos pela devoção à orixá dos ventos, como a abóbora e o cordeiro. “Existem heranças espirituais. A mesma boca que pede para Iansã é a boca que come.” Dos seus lábios, só entram e saem sentimentos de gratidão e graça. “Assim é o ímpeto criativo, tem alegria.”