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Artistas de rua se inspiram em Tarsila do Amaral para pintar em prédios

No centro de São Paulo, seis mulheres criaram obras gigantes que exaltam a potência feminina

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 6 fev 2020, 14h00 - Publicado em 6 fev 2020, 13h00
Hanna Lucatelli se inspirou em mulheres indígenas. “Imigrantes de países como o Peru e a Bolívia que me viram descer do andaime vieram contar que se enxergam nessa pintura”, diz Hanna (Marcus Leoni e arquivo pessoal/CLAUDIA)
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Pergunta rápida: pensando nas aulas de artes do colégio, de quais nomes de artistas brasileiras você consegue se lembrar sem contar Tarsila do Amaral? É provável que a resposta seja um longo silêncio. A pintora foi uma das pioneiras do movimento modernista no país e consolidou a presença feminina nas artes. Quase 100 anos depois, seus traços e cores ainda permeiam nosso imaginário. Prova disso foi o sucesso da exposição sobre sua trajetória no Museu de Arte de São Paulo (Masp), no ano passado (conheça duas curadoras da instituição na página 14). “Se vivesse hoje, Tarsila certamente estaria na vanguarda do nosso tempo”, diz Luciana Branco, diretora da agência Em Branco, que reuniu seis artistas de rua para homenagear a paulista. Entre dezembro e janeiro, elas subiram em andaimes no centro de São Paulo e coloriram empenas (paredes de edifícios sem janelas, capazes de abrigar obras com dezenas de metros) para o projeto #TarsilaInspira, que faz parte da iniciativa municipal Museu Arte de Rua.

A mulher ocupa a cidade

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Mag Magrela: “Pintar nas ruas
é estar em um espaço masculino e seguir, mesmo menstruando” (Arquivo do artista e Marcus Leoni/CLAUDIA)

Aos 34 anos, Mag Magrela pinta nas ruas há pelo menos 11. Suas obras são facilmente identificáveis pelas figuras femininas expressivas, espalhadas por muros de cidades brasileiras – como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, além de São Paulo – e estrangeiras, como Nova York e Londres. No início, Mag pintava homens. “Foi só quando passei a observar os meus movimentos e a reproduzi-los nos desenhos que as formas femininas ganharam espaço”, lembra. Neste trabalho, as cores de Tarsila serviram de guia. A personagem retratada vê o chão desabar sobre seus pés – uma discussão sobre o acesso à moradia na cidade. A posição das mãos representa a vagina, reverência ao feminino. “Também fiz questão de escrever ‘presente’ em seu peito, palavra simbólica para a luta das mulheres após a morte de Marielle Franco”, afirma.

No fundo, a própria artista

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Lau Guimarães (acima) e Simone Siss trabalharam juntas em painel na esquina das Ruas Direita e 15 de Novembro (Marcus Leoni e divulgação/CLAUDIA)

Uma das teorias sobre Abaporu é de que a obra seria um autorretrato da artista. Ela teria presenteado o marido, o pintor Oswald de Andrade, e, após o divórcio, recuperado o quadro. A versão foi contada por Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta da pintora que fez as vezes de guia na exposição do Masp para as artistas de rua. “Fiquei fascinada com a hipótese de que uma obra tão importante mostre uma mulher se pintando nua em frente ao espelho. Por isso criei essa cena na minha empena”, explica Simone Siss, 47 anos, que construiu a imagem digitalmente, recortou em pedaços de quase 5 metros quadrados e usou-os como molde para o mural de cerca de 700 metros quadrados. Junto da pintura de Simone, aparece um enorme lambe-lambe de Lau Guimarães, 48 anos. “Explorei o aspecto emocional de como era fazer tudo o que Tarsila fez sendo mulher naquele tempo”, diz Lau.

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Guardiãs da terra

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Hanna Lucatelli se inspirou em mulheres indígenas. “Imigrantes de países como o Peru e a Bolívia que me viram descer do andaime vieram contar que se enxergam nessa pintura”, diz Hanna (Marcus Leoni e arquivo pessoal/CLAUDIA)

Em uma recente busca por suas raízes, Hanna Lucatelli, 29 anos, descobriu sua ascendência indígena. O fato se tornou latente em sua obra, e a mulher pintada por ela na Rua 15 de Novembro inegavelmente se aproxima de um autorretrato. Ao mesmo tempo, ela se inspirou nos fundamentos do Movimento Antropofágico, criado com base no quadro Abaporu (1928), de Tarsila, e que defendia a necessidade de devolver o Brasil aos indígenas. “Nada mais antropofágico do que a gestação e a maternidade, momentos que vivo agora”, conta Hanna, que encarou o desafio de pintar o painel grávida de mais de oito meses. “Meu maior receio era não conseguir subir nos andaimes e ter que terceirizar todo o trabalho, mas não foi preciso”, diz. Ela deu as últimas pinceladas após oito dias de dedicação intensa.

Caos urbano

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Katia Lombardo: “Quis retratar as mulheres trans, tão marginalizadas,
no centro
de São Paulo” (Marcus Leoni/CLAUDIA)
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A arte em empenas nos desafia a caminhar com os olhos voltados para cima. Em #TarsilaInspira, vale a pena apontar também o celular para o alto, já que um código QR apresenta informações sobre as obras ao ser escaneado. No caso do trabalho de Katia Lombardo, 48 anos, a tela do aparelho vai confirmar que a colagem, escondida entre os prédios da Rua da Quitanda, inclui as botas que aparecem no quadro A Rua (1929) e uma das figuras animalescas de A Cuca (1924), de Tarsila. A base é um retrato de São Paulo, cidade onde a artista viveu e que inspirou muitas de suas obras. O outro ponto de cor é o manto usado pela mulher transexual. Ele é vermelho, como o que a pintora modernista costumava vestir. “A personagem está caminhando e seu rosto aparece refletido no prédio espelhado em frente”, destaca Katia.

Negras com rosto

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Quando começou a estudar design de interfaces digitais na faculdade, Crica já pintava nas ruas há cinco anos. Das artistas deste projeto, é a única grafiteira (Marcus Leoni/CLAUDIA)

Um dos quadros mais famosos de Tarsila, A Negra (1923) foi o ponto de partida da releitura crítica de Crica Monteiro, 36 anos. Pelo olhar da pintora modernista, a mulher negra é retratada nua, com o seio exposto, e rosto inexpressivo. “Não queria reproduzir essa imagem estereotipada. Cobri o corpo dela com um manto que remete às suas origens africanas e representa sua força”, explica Crica sobre a empena na Rua Direita. A criação de novas narrativas sobre essa população é a marca do trabalho de Crica, que pinta nas ruas desde a adolescência. Antes, suas personagens tinham cabelos enormes e coloridos; agora, o foco está no rosto e nos símbolos que frequentemente carregam. “Quero que vejam minha arte – não só achem as mulheres que desenho lindas – e, ao se deparar com negras com seus cabelos e turbantes, não olhem feio”, defende a artista.

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