O que a gente faz depois da felicidade? O questionamento de Clarice Lispector em Perto do Coração Selvagem (Rocco) ficou ecoando na minha cabeça assim que o último frame de Aftersun piscou na tela do cinema. O longa de Charlotte Wells, que estreia no roteiro e na direção, e que venceu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes e a Mostra de Cinema de SP, não traz nenhuma reviravolta ou um grande drama como fio condutor.
O filme da MUBI, que estreia nesta quinta-feira (01) nos cinemas brasileiros, tem apenas um jovem pai divorciado e sua filha de 11 anos curtindo juntos as férias de verão num resort econômico na Turquia. A felicidade de Calum, interpretado por Paul Mescal, e Sophie, vivida com maestria por Francesca Corio, de apenas 9 anos, transcorre num universo quase milimétrico, com o ar quente e pesado cheirando a protetor solar na beira da piscina, gosto de maresia na boca e sensação de sorvete escorrendo entre os dedos. É o final dos anos 1990 e ambos registram os dias em sua novíssima câmera portátil e dão notícias à família por meio de ligações em cabines telefônicas, enquanto Sophie se pergunta por que o pai ainda diz “eu te amo” para sua mãe se eles já não estão juntos.
Nem os aparentes problemas –como a ausência de uma segunda cama, que o hotel esqueceu de incluir no quarto, ou o pulso quebrado de Calum– conseguem perturbar a paz dessas férias solares que têm um certo tom de despedida. Esse retrato tão bonito da paternidade pós-divórcio e da cumplicidade entre pai e filha (ainda tão pouco explorado na literatura e no cinema) faz um filme contemplativo, trunfo da direção intimista de Charlotte e da precisão e sensibilidade na atuação dos protagonistas.
Aftersun é um filme de muitos silêncios, mas há muito mais para absorver dos que os diálogos leves e breves. Porque tudo é permeado por olhares, expressões faciais, gestos e até respirações que, por mais sutis que sejam, dizem mais do que as palavras. Um exemplo é o próprio título do filme, referência ao creme que pai e filha aplicam carinhosamente nos rostos um do outro todas as noites, depois do dia inteiro sob o sol.
Se uma palavra pudesse definir esse filme, seria domingo. Um desses cheio de calor, dentes e gargalhadas, seguido por uma noite tranquila, mas melancólica, porque vai findando o dia e a segunda-feira está à espreita. É uma sensação que a própria Sophie descreve após “o dia mais incrível da sua vida”, no qual mergulhou com cavalos-marinhos e até um polvo ficou sobre sua cabeça. Ao contar sobre essa espécie de vazio entre os ossos que se instala depois de tanta alegria, a menina fala, sem saber, da mesma tristeza (e de outras) que afligem o seu pai. Prestes a completar 31 anos, Calum lida com as feridas abertas de sua própria infância, a vida pessoal estagnada, uma vida financeira problemática e a paternidade atravessada pelas tantas inseguranças sobre si mesmo. Tudo isso meticulosamente escondido para que nada perturbe a plenitude feliz e curiosa da filha que vai se descobrindo pré-adolescente. A rachadura nessa fachada aparece, no entanto, numa noite em que Calum sai sozinho e fica bêbado, dominado por essa tristeza que é só sua e que, depois, dá lugar à culpa por ter negligenciado Sophie.
Uma ficção com elementos de inspiração biográfica, é no não dito que Aftersun toca a sensibilidade do espectador. Ainda mais quando se tem a perspectiva de uma Sophie 20 anos mais velha, lidando com as próprias responsabilidades maternas e refletindo sobre aquelas férias ao lado do pai. É nos flashes de suas lembranças que ela vê a faceta mais divertida de Calum, como se estivesse dançando numa balada, mas também se escondendo e gritando sozinho na escuridão dos próprios mistérios.
O filme explora com delicadeza e sensibilidade o poder da memória, essa ferramenta quase mágica de visita ao passado e captura de diferentes significados à medida em que as recordações são convocadas (ou aparecem sem convite). Seja nos momentos de brincadeira genuína entre pai e filha ou na melancolia implícita em cada sorriso que prevê uma despedida, o filme aperta o peito por ser, em si mesmo, um lembrete de que os verões acabam. E que mesmo a mais pura felicidade pode ser uma incerteza magoada que perdura.