O mundo através das lentes afetivas e intuitivas de Julia Mataruna
Com belos retratos de Gal Costa, Emicida e Marina Sena em seu currículo, a fotógrafa vem eternizando grandes celebridades de maneira honesta e vulnerável
Filha de pais criativos que a ensinaram a linguagem da arte antes mesmo que aprendesse a ler e escrever, Julia Mataruna, em seus mais de quinze anos de carreira, pode ser considerada uma verdadeira artesã visual. Não importa em que contexto esteja (e com quais pessoas esteja colaborando), a fotógrafa faz questão de conduzir o seu trabalho de maneira afetuosa e intuitiva, seguindo o seu coração para criar retratos deslumbrantes que priorizam a essência de quem está em frente às câmeras.
Inclusive, quem vê as imagens realizadas pela profissional pode imaginar que exista um grande (e complexo) processo técnico por trás dos registros capturados por suas lentes. Entretanto, o seu modus operandis é justamente o contrário: Julia, acima de tudo, se deixa guiar pela empatia no momento de realizar a sua arte (a qual ela define simplesmente como “carinhosa”).
Em entrevista exclusiva à CLAUDIA, ela destrincha o seu inspirador processo criativo, resgatando o início de sua relação com as imagens e enaltecendo a importância da fotografia enquanto plataforma para um viver transformador. Confira:
CLAUDIA: O sonho de ser fotógrafa sempre te acompanhou? Como esse desejo se desenvolveu?
Julia Mataruna: Cresci em uma família bastante artística. Desde pequena, eu cantava em coral, participava de shows da escola [apesar de ser muito tímida, lembro que uma vez cantei atrás das cortinas]. E eu tinha principalmente algo forte com as imagens. Adorava desenhar, meu padrasto é artista plástico, meu pai desenhava muito, minha mãe é estilista. Então sempre estive imersa neste universo, aprendi a mexer com cor e interpretar composições antes mesmo de aprender a ler e escrever.
Lembro que, a partir da quarta série, eu levava a minha câmera para a escola e fotografava todos os meus colegas. Acabei fazendo faculdade de desenho industrial, e sempre que tinha a oportunidade, participava de ensaios fotográficos. Acho muito interessante pensar nisso, pois às vezes dou cursos, e as pessoas me perguntam: ‘como você aprendeu a fotografar?’. Para isso, eu respondo que simplesmente não sei. É algo que apenas veio. Quando fazemos alguma coisa desde pequenos, se torna natural.
CLAUDIA: Me conte sobre o momento em que a fotografia deixou de ser hobby e se tornou uma profissão. Quais recordações você guarda deste período?
Julia Mataruna: Eu comecei ajudando as pessoas mais próximas – minha mãe tinha uma loja e, de vez em quando, fotografava as suas peças. Quando minhas amigas faziam 15 anos, eu registrava tudo. Também tirava fotos dos brigadeiros que a minha irmã preparava para vender na escola.
Agora, o meu primeiro trabalho oficial foi como assistente de foto do Ernani d’Almeida. Lembro que ele foi dar uma palestra em minha faculdade, e eu pensei: ‘Caraca, o cara está rodando o mundo inteiro, fotografando de presidentes à celebridades, e ainda está ganhando para isso. É isso que eu quero fazer’. E aí, depois de passar um ano com o Ernani, colaborei com o Jorge Bispo, que também é retratista. Ele me incentivou bastante a mudar para São Paulo por conta das oportunidades de mercado. Então eu vim, e estou aqui até hoje.
CLAUDIA: Como você desenvolve um vínculo de confiança com as pessoas que fotografa, mesmo que nunca tenha estabelecido contato com elas previamente?
Julia Mataruna: Isso dá uma tese! [risos]. Eu era muito tímida quando comecei [a carreira], e ser assistente me ajudou bastante, pois eu me via obrigada a falar com as pessoas. Para você ter uma noção, eu era tão tímida, que não conseguia atravessar a rua sozinha. Precisava que alguém me acompanhasse para que eu não passasse na frente dos carros desacompanhada. Perdi isso graças ao Ernani: ele me instruiu a criar uma personagem. Nós a chamávamos de ‘Alice’. Então, a Júlia poderia não fazer, mas a Alice fazia.
Por necessidade e vontade de estar naquele meio, fui criando essa abertura. Hoje em dia, até por conta dos meus estudos de psicanálise, passei a perceber o quanto as pessoas querem ser genuinamente vistas e ouvidas. Estando presente, olhando no olho, quebramos uma barreira. Podemos estar lidando com o Tony Ramos: na frente das câmeras, ele ficará tenso, pois sabe que o registro de uma imagem é algo que fica para sempre.
Queremos ser bem registrados, e mesmo quem não gosta de ser fotografado nutre o desejo de ser visto da melhor maneira possível. Com tudo isso em mente, aprendi que, sendo carinhosa, escutando e mostrando o que estou fazendo constantemente, as pessoas vão se abrindo. Como eu disse: eu era muito tímida, e sei o quanto a experiência num ensaio pode ser pavorosa. Portanto, quando vou fotografar alguém, tomo muito cuidado, mesmo que seja apenas através da forma de olhar o próximo.
CLAUDIA: Qual foi o seu trabalho mais desafiador, em termos conceituais?
Julia Mataruna: Não tenho algo específico em mente, mas sinto dificuldade em lidar com equipes muito grandes, especialmente em trabalhos publicitários onde o resultado não permite alterações e precisamos entregar o que está escrito no escopo. Esse é o ambiente mais desafiador, pois não sou uma pessoa muito cartesiana. Faço as coisas muito no ‘flow’, gosto de testar sugestões e ideias novas durante o processo. Amo trabalhar de forma solta e me divirto até mesmo quando tenho pouco tempo para executar o conceito. Só não sinto tanto prazer em ambientes inflexíveis, em que muitas vezes o cliente tem a palavra final, mas não sabe o que deseja. Detesto quando a equipe não trata bem quem está sendo fotografado. São aspectos que dizem respeito menos à fotografia, e mais sobre relações humanas.
CLAUDIA: Falando nisso, o que pesa mais na hora de fotografar, a técnica ou a sua intuição? Como você realiza esse equilíbrio?
Julia Mataruna: Eu acho que é como correr. Não pensamos em estender o pé da frente, depois o de trás. Você só corre. Vem muito desse lugar. Existe um momento em que você internaliza a técnica e não pensa tanto sobre. Eu sinto que a fotografia enquanto suporte de criação de imagem funciona muito para mim, pois absorvi as propriedades com muita naturalidade. Cada detalhe cria um efeito específico. Como faço isso desde criança, sei do visual provocado por um ISO alto ou por obturador aberto por um longo período. Então, consigo saber exatamente o que eu quero no momento do ensaio.
Até dou o exemplo do ensaio recente de CLAUDIA com Marina Sena: ali, eu compreendia que não cabia uma foto borrada. Tratava-se de um registo de muita textura, queríamos mostrar o corpo dela, bastante pele. Então, eu inconscientemente já fechei a abertura da lente, pois se eu a deixasse aberta, teríamos muito desfoque. Deixei o flash mais forte, caso contrário, precisaríamos de mais luz. Todos esses insights vêm naturalmente. Acredito que, a partir do momento que tenho esse feeling de como a imagem deve ser registrada, a técnica vem de maneira inerente. É difícil acontecer um trabalho em que eu precise pensar muito na técnica.
CLAUDIA: Há algum aspecto específico que precise estar presente durante um ensaio para que você tenha certeza de que está na direção correta?
Julia Mataruna: Tem, e eu ainda não sei explicar exatamente o que é! Às vezes, estamos fotografando e as pessoas em volta dizem: ‘Uau, está bonito!’. Mas aí eu olho e penso: ‘Ainda não chegamos lá’. Um dia irei estudar isso nas fotos que eu gosto, pois há sempre um momento em que as coisas apenas se encaixam. Acredito que seja sobre composição, a posição do rosto da modelo em relação ao corpo… Eu também realizo fotos gastronômicas, e, nessas, sei que o fator especial está na composição, na linha de fuga e nos terços, pois quando eu coloco a grade de composição, vejo direitinho que existe a parte mais importante em um terço, depois há um respiro e por aí vai.
Também tem aquele aspecto da pessoa estar relaxada, não estar posando tanto, com aquele ar de mistério. Quando surge esse ‘misteriozinho’ na imagem, sinto aquele frisson necessário para saber que consegui o que queria.
CLAUDIA: Como você definiria o seu estilo de fotografia?
Julia Mataruna: Pessoas muito lindas e confortáveis! [risos]. Gosto de fotografar as pessoas como eu gostaria de ser apresentada. É uma fotografia muito carinhosa e empática.
CLAUDIA: Como você busca referências sem perder a singularidade de seu trabalho?
Julia Mataruna: Eu adoro aquela frase de Lavoisier: ‘Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma’. Dificilmente fazemos algo sem ter visto alguém executar antes. Amo pegar um livro de retratos de Richard Avedon ou do Irving Penn, que são retratos com uma luz muito suave, que ilumina e dá volume, mas não é super publicitária. Sou apaixonada por fotos com fundo neutro, onde consigo realmente ver a pessoa. Minhas referências definitivamente são mais retratistas.
CLAUDIA: Qual é a sua conexão emocional com a fotografia, além dela estar presente em seus vínculos familiares? Onde essa arte ressoa em você?
Julia Mataruna: Pra mim, a fotografia é uma ponte maravilhosa com o que tem de mais fantástico no mundo. Eu não sou definida como fotógrafa, mas sim pelo o que a fotografia traz para a minha vida. Ela enriquece a minha experiência de mundo, é quase como se fosse uma entidade mágica. Do nada, alguém me liga e fala: ‘Júlia, preciso que você vá para o Uruguai fazer foto de um time de futebol’. E, de repente, eu tô no Uruguai com o time, fazendo foto no vestiário, ouvindo piada de macho e me divertindo com tudo isso.
Em outro momento, estou num restaurante foda provando as melhores comidas. Do nada, estou na garagem do Emicida com ele me mostrando um disco inédito, faixa por faixa, e eu chorando na plantação de manjericão do cara. Poder fotografar pessoas incríveis, que estão fazendo algo notável, é como viajar na janelinha do mundo.
CLAUDIA: Até o momento, de quais trabalhos você mais se orgulha? Existe algum que se sobressaia?
Julia Mataruna: Fazer as fotos do Emicida para a divulgação do ‘Amarelo’ foi muito maravilhoso. São bons retratos, bastante bonitos. E outra coisa, que não foi um trabalho, mas teve uma carga emocional enorme, foi fotografar o parto da minha sobrinha. Eu acompanhei de pertinho. Minha irmã pariu aqui em casa, no meu quarto, e eu fui registrando tudo. Estar presente nessa intensidade, capturar a emoção dela e do meu cunhado, foi fantástico.