“Quanto tempo o tempo tem?” Essa é uma das provocações que Lenora de Barros coloca no nosso colo (olhos, mãos, pele) na mostra individual Não Vejo a Hora, em cartaz na nova sede da Gomide & Co, em São Paulo, com obras inéditas e algumas revisitações anteriores. “Queria fazer um desdobramento desse tempo agora, considerando também a nossa experiência com a pandemia. A própria retomada do trabalho com os retrovisores [na obra Vida Morte], algo que sempre me intrigou, fala disso: um espelho que, para mim, concentra as três dimensões do tempo, uma vez que você está no presente, andando para o futuro e olhando para o passado”, conta.
Mas o tique-taque do relógio, seja ele biológico ou mental, não é novidade para ela, uma das mais emblemáticas no derretimento das linhas que separam quem é quem na produção cultural. A artista visual intersecciona, desde os rascunhos de sua frutífera carreira, poesia, performance, fotografia, vídeo e arte para dar ao espectador diversas oportunidades de sentido — esse, que pode ser entendido no corpo ou com a cabeça (ou ambos) — para a experiência do correr dos ponteiros. “Os próprios Ping-Poems, série que desenvolvo desde 1990, têm um convite para jogos imaginários de ultrapassar o tempo.”
Pouco antes, nas paredes da Pinacoteca, era com a língua que o visitante poderia entrar em contato com a obra de Lenora. O recorte da exposição-retrospectiva, que ficou em cartaz no museu até começo de abril, incitava o entendimento da linguagem (falada, engolida, degustada, lambida) a partir da reunião de obras icônicas como Poema (1979), Procuro-me (2001), Coisa em Si (1990), Fogo no Olho (1994) e “…Umas”, coluna que assinava no Jornal da Tarde, entre 1993 e 1996.
“O processo com a curadora Pollyana Quintella, uma troca muito especial, de algum modo, me fez perceber que meus trabalhos nunca terminam, estão sempre abertos, numa possibilidade de seguir em frente. Minha poética segue esse movimento.” Em 2022, ela também esteve exposta no MAM, em conversa com a obra Aranha (1996), de Louise Bourgeois, e ainda participou da Bienal de Veneza. Se depender dela, seguirá sustentando arte, tão sensível na tentativa de nos fazer refletir sobre a nossa própria existência.
Qual foi o principal ponto de partida para a exposição Não Vejo a Hora?
O tempo, tema que eu elegi para fazer essa exposição, me acompanha desde 2008, quando fiz a exposição Temporânea, na época em que trabalhava com a Galeria Millan. Algumas obras se repetem, tais como Ora Era e o Som, que eu converso com a minha mãe. A intenção da mostra existia desde o espaço na casa do Claudio de Carvalho — inclusive, estava sendo um grande desafio por conta da arquitetura muito presente, porque queria encontrar caminhos de conversa com o em torno. Queria fazer um desdobramento desse tempo agora, considerando também a nossa experiência com a pandemia. A própria retomada do trabalho com os retrovisores [na obra Vida Morte], algo que sempre me intrigou, fala disso: um espelho que, para mim, concentra as três dimensões do tempo, uma vez que você está no presente, andando para o futuro e olhando para o passado. Os próprios Ping-Poems, série que desenvolvo desde 1990, têm um convite para jogos imaginários de ultrapassar o tempo. Enfim, acredito que o trabalho só existe a partir do momento que se relaciona com o outro, saindo do “eu”.
Como está o novo momento com a Gomide&Co?
Coincidentemente, no dia 08 de março, Dia Internacional da Mulher e também dia da abertura da exposição, comemorei também os dois anos [de representação da Gomide]. Eu recebi o convite durante a pandemia. Foi uma decisão muito difícil de tomar, já estava há 20 anos com a Milan, que foi um processo super importante para mim. Demorei para responder, levei para a análise e elaborei. Naquele momento, estava precisando de um desafio para sair da zona de conforto — e deu tudo certo.
Você sempre usou seu corpo como plataforma, principalmente nas performances. Juntando com a questão do tempo, o que você sente que mudou ao longo de todos esses anos?
A exposição na Pinacoteca, que pegava esse recorte do corpo, tinha um paredão com várias obras fotográficas em que era possível ver as mãos, a língua e as fisionomias que eu costumo trabalhar. É quase um Procuro-me, de certo modo. As expressões se repetem, mas em anos diferentes, os cabelos mudando… Na outra sala, tinha o vídeo A cara. A língua. O ventre [2022], e foi curioso porque, apesar de já ter usado bastante o rosto e a boca como metáfora da linguagem, foi a primeira vez que trabalhei com a região do ventre — Décio Pignatari uma vez me disse que a mulher tem o relógio da história na barriga, nunca esqueci disso. Eu trabalho com o meu corpo desde os anos 1970, o tempo passou e isso de algum modo também tem que ser incorporado no meu trabalho. A minha decisão foi e é de trabalhar com esse corpo [aponta para ele] quantas vezes mais eu quiser, a partir dos sentidos que conseguir gerar com ele.
Bonito isso do “gerar”. Nas últimas exposições, também fica claro o uso das palavras, dos significantes e seus significados, de como isso marca a sua trajetória. Você quis ser poeta ou sempre enxergou a sua escrita como uma forma de transcendência da poesia tradicional?
Eu não tinha muita consciência disso na época [em que comecei], nos primeiros passos. Mas, desde criança e principalmente com 16, 17 anos, passei a conviver com uma turma de poetas, poetas visuais e artistas. Fiquei próxima de Augusto de Campos, Walter Silveira, Décio Pignatari, entre outros. Frequentando esses espaços e tendo contato com os ideais da poesia concreta, me deparei com o termo “verbivocovisual”, palavra de James Joyce para falar da linguagem: som, significado e visualidade que ela provoca.
Eu gostava de escrever, mas ser poeta naquele momento, para mim, significava levar para frente as conquistas de linguagem da poesia concreta. Não adiantava escrever um poema ortodoxo, não era essa a questão para a minha geração, também influenciada por pop-arte, performance e o grupo Fluxus [movimento artístico dos anos 1960 e 1970]. Olhando para trás, acho que, intuitivamente e com a convivência, eu fui indo para o espaço, saindo da página do livro e da revista, e indo literalmente para o espaço, explorando ideias visuais e vocais.
Misturando um pouco de tudo…
Também veio de uma tradição, toda a ruptura que você tem das fronteiras entre pintura, música e escultura. Com as vanguardas, você tinha a dissolução dessas fronteiras, algo que chamamos hoje de artista visual, poeta visual, artista multimídia e por aí vai. Eu pensava que eu ia ser poeta, sempre fui apaixonada pela ideia da linguagem, por exemplo, de dar os significados que uma palavra tem, e como trabalhar com isso, gerar mais significado a partir disso. E a palavra segue presente, faz parte dessa dimensão. Mas, ao mesmo tempo, não me sinto exatamente poeta.
Por isso foi estudar linguística na USP?
Naquele momento, a linguística estava em voga, no auge do estruturalismo. Meu interesse, de primeira, era justamente conseguir penetrar no mundo da palavra e entender a linguagem como um sistema, ligado a outras linguagens e como [isso] funciona. Foi um universo fascinante. Porém, não era só sobre os saberes ligados à semântica, estudei literatura, teoria literária, poesia e arte.
Você também teve uma carreira no jornalismo. Como foi esse momento de Lenora artista para Lenora na redação?
Foram épocas bacanas, aprendi muito, mesmo não tendo formação em design. Comecei como editora de arte na Folha de S. Paulo, num momento de mudança do projeto gráfico, também trabalhei como editora de fotografia; e tive passagens em redações da editora Abril. Era fascinante, porque tinha uma coisa meio ligada até à própria poesia concreta: os títulos, as tipografias. Mas me absorvia demais, porque me entreguei de cabeça, a dedicação é intensa, diária, até hoje — você sabe. De certo modo, isso me fez ter uma produção mais homeopática, paralela.
E a sua coluna no Jornal da Tarde também foi um lugar de experimentação dessas duas coisas. O que ter suas obras impressas semanalmente num jornal com tamanho acesso representou?
É curioso, porque, na minha época de Folha, sabia que os leitores mandavam cartas aos jornalistas e colunistas, mas nunca recebi uma carta de ninguém. “Será que alguém sabe quem eu sou?” “Será que alguém lê as minhas coisas?” Anos depois, encontrei alguns amigos e um deles me disse que colecionava as minhas colunas. A experiência da “…Umas” foi uma das coisas mais importantes que me aconteceram. Ganhei disciplina, conhecimento de diagramação, criei um ritmo e fui amadurecendo com as ideias e formatos. E isso tudo depois virou uma exposição.
Já que estamos falando de passado, como a sua criação te influenciou? O que você carrega dos seus pais, Geraldo e Electra Delduque de Barros?
Eles foram figuras importantes para mim, não só no afeto, mas na minha formação. Mamãe tinha uma alegria de viver que, até hoje, quando bate certo desânimo, lembro de dona Electra. Ela me estimulava muitas coisas, leitura, principalmente. Às vezes, os poetas iam em casa à noite e eu saia da cama para ficar ouvindo eles conversarem. “Mamãe, quero ouvir os ‘boedas’”, dizia.
Eu lembro de uma lanterna que usava para ler escondido à noite, embaixo das cobertas, que tinham luzes coloridas em amarelo, azul e vermelho. Ficava trocando de cor à medida que o clima da história mudava. Vai ver virei poeta visual por causa da lanterna (risos). E papai também queria que a gente tivesse tempo para desenhar, criar, mas nunca falava que eu e Fabiana [irmã de Lenora] deveríamos seguir carreira de artista. A decisão sempre foi nossa.
Tem alguma obra dedicada a eles?
O Em Forma de Família é uma homenagem a eles. No autorretrato do meu pai, eu coloco os meus olhos, no de minha mãe, minha boca. O texto que acompanha é formado por palavras bi-sílabas, como se fosse “pai” e “mãe”, dentro do universo familiar. Então, família é fato, feto, foda, foto, festa… E termina em “forma”. Família é forma.
Além deles, o seu marido é outra pessoa também significativa na sua vida. Como a relação de vocês te ajudou na sua trajetória?
Eu conheci o Marcos na redação da Folha de S. Paulo, época que era editor da Ilustrada [caderno de cultura do jornal]. Ele é um grande interlocutor, sempre foi uma pessoa importante para mim, desde o início. “Vai, Lenora, se atira”, sabe?, de me ajudar a me destravar. Ele foi maravilhoso em toda a minha carreira, inclusive quando decidi sair da editora Abril, no final dos anos 1990. “Vai dar tudo certo”, dizia. Tive esse impulso e meu trabalho de fato aconteceu. Ele é um companheirão.
Quais artistas, escritores, filmes, livros você gosta?
Eu mantenho o hábito de leitura que minha mãe incentivou, mas menos do que gostaria. Digo que sou uma artista de formação no século 20, então tem alguns nomes que me acompanham, que acabo revisitando. Exemplo: Roland Barthes, Marcel Duchamp, John Cage. Sou até hoje “beatlemaníaca”, brincava que era a única que adorava a Yoko, artista, performer [ela fez parte do grupo Fluxus, citado mais acima]. Depois, tive a oportunidade de conhecê-la.
Gosto muito de música, tento acompanhar inclusive o pop. E filmes, vejo bastante coisa. Esses dias, estava assistindo um parecido com The White Lotus, Triângulo da Tristeza, que segue bem a linguagem da série. Curioso esse formato, né? Também vi na Netflix o Nunca Deixe de Lembrar, filme inspirado na vida do artista alemão Gerhard Richter. É triste para caramba, mas lindo.
Voltando na metáfora do retrovisor: falamos de presente e passado, mas e o futuro?
Estou com algumas exposições marcadas, muitas coletivas. Essa semana estarei envolvida na SP-Arte [que aconteceu no Pavilhão da Bienal do Ibirapuera, entre 29/3 e 2/4], vou participar de uma na Suíça; em junho, tenho outra em Nova York… Agora, o que me empolga mais é ter conseguido alugar um novo espaço aqui em São Paulo, perto de casa, para fazer meu novo ateliê.
Está todo branco, tipo John Lennon e Yoko Ono na sala do piano. Não tem nada ainda, mas estou entusiasmada para seguir com isso. Tenho algumas ideias e projetos que não foram possíveis de realizar até hoje, na vida. Não vejo a hora de assentar um pouco, voltar para o ambiente estúdio/ateliê. É a coisa que mais sonho no momento.