Assim como uma parcela da população brasileira, os autores gaúchos Julia Dantas e Rodrigo Rosp viviam uma inquietação desde as pré-campanhas eleitorais, em 2017. Com a pandemia e as medidas tomadas pelo atual governo, a preocupação com o rumo que o discurso político estava tomando cresceu ainda mais. Os dois pensavam em como poderiam impactar positivamente o atual cenário e ajudar a construir uma reflexão diferente da em voga. “Resolvemos, então, fazer o que sabemos: um livro. Mas não poderia ser algo escrito só pela gente, a ideia era fazer algo de maneira coletiva. Assim surgiu o Fake Fiction, lançado no dia 1 de setembro”, conta Julia em entrevista a CLAUDIA.
Rodrigo é um dos fundadores da Não Editora, selo editorial da Dublinense dedicado à literatura experimental brasileira, e publicadora de Fake Fiction – Contos sobre um Brasil. Ele e Julia entraram em contato com alguns autores e escritores conhecidos e pediram que escrevessem contos que expusessem como se sentiam em relação ao cenário político brasileiro. As histórias poderiam abordar o momento atual, um passado recente e também hipóteses de um futuro. Alguns desses autores convidaram outros para o projeto e Julia e Rodrigo acabaram recebendo cerca de 90 histórias.
Buscando abarcar o maior número de visões, pontos de vista, épocas e estilos de escrita, os organizadores selecionaram 36 contos que compõem o livro final. São eles: Adriana Lisboa, Alexandra Lopes da Cunha, Altair Martins, Arthur Telló, Carlos André Moreira, Carlos Eduardo Pereira, Clarice Müller, Claudia Nina, Danichi Hausen Mizoguchi, Dani Langer, Eliana Alves Cruz, Gabriela Richinitti, Guilherme Smee, Guto Leite, Henrique Schneider, Irka Barrios, Julia Dantas, Lima Trindade, Leandro Godinho, Leila de Souza Teixeira, Lu Thomé, Luisa Geisler, Marcela Dantés, Marcelo Spalding, María Elena Morán, Michelle C. Buss, Nelson Rego, Rafael Bassi, Renata Wolff, Rodrigo Alfonso Figueira, Rodrigo Rosp, Sara Albuquerque, Taiasmin Ohnmacht, Tiago Germano, Vitor Necchi e Yuri Al’Hanati.
As histórias são organizadas em uma linha do tempo que começa no ano de 2013, durante as manifestações no governo Dilma, passa pelo impeachment, pré e pós-eleições, o momento atual do governo Bolsonaro e termina no imaginário possível ou completamente ficcional de um Brasil futuro.
Objetivo
Para Julia, o papel da literatura é ainda mais importante no período em que estamos vivendo. Além da função de provocar reflexões, questionamentos e fazer o leitor enxergar além do próprio umbigo, atualmente, ler ajuda a imaginar um futuro e um modo de vida diferente, mais fácil e próspero. “O governo tenta nos diminuir e reduzir o espaço de atuação de todos que pensam diferente do presidente. A literatura, em geral, nos ajuda a enxergar além desses espaços reduzidos e aumenta a possibilidade de nos conectar com o outro e expandir horizontes”, diz Julia.
Vivemos em uma sociedade em que falar de política é um estigma. Um dos objetivos de Fake Fiction é conseguir mudar a ideia de que política não se discute. “Acho que o livro vai contribuir para um debate importante, que é entender que praticamente tudo que fazemos na vida é político. Você pode não gostar de ler a parte de política de um jornal, mas a política está sim na sua vida de alguma maneira. É estratégico para os políticos e os partidos tentar afastar a política do povo e representá-la como um lugar intocado, para que continuem detendo o poder. Falar de política é falar de cotidiano, desde coisas simples a coisas mais urgentes, como o auxílio emergencial ou a nova portaria do aborto”, explica Julia. “Praticamente nenhum dos 36 atores aborda política partidária, o que também é muito positivo e, com certeza, será bem visto pelos leitores. Isso pode aproximá-los do tema”, continua.
Financiamento
A publicação de Fake Fiction – Contos sobre um Brasil foi a primeira feita pela Não Editora através de um financiamento coletivo. O final da arrecadação acabou coincidindo com um momento crucial na política brasileira, em que o ministro da economia Paulo Guedes propôs uma reforma tributária que inclui taxação em 12% dos livros que, há 74 anos, eram produtos livres de impostos. Em suas palavras, a justificativa é de que os livros são artigos de “elite”. Apesar de, comprovadamente, o povo brasileiro não ler muito anualmente, a reforma não foi bem vista e, em resposta à proposta, as redes sociais ficaram repletas de posts com a #defendaolivro.
O sucesso no financiamento de Fake Fiction também é um bom sinal de que, possivelmente, a literatura esteja tomando um local de maior importância para os brasileiros. A editora conseguiu mais de R$ 23 mil para a publicação da obra. “O número de pessoas que se envolveram mostra que as pessoas se importam com a literatura. Foi muito importante e tocante ver que tem tanta gente querendo derrubar essas portas que estão sendo fechadas pelo governo. Institucionalmente o Brasil não melhorou, é muito triste ver que o governo tem essa visão de que quem não é elite não tem interesse por livros, mas a resposta a isso é proporcional, o que é gratificante”, afirma Julia.
A editora usou o espaço do financiamento de Fake Fiction para homenagear pessoas inspiradoras que conseguiram impactar o país de alguma forma. Havia diversos opções de contribuição – cada uma com um tipo de “brinde”, como o exemplar do livro, ecobags, adesivos e descontos em outras obras da editora – e cada uma delas foi batizada com nomes como Olga Benário, Marielle Franco, Carlos Marighella e Vladmir Herzog.
Justamente neste momento tão complicado, mais que resistir, é importante reagir e dar suporte à arte, cultura e liberdade de expressão. E a literatura tem um papel fundamental em ajudar a transformar a realidade. Fake Fiction pode ser comprado pelo site da editora e em versões e-book. No site também está disponível uma amostra do livro
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