Flip: Itamar Vieira Junior e Pilar Quintana revelam realidades esquecidas
Confirmados na festa literária, autores de "Torto Arado" e "A Cachorra", respectivamente, abordam territórios em que o tempo passa em outro ritmo
A primeira vez que as irmãs Belonísea e Bibiana interagiram com pessoas brancas foi no dia em que, aos 6 e 7 anos respectivamente, a vida delas foi partida ao meio. Um incidente no interior da casa de pau a pique da família, fixada na fazenda Água Negra, as levou a buscar atendimento médico na cidade.
A partir dali, estariam unidas e uma irmã falaria pela outra – em troca, as duas aprenderiam a conversar por meio de gestos corporais. O acontecimento intrigante e o elo decorrente dele são os eixos de Torto Arado* (Todavia), romance do baiano Itamar Vieira Junior. “Alimento essa história há muito tempo. Comecei aos 16 anos e, em 2017, resolvi retornar a ela.
“Eu imaginava que as pessoas precisavam ter contato com esse mundo rural, que subsiste no Brasil. É uma área marcada por um passado escravagista que ainda ressoa muito fortemente e repercute na vida dos trabalhadores; eles levam um regime de servidão”, conta Itamar.
Publicado em 2018 em Portugal, após vencer o Prêmio Leya, um dos mais importantes na aclamação de originais em língua portuguesa, o romance chegou ao Brasil no ano passado.
De forma consistente ao longo dos últimos meses, caiu no gosto dos leitores brasileiros, ultrapassou a marca de 10 mil exemplares vendidos e é finalista do Prêmio Jabuti, rendendo a segunda indicação a Itamar – a anterior foi pelo livro de contos A Oração do Carrasco, de 2017.
Os vencedores deste ano serão conhecidos em 26 de novembro. Ele também é finalista na categoria romance do prêmio de literatura em lingua portuguesa Oceanos. Para completar, o autor estará na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em edição online, que acontece entre 3 e 6 de dezembro.
No entanto, mais do que as conquistas significativas, o que salta aos olhos em relação a Torto Arado é o encantamento provocado por uma trama aparentemente simples, sobre um Brasil rural com hábitos, aspirações e regras sociais em grande medida desconhecidas pelos leitores urbanos que o acolheram.
“Encontrei pessoas que se conectaram com a história por terem um vínculo familiar profundo com a terra, pelas memórias de seus pais e avós. Há poucas décadas, essa conexão não era estranha”, diz Itamar. O tom local é dado pela pontuação do cenário e das rotinas – a lida com a roça; a construção das casas que se desfaziam com o tempo; as noites de jarê, candomblé típico da região da Chapada Diamantina, na Bahia.
No entanto, é na musicalidade da escrita, transmitindo a oralidade ouvida no interior baiano, que reside a aproximação mais forte com essa população. Para isso, não foi necessário mimetizar as falas nem simplificar a escrita com vocabulário reducionista.
“Queria contar essa narrativa por uma perspectiva que não era minha, o que demandou muita observação. A oralidade das histórias transmitidas através das gerações é literatura em estado bruto. A vida dessas pessoas é contá-las, não muito diferente do trabalho do escritor. A mão do autor transforma essa cadência em um produto literário, que tem um alcance tão amplo”, diz o escritor sobre a construção dessa linguagem.
A familiaridade de Itamar com esses ritmos e modos de vida se desenvolveu com base em seu trabalho em comunidades do interior baiano com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde ainda atua, e, em seguida, como pesquisador de estudos étnicos da Universidade Federal da Bahia. Embora a realidade tenha servido como insumo, não se trata de uma história documental.
Ao mesmo tempo, apesar de toques fantásticos, funciona como um retrato de comunidades quilombolas da região, revelando o trabalho para fazendeiros em troca de morada, a impossibilidade de construir casas resistentes, o confisco da colheita pelos donos da propriedade.
A palavra quilombola, entretanto, aparece poucas vezes, apenas na segunda metade do romance, porque essa identificação é conquistada paulatinamente – para boa parte dos leitores essa compreensão também acontece na mesma medida dos personagens.
“Após a abolição, escravizados foram ditos livres, mas tiveram que permanecer nas fazendas. Com o declínio econômico, saíam errantes, viviam de forma itinerante, procurando lugar para trabalhar. E há comunidades descendentes desses grupos. Embora a visão sobre identidade tenha ficado marcada por uma ideia de Quilombo de Palmares pré-abolição, a realidade é outra”, explica Itamar.
Ao longo das décadas, a vida no campo não mudou no mesmo ritmo da urbana. Contribui para a percepção de isolamento e de abandono na fazenda Água Negra a ausência de passagem do tempo ancorada aos marcos externos. Com algumas pistas, sabemos que não se trata de um período remoto, mas de algo, de certo modo, mais próximo – há referência às secas da década de 1930 como tendo ocorrido no passado, se vê a chegada da TV nas casas, uma moto como meio de transporte.
“É como se a história começasse por volta dos anos 1960 e terminasse nos anos 2000. Nesse tempo, aconteceu tanta coisa no Brasil, que passou por uma ditadura, se redemocratizou, chegou a eleger um líder popular. Mas eles estão alheios a tudo isso, porque nada muda de fato a realidade deles.” Ao não marcar os anos em um calendário, podemos pensar que essas histórias ainda se desenrolam, com diferenças e semelhanças, em alguns lugares do país.
Fertilidade
A costa da Colômbia é metade voltada para o Oceano Pacífico e metade para o Caribe, onde estão os destinos mais conhecidos do país. Em uma pequena cidade de veraneio, encravada no lado menos badalado, se passa o romance A Cachorra* (Intrínseca), da autora Pilar Quintana, publicado no Brasil este mês.
“É uma área do país remota e misteriosa até para os colombianos. Quando você diz a um deles para imaginar o mar, ele imagina o Caribe. Muitos só conhecem o Pacífico pelo que ouvem nas notícias”, diz a autora, uma das primeiras convidadas a ter presença confirmada na Flip, que deu detalhes sobre a escrita do romance por e-mail.
Esse lugar inacessível que ela menciona é apresentado com descrições econômicas, mas claras a ponto de nos fazer sentir a umidade que marca a região. O romance poderia ser muito regional, a não ser por uma questão que o perpassa e evoca tantos dilemas: a ausência de filhos da personagem central, Damaris, e a fertilidade da cadela adotada por ela.
Após décadas lidando com o insucesso ao tentar engravidar, a mulher adota o animal, mimando-o até se frustrar ao notar que ele poderia gerar filhotes e não dar a mínima para o ofício materno. “Damaris se sente traída por seu corpo. Ela parece dizer a si mesma: ‘Por que a vida dá filhos a ela, que não os quer, e não a mim, que tanto os desejei?’”, observa Pilar. Ela própria escreveu o romance após se tornar mãe pela primeira vez, aos 40 anos – as páginas foram digitadas pelo celular enquanto cuidava do bebê.
Esse equilibrismo explica, em parte, a escolha dela por um romance econômico na extensão das frases e na construção das descrições. “Escrever com um filho no colo moldou minha escrita. Não conseguia fazer longos discursos, tinha que ser o mais direta possível. Por outro lado, me mostrou que, quando uma história quer sair, não há nada que a impeça. Mesmo com tudo contra, acha um caminho.” Durante a revisão, com o filho já maior, Pilar não sentiu vontade de alterar o texto.
Embora a construção tenha relação com o momento da maternidade, sua concepção vem de antes. “A ideia original surgiu quando fui morar na selva do Pacífico colombiano, em 2003. Mas levei 12 anos para querer ser mãe e engravidar, quando essa trama tomou corpo e começou a se tornar a versão que conhecemos hoje”, diz Pilar.
O título agora avança para além das fronteiras da América Latina, tendo sido anunciado na lista estendida do americano National Book Award na categoria para livros traduzidos, e já teve os direitos adquiridos em dez países.
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