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Livro “Cara Paz” desenvolve as complexidades das relações em família

Autora Lisa Ginzburg comenta sobre a história de duas irmãs que se seguram na esperança da memória de uma infância aparentemente feliz

Por Paula Jacob
18 jul 2023, 09h50
Livro "Cara Paz", de Lisa Ginzburg
 (Barbara Ledda/Divulgação)
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Cara Paz. Pode parecer um nome estranho para um livro, meio etéreo, meio poético, um pouco dos dois. O termo vem da expressão carapace, em italiano, que, segundo a nota da tradutora, Francesca Cricelli, é intransponível para o português. A ideia seria carapaça, mas para brincar com o título original, Cara Pace. O duplo sentido é perfeito para a dinâmica familiar que Lisa Ginzburg apresenta no livro (R$ 70, Editora Nós), em uma história sobre as irmãs Nina e Maddalena, que relembram momentos da infância, marcada por abandonos afetivos e uma incansável busca pelo afeto dos pais.

A dinâmica entre as duas é complexa e profunda, uma em contraponto com a outra, para nos fazer refletir sobre esse afeto transversal que é importante, mas pouco falado, mas também para mostrar o quanto a experiência humana é singular. Nem mesmo duas pessoas, criadas na mesma casa, pela mesma mãe e o mesmo pai, são similares no jeito de sentir e se expressar no mundo. Uma aventura literária na memória feminina de existir no mundo a partir do olhar da família.

Lisa Ginzburg ainda nos presenteia com uma literatura instigante e apaixonante, de fazer a leitura ser uma delícia apesar de complexa, com sua escrita envolvente e pouco óbvia. Ela nos deixa saborear as coisas singelas da vida, sem deixar de nos encantar com passagens descritivas e inventivas. A seguir, uma conversa com a autora, para desvendar esses mistérios das relações humanas – ou ao menos divagar sobre:

Temos tido muitas traduções de autoras italianas no Brasil, para além de Elena Ferrante, e acho curiosa a questão da maternidade, que acaba se repetindo nessas histórias. É algo cultural?

Não sei, pode ser um pouco moda, né? Porque a literatura às vezes é moda… Mas você tem razão, são muitos. Não sei se ela foi traduzida no Brasil, mas Fabrícia Armandino, falecida nos anos 80, morava lá em Nápoles e a ambientação era lá, como em Ferrante, mas ela também explorou esse contexto da mãe e da filha. Tem também a Elsa Morante que escreveu um romance, onde a figura da mãe tem protagonismo. 

Eu não sei, pode ser que seja uma pesquisa do feminino que passa por essa relação com a mãe, mas não sei sinceramente como explicar, mas agora, por exemplo, tem menos. Acho que um pouquinho é moda, né? Não no sentido negativo, mas é o momento, sinto que tem uma pesquisa da identidade da mulher enquanto escritora, como a escritora feminina, uma busca que se dá pela escrita sobre a mãe.

Meu livro também, acho que diz isso, que quando ficamos pensando nas nossas mães, mais plural, não somente a nossa mãe biológica, mas as mães, ficamos pensando na nossa identidade de mulher. Então, é uma pesquisa que na escrita pode ser muito profunda. 

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Uma das coisas que gostei muito no seu livro foi a relação ambígua entre as irmãs. Me interessei pelas suas marcações de rigidez da protagonista, em contraponto à sua irmã, Nina, mais aguda, sedutora, aflorada. O que me fez pensar no título, cara paz, que não tem tradução no português, mas faz a aliteração com carapuça. E você falando dessa investigação do feminino, o que você queria trazer para essa narrativa, que é em primeira pessoa, então a gente tem uma personagem que está ali narrando essa memória familiar, mas do ponto de vista dela?

Para mim, era muito importante tentar escrever sobre o amor da mãe, como um amor incondicionado, que não tem julgamento, não tem cabeça, não é só mental, mas é um amor espontâneo, que não tem muito pensamento, que é uma coisa quase física. Você ama a mãe. A mãe como figura, porque tem uma coisa do corpo que fala antes das palavras.

Então, apesar dessa glória, essa mãe [do livro] foi terrível, porque quebrou tudo, de qualquer jeito foi muito individualista. Se não egoísta, individualista com a infância das filhas. E mesmo que Madalena ame ela de um jeito mais carinhoso, mais direito, e Nina, como você falou muito bem, seja mais fria, mais lunática, volúvel, as duas amam muito essa figura feminina. E amando ela, buscam um caminho de salvação. 

Porque se as duas não amavam tanto a mãe, a vida das duas seria terrível, de diferentes maneiras. Destrutiva, ou droga, ou álcool, não sei. Mas como era a situação, as duas poderiam crescer muito mal. O que salvou a situação foi o seu amor. Eu acho que amar os pais em geral, o pai também, é uma grande salvação. Mesmo quando ficamos adultos, compreender a vida dos pais, pensar neles, acalma muito, né? Se você consegue acalmar, compreender… É também uma história de compreensão, não de perdão.

Isso tem relação também com a Madalena, a personagem principal, ela tem uma filha, ela também virou mãe. Então, você tem uma virada na compreensão materna, que acontece com ela enquanto filha, mas também enquanto mãe.

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E essa relação, achei legal você pontuar no livro, porque a gente sempre idealiza a figura materna e, quando a gente cresce, entende que essa figura, na verdade, é humana…

Eu fico pensando que também essa parte do hemisfério feminino, do hemisfério direito da cabeça, dos sentimentos, seja por uma pessoa que escolhe ser escritor, seja necessário, porque quando ficamos escrevendo, ficamos escrevendo com a parte feminina, não é a cabeça, não é intelectual, tem que ter um domínio que seja muito direto, muito espontâneo, muito natural. Porque a escritura que é só cabeça, então eu acho que na verdade todos os escritores, o homem também, de qualquer maneira tem um momento de confrontação, não tanto com a mãe biológica, mas com a mãe como arquétipo, com a maternidade como, é, também é verdade que escrever um livro é ser mãe do livro.

Livro
(Editora Nós/Divulgação)

Temos traduzido por aqui muitos livros escritos por mulheres que abordam a questão da memória, quem tem o direito à memória, a escrita de memória. Marguerite Duras e Hannah Arendt, como alguns exemplos. Considerando que Cara Paz é um livro escrito em primeira pessoa pela personagem, que revisita seu passado, como você entende esse contexto, pensando também a construção social baseada na memória masculina que vivemos?

Quem fez um grande trabalho nesse sentido também é a Annie Ernaux, imagino que ela foi traduzida. Muito antes do Nobel, ela foi um enorme sucesso aqui na Itália. Penso que porque ela pesquisou de maneira muito feminina o trabalho dela com a memória, mesmo que ela escreve sobre o pai também, nem tanto sobre a mãe. Mas é uma memória de impulso, um impulso de memória, não é estratégia intelectual. 

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Eu vejo que quando estou leitora, quando sinto os livros muito pesados, propositalmente [pensados assim], não me interessa. Tem que ter um lado um pouco espontâneo, feminino também no sentido de tecer tramas, de seguir o mistério. Existe um lado misterioso na escrita também. Eu vejo a natureza feminina mais misteriosa que a masculina em geral.

Na Itália, temos tido uma onda de escritoras mulheres, das biografias e autobiografias de mulheres. Eu também escrevi uma biografia, a de Jeanne Moreau, atriz francesa. Tem muito isso. Também demais até, na minha opinião. Aquela coisa da moda… Ser [tudo] sempre feminino agora. Mas Cara Paz é mais, eu acho, uma história onde o pai também tem um lado importante, não somente a mãe. O pai, mesmo que fraco, instável, ausente, espero que seja perceptível. Na minha intenção, ele é um homem que gostaria de amar. Ele tenta amar, mas não consegue, mas ele gostaria. 

Até queria comentar dele, porque acho um ótimo personagem. Essa pontuação do masculino na história vem com muita profundidade. Eu até grifei uma frase que a Nina falou: “somos órfãos, mas nossos pais estão vivos”. É um abandono também pelo lado do pai. 

Na história, ele escolhe deixar as crianças com uma outra pessoa e vai trabalhar. Num primeiro momento, as filhas julgam primeiro a mãe, só depois que vão fazer uma construção desse julgamento paterno. Que é o que acontece muitas vezes na sociedade. Acho que a mulher é sempre a primeira a ser julgada. A mãe. E aí que se desconstrói uma imagem paterna.

Isso foi proposital no seu livro? O que você queria que essa figura paterna trouxesse para a história? 

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Além dessas questões, ele também não entendeu a necessidade de raiz e ternura que a Glória, a mãe, tinha. Porque ela era estrangeira e precisava muito ser acolhida. O romance fala da mãe como terra, a mãe como raiz. Porque a mãe não é só a água, o feminino, ela é isso também. O livro não é autobiográfico, mas tem um lado autobiográfico no sentido que eu sou judia, tenho uma família do lado feminino de diáspora, de muita viagem, muitas mudanças de país, de terra. Eu sempre senti esse lado difícil, instável, como uma raiz que falta.

Por essas irmãs terem a falsa sensação de enraizamento, o amor delas é um pouco exagerado. Esse perdão pela mãe vem da necessidade delas de pertencer à terra. Por isso as duas viajam, uma para Paris, a outra para Nova York, mas a necessidade de serem radicadas permanece. Acho que elas tentam se entrelaçar numa lateral, pensando na estrutura de árvore genealógica. Essa expressão de ser órfã sem ser órfã é isso, né? Você sabe que tem um lado que falta, e o lado feminino, que é difícil para as duas por terem que reconstruir a imagem da mãe.

As memórias da infância também não são as mais precisas. E, ao longo do livro, enquanto leitora, percebi um quebra-cabeça. As histórias iam se formando e, às vezes, uma memória da mesma situação se mostra diferente para Nina e para Madalena. Uma diferença no registro da cena.

Absolutamente. Tem outra maneira de se lembrar, como se fosse função, ter a custódia da memória. E isso, para mim, está ligado à relação entre irmãos ou irmãs. Um jogo de funções. Um tem que ser contraste com o outro, e as duas, Madalena e Nina, trabalham muito nesse sentido. Tem como um jogo interno: sempre uma é protetora, a outra é protegida. Quando são pequenas, é diferente porque a Madalena tem asma, aí existe a inversão de funções. Cada uma acredita ser a mais sábia, mais linda, mas, no final, tem surpresa.

E já que você fala português, queria te perguntar sobre a tradução, feita por Francesca Cricelli. Eu não falo italiano, mas gostei muito do texto, e da força da língua. Claro, da analogia de cara paz com carapaça. Como é a sua relação com seu texto em outro país?

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Eu gosto muito [desse título], não tem o sentido do jogo de palavras italiano, mas é difícil, na Alemanha também foi. Carapaça é um termo muito próximo do título, eu sinto esse sentido na história, e a capa dá uma sensação de paz, não é? Você também concorda? 

Sim, bastante. Além do projeto de capa, que ficou bem condizente com a história.

Tem a questão do mar, achei a fotografia muito bonita, porque existe a cena delas duas e o mar, mas a expressão também, cara paz… Uma imagem que traz paz mesmo, o sentimento de estar perto do mar.

Livro
(Barbara Ledda/Divulgação)
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