É uma longa noite de inverno na fictícia cidade de Ennis, no Alasca. Camadas de neve se sobrepõem na vida cotidiana de quem mora ali. O contexto aparentemente pacato, no entanto, vira do avesso após oito homens desaparecerem de um centro de pesquisa sem deixar rastros. A única pista encontrada no local faz um paralelo do presente com o passado. Liz Danvers (Jodie Foster) e Evangeline Navarro (Kali Reis) são chamadas para resolver o caso e serão obrigadas a se confrontar com acontecimentos que acompanharam seis anos atrás. Estaria tudo conectado?
True Detective: Terra Noturna trabalha com elementos do cinema de terror, suspense psicológico e misticismo para desenvolver a trama. Em seis episódios, a quarta temporada, que estreia dia 14 deste mês na HBO Max, transporta a dinâmica da primeira — tão amada pelos fãs — para outro contexto. “Foi difícil recuperar esse sentimento. Pensei muito sobre o que havia na primeira leva de episódios que a conectou de maneira tão poderosa com o público. Então, entendi que a atmosfera de uma Louisiana gótica, calorenta, estranha, com toques sutis lovecraftianos [subgênero de terror de H.P Lovecraft], transformaram aquele thriller em algo maior”, diz a produtora executiva, diretora e co-roteirista, Issa López.
Apesar do vasto currículo de comédias românticas, a mexicana sempre gostou do gênero cinematográfico. Em 2017, teve a oportunidade de explorar essas entranhas com o seu Os Tigres Não Têm Medo.
A produção independente ganhou projeção global pela mistura de realismo fantástico, terror e fantasia. As ótimas críticas colocaram a criadora no radar internacional, levando-a até a HBO Max para propor algo novo na sequência da antologia de crimes. “A única maneira de abordar isso era fazendo o oposto. Se antes o cenário era suado e quente, agora, faríamos no frio e no escuro”, conta Issa.
O Alasca tornou-se o contexto sóciopolítico-econômico ideal para a narrativa por ser uma região remota que sofre as consequências de invernos rigorosos, possui exploração de insumos naturais, tem um alto índice de crime per capita e ainda enfrenta dilemas étinico-raciais.
“Era perfeita para a minha vontade de colocar duas detetives tentando desvendar um mistério que vai além de um acontecimento humano. O melhor cenário para um terror cósmico”, diz.
Apesar de a região ser tão assertiva, na vida real, True Detective: Terra Noturna foi gravada na Islândia, por uma série de razões — incluindo o fato de as temperaturas chegarem a -36o C no Alasca, o que impede o funcionamento de uma câmera de cinema. Por isso, as equipes de direção de arte, caracterização e cinematografia passaram um tempo na região para garantir a verossimilhança entre a ilha europeia e o estado norte-americano. Todos os cenários e figurinos foram adaptados com uma vasta pesquisa e ajuda de pessoas locais para evitar qualquer tipo de imagem estereotipada, principalmente dos personagens com ascendência indígena. Até mantos sagrados originais foram levados para Reykjavik e devolvidos após as gravações.
“O que eu mais amo na produção de filmes é essa junção das várias linguagens: das roupas, do design, da fotografia, da atuação. Todos nós reunimos as nossas funções e criamos uma sinfonia da qual você só terá a dimensão quando assistir o resultado. Isso é a beleza de fazer cinema”, comenta Jodie Foster.
Fã da primeira temporada, ela entrou no projeto por ter adorado a proposta do roteiro de Issa. “Essa conexão entre Danvers e Navarro me chamou a atenção: elas tiveram uma experiência juntas em um caso que não terminou bem e, agora, precisam se reunir para solucionar um novo. Também gostei da dinâmica com a enteada, uma jovem de 18 anos, filha de uma mulher indígena, que está tentando entender a própria identidade em um mundo tão distante daquele em que Danvers cresceu”, pontua a atriz.
A questão racial é mencionada na série, mas não é o centro dela. “É um dos temas que abordamos: a população indígena versus a branca, e a visão que cada uma tem diante da terra que habita. Ela pertence aos humanos ou a ‘si mesmo’?”, comenta a diretora, que contratou atores e não atores de diferentes origens para o elenco.
“Em um nível mais pessoal, também falamos sobre a solidão das vivências contemporâneas.” A filosofia que guia a quarta temporada está ligada à noção de que existem coisas mais antigas que nós, humanos, e “isso sempre esteve nas sombras nos esperando”, explica Issa López.
Para Kali Reis, descendente de nativos americanos das tribos de Cherokee, Nipmuc e Seaconke Wampanoag, estar na série é uma grande honra. “Nós nunca temos representação alguma, no cinema ou na publicidade, as pessoas pensam que somos todos iguais”, diz ela, que faz parte da organização sem fins lucrativos Missing and Murdered Indigenous Women.
“Desejo que a série seja um lembrete constante de que existem povos originários de todas as terras aqui no presente, respirando, trabalhando, vivendo — e não só no passado. Somos engraçados e talentosos, estamos tentando cultivar a nossa cultura e não vamos desaparecer.”
Dupla dinâmica
Assim como as temporadas anteriores, os novos episódios de True Detective contam com uma relação cheia de ruídos entre as protagonistas. Construir a química de atuação de Jodie Foster e Kali Reis, segundo a diretora, foi uma tarefa fácil.
“Elas são superdivertidas e eu admiro esse jeito destemido em abordar uma cena séria com humor. Dentro das telas, a questão fica um pouco complicada, já que Liz e Evangeline possuem características ímpares, mas que as fazem ter uma boa troca. Desde o começo, sabia que elas eram duas partes de um ser humano só, como se fossem o yin e yang de uma única mulher. Elas só se tornam algo inteiro quando estão juntas.”
Na toada de personagens femininas nada óbvias, as protagonistas ganham destaque por não se apoiarem em clichês do gênero investigativo. “Devo dizer que estou gostando de interpretar pessoas desagradáveis. Sinto que, ao atingir uma certa idade, você fica mais honesto com o personagem e mostra alguns dos lados mais sombrios dele”, reflete Jodie Foster, que considera Liz Danvers metódica e peculiar.
“Ela é muito autocentrada e, ao mesmo tempo, distraída. É distante das próprias emoções e acaba julgando os outros por serem emotivos demais — ainda precisa aprender que o mundo ao seu redor mudou.”
Jodie não interpretava uma detetive desde o sucesso de O Silêncio dos Inocentes (1991), mas garante: não há nada de Clarice Starling em Terra Noturna.
“Clarice era super ética, quieta, reservada. Danvers está longe disso, e por ser mais velha, tem um histórico mais complexo”, comenta sobre a distância entre o papel que lhe rendeu o Oscar de Melhor Atriz em 1992 e o de agora.
Do outro lado, a ex-fuzileira naval Evangeline Navarro carrega questões que vão desde a ascendência indígena da região do Alaska até o contato com esse “algo a mais” proposto por Issa Lopéz no roteiro.
“Ela é durona e ousada, diz o que pensa e não tem medo de enfrentar o perigo. Porém, sofre entre dois universos. Por ser profunda e emotiva, não sabe exatamente onde se encaixa”, diz Kali Reis.
A atriz de 37 anos, que também é boxeadora consagrada campeã mundial em duas categorias, está no seu terceiro trabalho no cinema. Ela estreou em 2021 em Catch the Fair One, pelo qual foi indicada a Melhor Atriz no Film Independent Spirit Awards.
“Para mim, a atuação e a luta têm características em comum além da fisicalidade e dos treinos. Mesmo que sejam trabalhos aparentemente individuais, não são, porque existe um time por trás disso. É preciso estar presente no momento para dar certo.”
A escolha do elenco é um dos pontos altos da quarta temporada, assim como o desenvolvimento de cada personagem. “Só foi possível chegar nesse resultado depois de um longo processo de escrita e reescrita, escrita e reescrita… E de poder encontrar essas atrizes e atores capazes de ir além, colaborar comigo para alcançar o inesperado e criar texturas nada supérfluas”, explica Issa López.
Esta é a primeira vez que True Detective tem duas protagonistas mulheres, uma equipe técnica majoritariamente feminina e uma diversidade étnico-racial.
“O fato de a HBO ter ido atrás de uma diretora mexicana já indica que eles estavam se questionando a respeito disso. Contudo, não senti na série que estava olhando para a história de uma mulher. Essas personagens giram em torno de um conflito masculino, o que é perfeitamente normal, pelo menos para mim”, diz a diretora e roteirista.
“Se a história for boa, com personagens sólidos, ótimo. Agora, se isso já foi feito [referindo-se à primeira temporada], como podemos seguir em frente? Eu queria encontrar uma resposta feminina para uma pergunta que, de certa forma, foi feita pelos personagens masculinos da primeira temporada. A maneira que encontrei para avançar foi por meio da expansão.”
Todos nós reunimos as nossas funções e criamos uma sinfonia da qual você só terá a dimensão quando assistir o resultado. Isso é a beleza de fazer cinema
Jodie Foster, atriz
Desejo que a série seja um lembrete constante de que existem povos originários de todas as terras aqui no presente, respirando
Kali Reis, atriz descendente de nativos americanos das tribos de Cherokee, Nipmuc e Seaconke Wampanoag