Conheça a mulher negra e pobre que mudou a história da medicina
Henrietta Lacks já teve a sua biografia contada em livro - e a história virou um filme para a TV.
Henrietta Lacks perdeu a mãe aos quatro anos de idade, foi abandonada pelo pai, casou-se e teve cinco filhos. Descendente de escravizados, ela foi uma mulher negra e pobre, nascida na década de 1920. Morreu com apenas 31 anos, entre gritos de dor, causados pelo câncer. Apesar de ter sido uma afro-americana comum, Henrietta mudou a história da medicina e da biotecnologia.
Sem ela, talvez não houvesse vacina contra a poliomielite ou HPV, nem muitas das pesquisas sobre câncer, clonagem, diabetes, hemofilia ou mal de Parkinson, entre várias outras. Pelo menos não como conhecemos. Ela foi uma pessoa comum, mas suas células tinham características singulares – o que fez com que essa mulher se tornasse imortal, mesmo que involuntariamente.
O começo de tudo
Descendente de escravizados e filha de Eliza e Johnny, agricultores de tabaco, ela nasceu Loretta Pleasant, mas mudou o nome para Henrietta. Perdeu a mãe quando tinha apenas quatro anos de idade e foi abandonada pelo pai, assim como seus nove irmãos. Na época, as crianças foram distribuídas entre parentes, e a garota foi morar com o avô materno, Tommy Lacks.
Conhecida por sua alegria, Henrietta passou a pobre infância nas plantações de fumo e se casou com o amor de adolescência, David, com quem realizou o maior sonho que tinha: ser mãe. Juntos, eles tiveram cinco filhos.
A doença
Em janeiro de 1951, quando tinha 30 anos, Henrietta começou a sentir um caroço no colo do útero. Decidida a esconder a situação da família, em fevereiro do mesmo ano, ela procurou ajuda médica no Hospital Johns Hopkins, localizado em Baltimore, Maryland. Era a época das leis segregacionistas de Jim Crow e até os hospitais que tratavam pacientes negros, como esse, separavam-os em enfermarias para “gente de cor”.
Lá, ela descobriu que tinha câncer cervical, mas os especialistas acreditavam que a doença – que a mataria em poucos meses – estava estabilizada. Os médicos apostavam que um tratamento com radioterapia seria eficaz para a cura, mas os tumores estavam se espalhando rapidamente pelo corpo, tomando o útero, os rins, a uretra, os gânglios linfáticos, os ossos dos quadris, os lábios, o intestino.
Nesse hospital, George Otto Gey, um médico fisiologista, buscava criar a primeira linhagem celular imortal da história, o que cientistas estavam tentando fazer há décadas. Sem pedir autorização, ele coletava amostras genéticas de pacientes e as cultivava no laboratório. Assim foi feito com as células cancerígenas de Henrietta, que foram denominadas HeLa (lê-se “rilá”). Para a surpresa de todos, essas amostras finalmente tinham características peculiares – mas, até então, não se imaginava o que elas fariam pela medicina.
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As células de Henrietta foram capazes de se multiplicar, mesmo fora do corpo humano, em um curto e surpreendente intervalo de tempo. A cada 24 horas, elas reproduziam uma geração inteira e nunca pararam. Isso por conta de uma mutação, que produz a enzima telomerase, e controla a renovação dos cromossomos cada vez que a célula se divide. Cientistas estimam que, se elas pudessem ser empilhadas sobre uma balança, pesariam mais de 50 milhões de toneladas métricas. Ou ainda, se todas as HeLa já cultivadas pudessem ser enfileiradas, elas dariam, pelo menos, três voltas ao redor da Terra.
As HeLa passaram a existir em laboratórios de todo o mundo, gerando muito dinheiro para a indústria de medicamentos e pesquisa genética. Apesar de Henrietta não ter autorizado a doação das células e a sua família nunca ter recebido qualquer tipo de compensação moral ou financeira pela extração indevida de seu material genético, ele já serviu para mais de 75 mil estudos.
A saber, ele esteve presente nas primeiras missões espaciais, além de ter contribuído para alguns dos mais importantes avanços da medicina, incluindo vacina contra a poliomielite, pesquisas sobre doenças sexualmente transmissíveis (como HPV e AIDS), quimioterapia, leucemia, clonagem, mapeamento de genes, fertilização in vitro, remédios para tratamento de herpes, gripe, diabetes, hemofilia, mal de Parkinson, digestão da lactose, apendicite, longevidade humana, acasalamento dos mosquitos e os efeitos negativos de trabalhar em esgotos, por exemplo.
O mundo precisa conhecer essa história
Henrietta Lacks morreu no dia 4 de outubro de 1951, entre um grito de dor e outro. Os filhos só tomaram conhecimento de que as células da mãe estavam sendo usadas para estudos científicos décadas depois, quando pesquisadores apareceram, interessados no DNA de cada um. Na época, no entanto, eles também não entendiam o que estava sendo feito, já que acreditavam estar realizando exames para descobrir se tinham o mesmo tipo de câncer que Henrietta.
Então, os familiares de Henrietta procuraram a ajuda de advogados, a fim de descobrir se tinham direito a algum dinheiro proveniente do lucro que a indústria de biotecnologia teve com as células da matriarca. Além disso, buscavam reconhecimento, pois, apesar de a contribuição das HeLa ter sido involuntária, ela foi fundamental para diversas pesquisas.
Interessada em divulgar esse enredo, a jornalista científica Rebecca Skloot precisou de dez anos de pesquisa até que, em 2010, publicou o elogiado livro A Vida Imortal de Henrietta Lacks, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Ela contou com a ajuda de Deborah, filha de Henrietta, para que essa história fosse narrada com detalhes e máxima veracidade. No entanto, não foi tão fácil assim convencer a herdeira a relatar memórias tão dolorosas – demorou mais de um ano até que Deborah aceitasse transformar tudo isso em livro.
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Em 2010, com os recursos arrecadados com a venda do livro, Skloot criou uma fundação para homenagear a memória eterna de Henrietta e ajudar a família Lacks, a The Henrietta Lacks Foundation. Além disso, uma lápide foi construída onde ela estava, até então, anonimamente enterrada.
Somente em agosto de 2013, a família Lacks conquistou o controle parcial sobre o acesso de cientistas ao código de DNA das HeLa, embora os herdeiros de Henrietta ainda não estivessem satisfeitos com a decisão. À BBC, os familiares contaram que continuariam batalhando contra o Hospital Johns Hopkins, para que recebam o devido pelas vendas das células. A instituição, no entanto, nega que tenha lucrado com a venda ou distribuição das HeLa.
Agora, essa história foi em um telefilme da HBO, também intitulado A Vida Imortal de Henrietta Lacks, produzido e estrelado por Oprah Winfrey. Assim como no livro homônimo, ele contará a trajetória da afro-americana, que será interpretada por Renée Elise Goldsberry, a partir do olhar de sua filha, Deborah, que será vivida por Oprah. Rebecca Skloot será a personagem da atriz Rose Byrne.