Precisamos repensar nossas formas de consumo em diversos setores na vida e a moda é um deles. A artista Brisa Flow, na véspera de sua apresentação no Lollapalooza, teceu uma reflexão sobre isso. Pela primeira vez, em 10 anos de existência do festival no Brasil, uma mulher indígena originária marrona se apresentou por lá, e o nome dela é Brisa de La Cordillera, conhecida como Brisa Flow. A cantora traz uma multiculturalidade para a música, misturando rap com cantos ancestrais, jazz, eletrônico, soul, e também para moda.
Em entrevista à CLAUDIA, ela contou sobre a importância de ocupar esse lugar no festival – ou melhor, reocupar. Essa é uma reapropriação, afinal os espaços dos povos originários foram invadidos e continuam sendo em toda a América Latina – Brisa comenta que esse termo é violento e passou a usar Abya Yala no lugar, que é a denominação histórica do continente americano.
“Eu acho o início de uma transformação, uma transmutação de uma retomada porque somos da América Latina, de Abya Yala, mas não estamos no festival de Abya Yala”, comenta a cantora. “Esse é também um espaço para que eu e outros artistas possam circular na América Latina, porque infelizmente ainda tem muita gente fora do nosso continente nos usando como referência. Enquanto nós, os artistas independentes, sequer tocamos em nossos próprios países”, completa.
Ela reforça ainda que “busca sempre excelência” no que faz, ainda que com pouco investimento, o que falta aos artistas independentes é realmente o espaço. “Essa oportunidade do Lollapalooza está aí para mostrar que a gente pode ocupar espaços como esse, dentro de festivais nacionais, internacionais e em palcos – e horários – que a gente merece, para mostrar o nosso trabalho”.
Brisa Flow foi um dos destaques da programação de sexta-feira (24) do Lollapalooza, na ocasião, ela usou dois looks, um simbolizando a água e outro o sol. A produção é assinada pela estilista Vicenta Perrotta e o diretor criativo, e produtor artístico da cantora, Amangelo Prateado. As roupas foram criadas no ATM Lab, no Centro Cultural São Paulo, filial de São Paulo do atêlie TRANSmoras, localizado em Campinas.
“A indústria da moda e a têxtil nos colonizou lá em 1500 em prol de buscar tintas para pintar roupas na Europa. Sempre em prol do luxo, estamos sofrendo esse racismo ambiental até hoje”, diz a cantora ao citar também todo o lixo que o mercado da moda gera, poluindo rios e transformando desertos em lixões – como o caso do Atacama no Chile, que se tornou um descarte tóxico de roupas vindas dos Estados Unidos, Europa e Ásia.
“Eu admiro muito a Vicenta, gosto como ela trabalha e Amangelo também, que é o lixo. Eu aprecio muito essa capacidade de transformar. As coisas não precisam ser nessa perspectiva de lógica colonial, cisgênero, hétero e normativa. A gente gosta de pensar em outras formas, caminhos e existenciais, e a gente faz isso com a moda. O Brasil ainda está atrasado nisso, mas em outros países isso é visto como uma tecnologia futurista“, conclui a artista.
Vicenta Perrotta busca trazer uma transmutação em sua forma de ver a moda, como Brisa fez a citação acima, desconstruindo os padrões vistos na sociedade e usando itens descartados, o que é considerado lixo, ressignificando-os. Esse é o conceito de suas coleções e o que idealizou para o look produzido especialmente para o Lollapalooza, uma parceria com a Adidas. Vicenta, Brisa, Amangelo, Michelle Serra, também produtora, e M4fel, responsável pelos acessórios da artista, pensaram juntos no que entraria no palco, como um trabalho colaborativo.
“Meu trabalho tem muito a ver com as questões de como o consumo construiu o gênero binário e o meu conceito é destruir essa questão. A moda é um processo de construção de identidade binária, a moda tradicional, destruindo isso e construindo outras formas. Os gêneros são coletivos, como no caso do travesti, é um gênero coletivo, mas, ao mesmo tempo, tem uma individualidade. E a moda esvazia a individualidade das pessoas, criando uma identidade quadrada, padronizada”, explica Vicenta.
Assim como em sua música, que abrange muitos estilos, Brisa Flow e seu grupo criativo fazem o mesmo com a moda. “A ideia de não usar mais ouro porque estamos vivendo essa época do garimpo muito forte, que sempre existiu, mas agora com essa questão do povo Yanomami estamos voltando a discutir isso no Brasil”, cita ela, ao contextualizar que dentro da cultura hip-hop usar itens de ouro trazia um lugar de pertencimento, de autoestima.
“Ter outras opções para continuar mantendo isso, essa dignidade e, ao mesmo tempo, mostrar que a gente pode criar outros acessos é muito importante na moda”, explica Brisa. “Nossa ideia é criar peças únicas que vão se transformando – e também os acessórios. Um cinto feito das mãos de um artesão indígena se torna muito valorizado quando é um artista usando, temos isso em mente também na hora de trazer isso para um show”.