No melhor clima de tragicomédia, o novo filme do diretor queridinho na cena indie Ira Sachs, Passagens, é perfeito para sentir apaixonamento e um pouco de raiva. Na história, acompanhamos a formação inesperada de um triângulo amoroso após o cineasta Tomas (Franz Rogowski) e seu companheiro, o artista Martin (Ben Whishaw), conhecerem a professora Agathe (Adèle Exarchopoulos) na festa de celebração do final das gravações do seu último longa-metragem.
Num clima que revive os melhores anos da nouvelle vague, com roteiro afiado, despretensiosidade narrativa e uma Paris sempre encantadora, Passagens mostra a diferença entre solidão e solitude de uma geração de pessoas, homens ou mulheres, héteros ou LGBTQIA+, em um mar de emoções. “Fiquei muito envolvida com o projeto. O lado meio controverso entre uma mulher que está se apaixonando por alguém tão complexo e o fato de ela ter tentado aceitar isso mexeu muito comigo”, conta Adèle, em entrevista
à CLAUDIA.
Em um período excelente para a sua carreira (ela também está nos ótimos All Your Faces, Os Cinco Diabos e Bem-vindos à Bordo), a atriz entrega uma performance intimista e sensível. Existe um equilíbrio peculiar que ela constrói na personagem de Agathe que sempre beira o dito e o não dito. “Eu acredito que as palavras que você escolhe, mesmo que sejam pequenas ou grandes, pensadas antes ou não, espontâneas ou não, dizem muito sobre os seus sentimentos, assim como o silêncio.”
A construção dessa desavença amorosa, cheia de energia, tesão e melancolia, também aponta para um lugar específico que é a qualidade da linguagem corporal dos atores escolhidos para o filme. Além de Adèle, Franz Rogowski e Ben Whishaw proporcionam momentos muito sutis dentro da complexidade dos seus personagens – também por isso os espectadores vibrem em alto e bom som, como uma reação também física diante da obra.
“Todos nós sabemos que existem pessoas difíceis de conversar. Você pode até tentar se comunicar com elas, mas não consegue. Quando se trata de afeto e sexualidade, ou outra coisa que não exija palavras, as coisas ficam mais fáceis. A intimidade é uma conversa, não só o ato sexual”, pontua a atriz.
A seguir, uma conversa profunda sobre as emoções de Passagens, a construção dessa personagem e as relações interpessoais no contemporâneo:
O que você mais gosta no trabalho de Ira Sachs e como foi a experiência com ele nesse filme?
Conheci Aira após a pandemia de Covid-19, mas já conhecia o trabalho dele por conta de A Broken Village e Keeps the Light On. Sabia o quanto ele era um diretor de momentos e de intimidades, das miudezas e pequenas banalidades – e isso eu gosto no cinema, porque pode mudar a sua vida.
Depois, conheci Franz e Ben, que já estavam escalados para o projeto. Ele [Ira] conversou comigo sobre esse triângulo amoroso e a personagem da Agathe, uma pessoa com muita empatia e que vai se apaixonar pelo personagem do Franz. O que eu mais amo em Ira é que ele não faz disso um assunto sobre diversidade, só pelo fato de haver um casal gay. Não é o assunto do filme, é simples assim, um fato. Penso que é assim que deveria ser, sempre. Tive a mesma experiência em Os Cinco Diabos, e eu adoro isso, o fato de não ser o assunto.
E como diretor, ele é muito gentil. Sempre conversava comigo sobre as cenas mais íntimas, mais sexuais. Falamos abertamente sobre como ele as tinha imaginado e se eu teria algum limite intransponível. Aira é preocupado, e tem esse jeito europeu de dirigir, com espaço para improvisação. Ainda mais considerando que ele escalou um ator como Franz, que tem algo animalesco dentro de si, mas, ao mesmo tempo, pode ser muito preciso também. Foi um encontro doce e de colaboração entre todos nós.
O filme não é apenas sobre o triângulo amoroso, mas também sobre a solidão e o que ela faz com as pessoas. Como você se relaciona com essa história e quais foram os desafios em criar essa dinâmica entre os personagens, que mostra os lados vulneráveis de cada um deles?
Eu adoro o fato de [Ira] ter escolhido alguém como Franz para o papel de Tomas, porque ele é uma pessoa engajada, sente seu ego e mas também uma espécie de tortura, e, ao mesmo tempo, nunca é antipático, como se o seu tipo de humor pudesse salvar tudo. E ela [Agathe] segue seus sentimentos e possui enorme empatia pelas pessoas.
Foi difícil para mim abordar isso. Como aquela em que os personagens estão na casa de campo e ela os escuta transando – o fato dela permanecer na casa diz muito. Esse lado meio controverso entre uma mulher que está se apaixonando por alguém tão complexo e o fato de ela ter tentado aceitar isso mexe muito comigo. E também o fato de ela ter uma espécie de cuidado pelos sentimentos do personagem de Ben Whishaw. Foi um desafio gostar de não entender alguém, mas tentar estar ali de qualquer forma; encontrar empatia onde eu mesma [pessoa física] não consegui encontrar.
E para falar a verdade, já é um desafio atuar em inglês porque não é minha língua. Nesse caso, ainda podia manter meu sotaque, mas é engraçado porque não tenho a cultura britânica sobre sons, sobre dinâmica das palavras e outras coisas. Eu não sei como é, não tenho os códigos e tal. Isso acaba me frustrando um pouco porque não consigo improvisar tanto, não sonho em inglês. Ainda assim, as questões que Agathe me trouxe fizeram sentido.
Agathe é realmente uma personagem especial. Ela é tão digna em todas as escolhas que fez, até mesmo em relação ao aborto. Esse tema, aliás, está em alta ao redor do mundo, sobre um direito que é tão importante para as mulheres. O que você pensa sobre isso? E como foi abordar esse tipo de escolha da sua personagem?
Eu sempre acho muito maluco como certas coisas caminham tão rápido na sociedade, como a inteligência artificial e os debates em torno dela, ao mesmo tempo que uma escolha natural da vida de uma mulher ainda seja bloqueada dessa forma. É assustador e devastador, porque isso não deveria ser mais um assunto [a ser debatido].
Eu não faço uma escolha política quando leio um roteiro, porque sou muito sensível para isso. Eu leio e vejo se quero participar dessa aventura ou não. E fazer parte dessa história, defender o que ela representa, mas, no final, preciso me distanciar. Eu vejo que há algo político, mas não é o assunto do filme, nem algo para eu jogar “alguém que teve um aborto”. O cinema está aqui para mostrar uma janela e jogar uma luz verdadeira sobre a nossa humanidade, o que pode ser bom ou não. O fato dela estar fazendo essa escolha e assumindo isso mexe comigo.
No fim, percebo que mesmo que você não queira fazer uma escolha política, o que você deseja encarnar [no cinema] faz de nós políticos. Tudo se torna político hoje em dia, mas eu não leio o roteiro de um trabalho com esse ângulo [para aceitar fazer um filme].
Na minha perspectiva, o filme é bastante contemporâneo no retrato das relações afetivas e das conversas que existem entre casais e amigos. Como foi navegar nesse mar de emoções junto com a personagem?
Foi fácil, porque eu estava bastante envolvida, junto a Ira, Franz e Ben. Gosto do fato de Agathe saber desde o começo que algo vai acontecer entre ela e Tomas. Isso é raro na vida, mas, às vezes, é possível sentir essa energia, sabe? De conhecer alguém e saber que vocês vão se envolver em algum ponto, não importa se daqui dez minutos, dez meses ou dez anos. E o Franz deixou isso ser leve e divertido. O Ben também ajuda nesse sentido por ter um tipo de mistério.
Alguém me perguntou em outra entrevista se foi difícil fazer as cenas de sexo. E não foi, porque em nenhuma delas eu estou nua. Mas, por exemplo, a cena em que eu canto foi muito difícil. Eu estava nervosa, porque não me considero uma boa cantora. Eu não sei porquê, mas estava irritada para fazer essa cena. Então, é engraçado como você pode descobrir a si mesma através do seu trabalho, como todos.
Alguns de seus trabalhos mais recentes falam sobre conexões humanas das mais variadas. É um tema que você está interessada em mostrar nesse momento da sua carreira ou aconteceu por acaso?
Eu acho que aconteceu por acaso. Não tenho uma estratégia, porque cada vez que eu tentava [ir por esse caminho], eu não ficava feliz. Eu escolhi um ou outro filme com um pensamento tipo “se eu fizer esse filme, talvez ele me traga esse outro”. Mas isso não me dava satisfação.
A única reflexão que consigo pensar agora a partir da pergunta é que, para mim, uma vida sem amor (que pode ser amizade, familiar ou de casal), não tem gosto e nem sentido. Se você só tem sua ambição ou sua carreira, não tem nada… Não vale a pena. As minhas escolhas vêm do fato de ter aprendido a dizer não, e isso é um privilégio. O que eu procuro quando toco um personagem são as complexidades humanas. Caso contrário, eu fico cansada.
O que Agathe te fez questionar?
Na posição dela, o que nós estamos prontos para aceitar em uma relação de amor? O sofrimento tem que ser parte do processo? Você é capaz de construir algo compartilhando isso com as pessoas, como o caso deste triângulo [amoroso]? São coisas bem pessoais e ninguém precisa respondê-las. Nem Agathe é capaz de fazê-lo.
Quando você está em uma história de amor, é preciso escolher as suas batalhas. Você não pode ter tudo em um casamento ou apenas em uma relação. Então, qual é a coisa mais importante para você no amor?
No filme, é visível a química de atuação entre você e o Franz Rogowski. Como foi construir essa atmosfera ao lado dele?
Nós não nos conhecíamos muito antes das gravações, mas ele é super aberto e curioso, então fomos direto ao ponto. Nada de trocas pequenas, sempre muito profundas sobre a vida e os relacionamentos. Ao mesmo tempo que somos muito diferentes, somos semelhantes. Ajudou também sermos honestos antes de gravarmos cenas com mais intimidade, ficamos assustados juntos (risos). E a conversa faz parte da intimidade, no sexo ainda mais, principalmente na primeira vez. Havia algo bem-aventurado nisso tudo.
Você mencionou o quanto Agathe e você são diferentes. Como foi desenvolvê-la e a troca sobre ela com Ira?
Ela é realmente diferente de mim, desde a forma de se vestir até a ligação com a família. Como disse, não conseguiria lidar com a situação que ela se coloca no filme, e ainda ter empatia por essas pessoas. Eu sou muito frágil para lidar com esse tipo de situação. Não tentei me identificar com ela, mas imaginar os seus hábitos, como ela se tornou professora, como ela se distancia da pretensão dos familiares dela e, claro, por que ela se fascinou tanto por esse homem [Tomas]…
Sempre fiquei fascinada por algo que não é meu, uma cultura que não é a minha. Porém, não queria que ela fosse uma vítima do amor. Por isso sinto que ela foi salva pelo jeito que escolheu ter esse aborto. Me perguntava se ela estava pronta para ser magoada nesse nível, mas, na verdade, ela não estava pronta para ser machucada por alguém por ter sido invadida nessa situação.
Eu não queria olhar para a personagem de um jeito moralizante ou com alguma conclusão. Eram mais essas perguntas que eu me fazia e a troca que tinha com o Ira. Porque, pessoalmente, eu acordo uma manhã pensando em certas coisas, e na próxima em outras. Tudo aqui é sobre a experiência.
Passagens estreia dia 17/8 nos cinemas e, depois, vai para o o catálogo da MUBI. mubi.com/pt