Gaby Amarantos: “Não quero ser da geração de artistas que viram números”
A multiartista paraense fala do mais recente álbum, 'Purakê', e da importância de reivindicar a cultura, os saberes e a tecnologia da Amazônia
Uma mulher negra nortista, fruto do Jurunas, bairro periférico de Belém do Pará. É assim que a cantora Gaby Amarantos, de 44 anos, se define até hoje. Depois de ter alcançado um sucesso quase instantâneo com o lançamento de Treme, seu primeiro álbum, em 2012, ela emplacou diversos hits e colaborações até se entender no lugar de multiartista: acabou de se despedir, em agosto, da personagem Emília, seu primeiro papel na dramaturgia (na novela global Além da Ilusão) e se prepara para ser técnica pela segunda vez no reality show The Voice, enquanto começa a turnê de Purakê, álbum lançado em setembro de 2021.”Sempre tive dificuldade em me encaixar num nicho criativo e sempre quis poder afirmar que sou uma multiartista da Amazônia”, diz ela em entrevista a CLAUDIA.
A Amazônia, que, para Gaby, é “mais do que uma causa” sempre esteve presente no seu trabalho e pauta, inclusive, seus posicionamentos políticos. “Antes mesmo de entender o que era política, eu levantava essa bandeira, porque ela é minha vida, é meu território. Falar abertamente disso me abriu muito mais possibilidades do que fechou portas. Quero usar minha voz, minha música e minha arte como plataforma de conexão da sociedade com a floresta e com outros artistas de lá, com essa riqueza cultural pulsante”, afirma.
No dia 3 de setembro, Gaby se apresenta no Baile na Terra – Todos pela Amazônia, no Tendal da Lapa, em São Paulo, um festival para celebrar a
maior floresta tropical do planeta, com programação gratuita que começa às 11h e vai até o final da noite, com muito carimbó, tecnobrega e música indígena (incluindo o espetáculo inédito Ventanias, com Anelis Assumpção, Djuena Tikuna e As Suraras do Tapajós). Gaby sobe ao palco às 19h com o repertório de Purakê, nome que faz referência ao peixe elétrico pré-histórico da Amazônia, cuja voltagem chega a 860 volts, uma eletricidade que reverbera nas composições que contam com parcerias poderosa de Elza Soares, Alcione, Liniker, Ney Matogrosso, Jaloo, Luedji Luna e outros artistas.
Gaby promete um espetáculo efervescente, que transporta o público numa nave sonora, flutuando pelos rios numa jornada até o coração da floresta. Uma apoteose de cores e beats e uma reflexão sobre uma Amazônia futurista. “Esse show é uma experiência. A gente quer trazer para as pessoas um pouco da sensação de estar na floresta, mas a floresta a partir do nosso ponto de vista. Uma floresta que é tecnológica, cheia de alegria, cheia de luz, uma floresta muito eufórica que vai fazer as pessoas se divertirem e, a partir da diversão e da contemplação de toda essa beleza, se envolverem mais com toda natureza da Amazônia”, detalha a cantora.
Como foi o processo criativo de desenvolvimento do Purakê?
A gestação desse trabalho foi um processo dividido em várias dimensões com os meus parceiros de composição, que também são todos de Belém. A gente se encontrava na Ilha do Mosqueiro, um balneário da região, com praia de rio, e passávamos o final de semana escrevendo músicas. O repertório foi finalizado a bordo de um barco no Rio Tapajós, passando pelo Rio Arapiuns, por Santarém e Alter do Chão, junto com Jaloo e Lucas Estrelas. Assim nasceram várias músicas emblemáticas do álbum, como Vênus em Escorpião, parceria com Ney Matogrosso e Urias, Opará, com Luedji Luna, ou Amor para Recordar, com Liniker. O vídeo desta última conta a história de uma mãe ribeirinha que tem o sonho de ser artista e vê esse sonho se realizar no filho, que vai embora para ser músico. Fala muito da dificuldade que nós, mulheres amazônidas, enfrentamos para conseguir ser mãe, ser mulher, vencer na música… Conta um pouco da minha história, ou do que eu teria vivido se não tivesse a rede de apoio e amor da minha família me ajudando a criar meus filhos lá em Belém para eu poder estar aqui, sendo artista, exercendo minha criatividade com alegria.
A Amazônia está em pauta este ano, desde campanhas publicitárias de empresas até na bandeira levantada por festivais como o Rock in Rio e o Baile na Terra. Qual a importância de falar não só da floresta como território, mas também como espaço de convergência de saberes, vidas e culturas?
O Baile na Terra será esse lugar muito especial onde todos os artistas que vão subir ao palco têm a Amazônia como pauta. Não dá para falar de racismo sem o movimento negro, não dá para falar de feminismo sem mulheres como protagonistas, então tampouco dá para falar da Amazônia sem as vozes das pessoas de lá. A Amazônia não é uma causa, ela é nossa vida. Eu a vejo como uma grande mãe, que deveria ser lembrada e celebrada não só em um dia, mas durante todo um mês, pautando discussões sobre sua preservação e os direitos de seus povos. Estou há 10 anos trazendo esse debate no meu trabalho e fico feliz de ver esses frutos começando a brotar. É como plantar uma árvore na consciência das pessoas: ela não cresce rápido, precisa de tempo para maturar. Penso muito na sumaúma, uma gigante milenar uma árvore que eu amo muito e que, para mim, representa a floresta… Assim como ela, essa luta ainda vai durar muito tempo, ainda temos muito o que discutir e conquistar. E, enquanto vamos lutando, vamos nos divertindo, nos apaixonando pela beleza da arte, da cultura, da culinária e da tecnologia que constituem a Amazônia.
Qual o papel da cultura nesse debate e no avanço da conscientização sobre a preservação da floresta?
Em um momento do clipe de Vênus em Escorpião simulamos uma queimada para que as pessoas possam exercitar a empatia de entender o que os povos originários, ribeirinhos e quilombolas sentem quando veem a floresta em chamas, uma injustiça que é exacerbada por um governo que culpa esses mesmos povos pelos incêndios cometidos por latifundiários, grileiros, madeireiros e mineradores. A gente quer a floresta de pé e, junto com ela, todas as vidas e culturas que habitam nela. Acredito que iniciativas como o Baile na Terra são oportunidades de mostrar o quanto ainda há para se descobrir nesse território, sobre os povos de lá, desde um som que o público não conhecia até outras formas de existência regionais. Vamos comer um tambaqui, tomar um tacacá, uma cachaça de jambu, tremer um pouquinho no tecnobrega. Vamos nos engajar nessa luta, porque ela é potente, é divertida, é uma luta nossa e, sem ela, a gente não respira.
A estética de Purakê remete ao afrofuturismo, na medida em que apresenta uma Amazônia tecnológica, diversa, rica em vivências, experiências e culturas, uma imagem diferente daquela estereotipada de mata fechada, como se não existissem pessoas vivendo na floresta. Por que decidiu trazer esse imagético?
Costurar todas essas referências foi como pegar uma folha da palmeira do açaí, que é entrelaçada para formar um grande cipó. Foi a partir dessa imagem que amarrei toda a sonoridade e estética do disco, sempre com o propósito de quebrar esses estereótipos sobre a região. Porque a Amazônia é, sim, essa floresta fechada e rica em biodiversidade, mas também é suas periferias urbanas, com uma efervescência criativa onde as pessoas pegam seus celulares e criam apps para mobilizar a cultura e a política, levando esse território para o mundo inteiro. Apostei nessa Amazônia futurista para chamar a atenção do resto do país, principalmente num momento em que lá fora não se fala de Brasil sem falar da Amazônia. As pessoas precisam se questionar: como eu, que sou brasileira, não sei o que é o carimbó? Como nunca vi uma festa de aparelhagem, nem que seja na internet? Como sei tão pouco desses sotaques, desses ritmos, dessa brasilidade nortista?
A turnê do Purakê foi pensada para ser um portal de conexões e quebrar a ideia de que “a Amazônia é o pulmão do mundo”. Não. Elas são os rios que não enxergamos e que secam com as queimadas, escurecendo o céu de São Paulo. Lembrar da Amazônia é lembrar de respirar. E respirar não apenas oxigênio, mas a música, a gastronomia, a beleza e a tecnologia que nasce, principalmente, dos saberes dos povos originários, que há séculos tiram o melhor que a floresta tem a oferecer, sem jamais destruí-la.
A reivindicação das culturas amazônicas sempre esteve presente no seu trabalho, mas como foi seu amadurecimento musical desde o lançamento de Treme, em 2012, até aqui?
Meu primeiro álbum foi muito aclamado e, de certa forma, foi uma revolução na indústria musical brasileira, porque abriu caminho para o entendimento de que também se faz música pop no Brasil. Antes, acho que não nos apropriávamos tanto desse gênero. Eu quis curtir esse sucesso e amadurecer musicalmente, mas também quis aproveitar a vida, namorar, viajar, conhecer outras culturas e formar uma bagagem para lançar um segundo trabalho. Não quis ceder à pressão de ter que fazer outro disco imediatamente depois, com a expectativa de êxito ainda maior. Depois de experimentar muito, quis lançar o Purakê quando tivesse certeza de que essa era a sonoridade que eu queria. A Última Lágrima, que tem participação de Elza Soares, Dona Onete e Alcione, foi composta ainda em 2015. Eu venho trabalhando com minhas parcerias musicais há muito tempo para chegar até aqui. Eu não quero fazer parte da geração de artistas que viram números. Números de visualizações, números de seguidores… Eu quero continuar fazendo arte que impacta, que emociona, que instiga a gente a pensar. Acredito muito no que Nina Simone dizia, que a artista tem que refletir o seu tempo. É o que pretendo, refletir meu tempo, meu lugar, a minha região, o meu povo. Nos primeiros quatro shows dessa turnê, fiquei muito orgulhosa de ver o público cantando e se emocionando junto comigo. É isso que me faz feliz.