Essa semana o Brasil resolveu discutir sobre arte com um fervor inédito. O estopim foi o cancelamento da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, do Santander Cultural de Porto Alegre – que está dividindo opiniões.
Grupos contrários à mostra, como o Movimento Brasil Livre (MBL), alegam que alguns dos quadros expostos fazem apologia à zoofilia, à intolerância religiosa e à pedofilia – como a série de pinturas intitulada “Criança Viada”, de Bia Leite. As telas mostram desenhos de meninos com dizeres como “criança viada travesti da lambada” e “criança viada rainha das águas”. Segundo aqueles que se revoltaram contra o trabalho, tais quadros sexualizam a imagem das crianças, além de colocá-las num contexto vexatório.
Mas realmente faz sentido essa leitura sobre as obras? E de onde surgiu essa ideia provocadora, que acabou revoltando tanta gente?
O conceito da série assinada por Bia nasceu por meio de uma página criada no Tumblr pelo jornalista e ativista LGBT Iran Giusti. “O Criança Viada surgiu em 2013, quando resolvi juntar as fotos dos amigos e amigas que já eram ‘pintosos’ na infância. Em questão de dias, acabou virando uma celebração da comunidade LGBT”, relembra.
https://www.instagram.com/p/BZB2GXQj7Y6/?tagged=crian%C3%A7aviada
Com o sucesso, várias outras pessoas começaram a enviar suas próprias fotos para serem postadas. Iran frisa que todas as imagens publicadas foram enviadas por gente que queria se ver no Tumblr, como uma forma de rir de si mesmo e celebrar a infância – em nenhum momento o tom foi de bullying ou de objetificação do corpo infantil.
Depois de um tempo, Iran resolveu tornar o blog sazonal e só voltava a postar na época do Dia das Crianças. “Em 2014, quando surgiram várias páginas fakes no Facebook e outras redes, encerrei o Tumblr, porque as pessoas estavam usando o projeto como bullying e nunca foi essa a ideia”, relembra.
Nesse meio tempo, a artista Bia Leite entrou em contato com Iran para mostrar seu projeto artístico. “Achei lindo o trampo e inclusive cheguei a postar no Tumblr. Gosto muito da ideia de coisas que transitam por várias mídias e plataformas e fiquei feliz de ver isso acontecendo com o Criança Viada”.
Segundo Bia, o intuito do trabalho é dar visibilidade a crianças cuja vivência foge aos padrões heteronormativos. “Nós, LGBT, já fomos crianças e esse assunto incomoda. Sou totalmente contra pedofilia e contra abuso psicológico de crianças. O objetivo do trabalho é justamente o contrário. É que essas crianças tenham suas existências respeitadas”, declarou ela em entrevista ao UOL.
Mas dizer que essa crianças são ~viadas~ não seria um atestado de que elas estão sendo inseridas num contexto sexualizado? Para quem acredita que sim, Iran explica:
“A gente tem que entender que gênero é diferente de orientação afetiva sexual e é diferente de sexualidade e principalmente de sexo. Quando a gente fala de criança viada a gente está falando de uma fase em que os papeis de gênero não estão enraizados (ainda bem), porém os adultos – e muitas vezes outras crianças – fazem leituras e são LGBTfóbicas, então a gente precisa falar disso. Não são só adultos que sofrem LGBTfobia, não são só adultos que são agredidos por não seguirem a heteronormatividade”. Vale lembrar que até mesmo promotores do Ministério Público atestaram que não havia incitação à pedofilia nas obras.
Em resposta ao cancelamento do Queermuseu, Iran resolveu reativar o Tumblr nessa quarta-feira (13). Cerca de 24 horas depois, no entanto, a página foi tirada do ar. O motivo? Denúncias de que o conteúdo remete à pornografia infantil. Ironicamente, todas as fotos da página foram tiradas de álbuns de família e são apenas imagens de crianças em situações corriqueiras da infância. Definitivamente não há nada de pornográfico nelas.
“Não tem nenhuma foto de crianças nuas ou fazendo poses eróticas. A gente está apenas falando sobre expressão de gênero. O lance é que as pessoas não veem maldade no projeto e nem nas fotos, elas simplesmente acreditam que ser LGBT e não cumprir a heteronormatividade é errado, e usam a justificativa da pedofilia para censurar e proibir que falemos sobre gênero na infância”, finaliza Iran.