Para muitas de nós, os estágios do medo, da aceitação e da frustração já estão no ‘passado’. Afinal, a quarentena já ultrapassou os 40 dias que dão nome ao tempo. Há dois meses, muita gente ainda estava em negação a respeito do coronavírus. Também pudera, como imaginar as proporções que a pandemia esta prestes a ter? Aliás, até o início de março a OMS ainda nem havia decretado que o mundo de fato passava por uma pandemia – isso só aconteceria em 11 de março. Mas foi no fatídico dia 4 de março que Hollywood começou a preocupar-se com os rumos da indústria do cinema frente à crise do coronavírus, uma vez que a Universal saiu na frente e anunciou o adiamento de “007 – Sem Tempo Para Morrer”. A premiere aconteceria em 31 de março e foi postergada para novembro. Isso mesmo. Final do segundo semestre.
Trata-se do último filme da franquia com Daniel Craig como James Bond e também o que mais causou burburinho nos últimos tempos, por conta da atriz Lashana Lynch, que vive uma agente 00 no longa – e é a possível substituta de Craig. Além disso, o nome de Billie Eilish alavancou a divulgação da trilha sonora e, como parte da ação de marketing, ela chegou a apresentar-se na cerimônia do Oscar.
Frente à magnitude do filme e à promessa de grande bilheteria, como a Universal poderia adiá-lo? Muita gente achou exagero. Vale lembrar que naquela época, Donald Trump ainda negava-se a admitir que a crise era real. Foi em 12 de março que o presidente americano declarou que não seria testado para coronavírus, mesmo após ter tido contato direto em uma reunião onde também estava Fábio Wajngarten, secretário de comunicação do governo brasileiro que foi diagnosticado com Covid-19 na época.
Na contramão do que foi decidido pelos produtores de 007, no dia 11 de março um cético Vin Diesel declarou que o lançamento de “Velozes & Furiosos 9”, marcado para 22 de maio, não seria adiado. A (interminável) franquia segue popular fora dos Estados Unidos e faz muito dinheiro na China, onde o surto de coronavírus já gerava caos àquela altura. Mesmo assim, Vin Diesel afirmou que viajaria à China para divulgar o longa. “Precisamos de filmes mais do que nunca nessa hora. A experiência cinematográfica já está tão ameaçada. Acredito que existe uma mágica nela, quero apoiá-la de todas as formas possíveis. Talvez o foco não deveria ser os resultados de bilheteria, mas saber que somos um mundo e temos que superar isso juntos”, declarou ao USA Today.
A partir de meados de março a crise escalonou com tal rapidez que a fala de Vin Diesel seria completamente absurda uma ou duas semanas depois. Por fim, o filme foi adiado pela Universal para abril de 2021. Isso mesmo, apenas no ano que vem veremos a produção.
Naquela mesma semana, quem ainda estava achando que a crise só afetaria alguns filmes pontuais passou a cair na real. Em 12 de março a Disney declarou que “Mulan” teria sua estreia adiada e, um dia depois, os parques da empresa fecharam as portas. Nem a maior gigante do entretenimento estava imune ao coronavírus. Essa é a primeira vez que a Disney fecha seus parques em escala global e estima-se que o prejuízo sairá por volta de 1,2 bilhão de dólares.
A partir daí, não apenas as estreias foram afetadas. Como filmar em meio à crise sem que haja risco à saúde das pessoas? Impossível. O drama não demorou a tornar-se global, como bem sabemos. Aqui no Brasil, em 15 de março, a TV Globo anunciou que as gravações de novelas estavam suspensas.
Ou seja, se antes os serviços de streaming e emissoras de TV estavam levando a melhor, tendo ótima audiência durante a quarentena, essas empresas rapidamente também foram atingidas. Séries como “The Witcher” e “Euphoria” estavam em fase de filmagens em meados de março e, assim como tantas outras, tiveram as atividades suspensas.
De maneira pontual, alguns filmes acabaram indo para a internet muito mais rápido do que o esperado. Em 16 de março a Universal anunciou que “Emma”, “O Homem Invisível” e “A Caçada” – filmes que estavam em cartaz nos cinemas naquela semana – seriam disponibilizados simultaneamente por VoD (video on demand). Ou seja, poderiam ser locados virtualmente.
Pouco depois, a Warner decidiu que “Aves de Rapina” chegaria no final de março a plataformas de VoD. Cathy Yan, a diretora do longa, chegou a elogiar a concorrente Universal por ser pioneira na iniciativa. “Eu continuo acreditando que a melhor experiência para assistir a um filme sempre será com em uma sala lotada, com o melhor som e tudo mais’, disse a cineasta ao New York Times. “Mas eu achei a atitude da Universal realmente muito inspiradora, de lançar os filmes mais rapidamente em VoD, eu achei ótimo”, completou.
De fato, em se tratando dos filmes que já estão prontos ou em fase de pós-produção, o lançamento via VoD ou nos serviços de streaming parece ser uma boa alternativa. Mesmo assim, os estúdios ainda prezam pelo lançamento no cinema e pela aposta nas bilheterias. O problema é que, quando a pandemia passar e os filmes finalmente puderem chegar às telonas, teremos uma enxurrada de estreias disputando a preferência do público. E mais: com pessoas perdendo seus empregos e inúmeras empresas entrando no vermelho, esse público irá gastar dinheiro no cinema?
Em 3 de abril, a Disney começou a sinalizar mudanças a respeito do que vai estrear de fato no cinema e declarou que o filme “Artemis Fowl: O Mundo Secreto” irá direto para o Disney+. Ele chegaria às telonas em 29 de maio. Também em 3 de abril chegou ao Disney+ a animação “Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica”, cuja estreia no cinema havia acontecido menos de um mês antes.
Quatro dias depois, o CEO da The Walt Disney Company, Bog Iger, disse a Barron’s que mais filmes podem seguir pelo mesmo caminho de “Artemis Fowl”, sem citar títulos. Paralelamente, a empresa lançou seu calendário atualizado de estreias no cinema. Filmes como “A Mulher na Janela”, “Espíritos Obscuros” e “Novos Mutantes” não constam nessa lista. A animação “Soul”, da Pixar, teve seu lançamento adiado em apenas uma semana – pulou de 17 de junho para o dia 25. Depois disso, a próxima estreia da Disney é “Mulan” e acontece apenas um mês mais tarde, em 23 de julho.
Para além das estreias e filmagens adiadas, o mundo do cinema também amarga uma outra consequência: problemas com os festivais e premiações. O Festival de Berlim conseguiu passar incólume no final de fevereiro, mas o de Cannes, que aconteceria entre 12 e 23 de maio, não. Em 19 de março a organização anunciou que tentaria adiar o evento para junho e julho, mas nada foi definido ainda. Criado em 1946, essa é primeira vez que o festival tem sua data prorrogada.
No dia 7 de abril, o diretor do Festival de Cannes, Thierry Fremaux, declarou que realizar o evento de maneira virtual é uma alternativa descartada pela organização. “Diretores de filmes trabalham a partir da ideia de que seus filmes serão mostrados na telona e que serão compartilhados com outras pessoas em eventos como festivais, não que o trabalho deles irá acabar em um iPhone”, declarou à Variety – desmerecendo, indiretamente, as plataformas de streaming e seus filmes. Para Fremaux, é inadmissível que grandes festivais de cinema, como os de Cannes e Veneza, adotem medidas que ele chama de “precárias e improvisadas”.
Vale lembrar que nos últimos anos os pomposos festivais de cinema da Europa vêm tentando se aproximar mais do público. É preciso manter-se relevante numa época em que boa parte das pessoas só paga ingresso para assistir a filmes de HQ. Em 2019, “Coringa” foi o grande vencedor de Veneza, dando o pontapé definitivo no hype em torno do longa. Em Cannes, o prêmio principal ficou com “Parasita” e esse acontecimento foi determinante para fortalecer a campanha do filme rumo ao Oscar. Em menor escala, Cannes também alavancou “Bacurau” – o longa levou para casa o prêmio Um Certo Olhar em 2019.
A reconfiguração global do calendário de estreias do cinema e das gravações de diversos filmes e a incerteza quanto aos rumos dos mais importantes festivais pode gerar consequências até mesmo no Oscar 2021. Por enquanto, nada foi falado em relação a isso, mas, frente ao tamanho da crise, isso é algo que pode acontecer.
Testemunhamos a mudança de uma era?
Há apostas de que o mercado de cinema não vai mais voltar a ser como era, mesmo passada a pandemia. A queda por venda de ingressos já era uma preocupação antes mesmo que o isolamento social e a distância de segurança entre as pessoas viessem ‘fechar’ as salas de cinema. Se ainda não chegamos à conclusão nem quando e como voltaremos ao ‘normal’ para atividades básicas, o entretenimento em salas fechadas ficou ainda mais sob ameaça.
Para os consumidores que não acompanham o lado de negócios, a questão do lado de negócios é muito delicada. Na ordem de mercado, simplificando bastante, há as ‘janelas’, que são os períodos em que os filmes ficam disponíveis para consumo em cada plataforma. Em geral, a 1ª janela é a do cinema, onde fica entre 3 a 6 meses, dependendo da resposta da bilheteria. A segunda etapa é a venda direta para o consumidor em casa, onde o filme fica outros 6 meses. Apenas depois desse período é que ele pode ir para os canais de cinema pagos, onde então permanecem exclusivos por 12 a 18 meses. Finalmente, quase dois anos depois, é que eles vão para streaming, canais de pacotes básicos e TV aberta. Se fizer a conta, um filme que estrearia em maio no cinema poderia estar no pay-per-view em novembro ou dezembro e poderia chegar à TV aberta em 2022. Se forem esperar para manter essa ordem, o atraso para todos será imenso. Sem mencionar o prejuízo de vendas. Confusa? Sim, tem muita coisa em jogo. É muito assustador para artistas, executivos e consumidores. Para a indústria do cinema, a crise representa milhões de dólares de prejuízo, no mínimo. Mas as contas serão diferentes em 2021.
Oscar forçado a quebrar sua última regra de resistência contra o streaming
Em dois meses de pausa forçada, e sem perspectiva de que as pessoas voltem a poder frequentar uma sala fechada em um prazo curto, os cinemas estavam em cheque-mate. E – em 2020 – perderam o jogo.
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas que anunciou na terça (28) uma mudança história, que mesmo sendo excepcional, pode mudar tudo. Até hoje, para ser elegível ao Oscar, o filme tinha que estrear em cinemas para poder ser considerado. Por isso que nos Emmys há a categoria de filmes feitos para Televisão, com atores e diretores recebendo reconhecimento por lá. Oscar era apenas e exclusivo do ‘cinema’. A toalha foi jogada na lona na terça (28), com a Academia concedendo – para esse ano apenas – aceitar filmes que tenham estreado em VoD ou streaming.
A rigidez dessa antiga exigência – para conservadores – era o que mantinha o cinema, melhor, o ‘cinemão’, vivo. O calendário de lançamentos era todo feito em torno das datas da Academia e por isso também que os estúdios estavam segurando os filmes prontos. Não queriam perder a oportunidade de premiação. Podemos então esperar uma nova onda de lançamentos e a força do streaming, porém essa alteração também deve mudar os preços para esses serviços, que terão que pagar pela 1ª janela – a do cinema – geralmente a mais cara de todas. É que era a bilheteria dos cinemas que mediam a amortização do custo de produção, ou seja, os filmes serão bem mais caros do que já são. As consequências, e dúvidas de negócios a partir dessas mudanças seriam muitas. Para o consumidor, terá a vantagem de estar em casa e ver super filmes. Porém há o risco do valor da assinatura subir, afinal os custos serão outros para os serviços também.
As negociações que já estavam mudando com a briga com o streaming ganharam novos desafios. Hoje, os gigantes Netflix e Amazon, ainda não são considerados estúdios de cinema como Warner, Disney, Sony ou Universal. Porém cresceram seus investimentos em produções próprias. Por sua vez, os estúdios estão investindo em suas próprias plataformas para ganhar assinantes, portanto em poucos anos o desenho de janelas e distribuição – que vêm mudando – será completamente outro. As mudanças de hábitos forçadas pelo novo coronavírus aceleraram tudo isso. De fora, é muito curioso acompanhar.
No Brasil, o impacto é ainda pior
O mercado de audiovisual, depois de um aquecimento e crescimento, já estava em uma encruzilhada e a pandemia parece ter cimentado as esperanças de recuperação em um período curto.
“A indústria audiovisual não será a mesma após a COVID-19, a crise no audiovisual que já vínhamos enfrentando por questões de política pública se acentuou com a pandemia”, lamenta a diretora executiva da Globo Filmes, Simone Oliveira. A Globo Filmes, que é uma das grandes distribuidoras no país, tinha cerca de 20 lançamentos previstos (entre filmes e documentários). Agora a lista para o segundo semestre está sensivelmente reduzida.
A alternativa para o Grupo Globo, que tem outras plataformas de exibição (Globoplay e a TV aberta), foi de pular a janela do cinema e entrar direto para o consumo em casa, perdendo a tela para a qual foram originalmente produzidos. Mas o resultado é positivo com o aumento de audiência para filmes nacionais. “Foi para aumentar a visibilidade do cinema nacional e aproveitar que as famílias estão reunidas em casa”, explicou Simone.
Em 2020, foram mais de 50 filmes. Títulos como como ‘Vai que Cola” e “Tudo por um popstar”. Fenômenos como “Minha mãe é uma Peça 3”, que é a maior bilheteria do Brasil e levou 11,5 milhões de brasileiros ao cinema, bateu as vendas de “Os Vingadores” no video sob demanda.
Simone reconhece que quando o isolamento acabar, haverá um ‘congestionamento’ com um grande volume de títulos a serem lançados mais ou menos na mesma época, por isso já está em reuniões (virtuais) com distribuidores e ANCINE para desenhar esse mapa, que não será fácil. Se antes dos adiamentos os filmes estrangeiros, na verdade os que são vindos dos Estados Unidos, já ocupavam grande parte do número de salas, esse será outro obstáculo para os filmes nacionais. “A nossa expectativa é que após o isolamento, o público queira – e possa – se reunir para curtir junto essa experiência mágica e social da sala de cinema”, aposta.
Em tempos de isolamento, não se cobre tanto a ser produtiva: