A ideia de cozinhar para si mesmo nunca pareceu monótona a Gui Poulain. Ele enxergava a experiência como uma oportunidade para se desafiar. Eram justamente os preparos complexos, como pães e doces, que o fascinavam.
“Quando criança, minha avó materna morava no apartamento de baixo e cozinhava quitandas mineiras. Tinha doce de leite de corte, pão de queijo, roscas… Adorava passar a tarde olhando e ajudando-a”, relembra. Ironicamente, só anos depois se aventurou nas primeiras tentativas de arroz, feijão e outros básicos. Foi em 2004, quando deixou a casa dos pais, no interior de Minas Gerais, para estudar em Belo Horizonte. Ele recorreu à mãe para aprender o rotineiro.
Entre idas e vindas, que incluem alguns períodos dividindo apartamento com amigos, hoje Gui vive sozinho na capital mineira e compartilha aqui receitas que o acompanham no dia a dia. “O grande truque é ser prático e evitar estar o tempo todo na cozinha. Dessa forma, fica mais fácil de ter motivação e não cair na tentação do delivery”, diz.
Quando faz arroz, por exemplo, prepara porções extras e usa o ingrediente para variar o cardápio com outros preparos, como o arroz de gengibre. A sobra da abóbora, que acompanha o prato, pode virar uma sopa ou purê no dia seguinte. “É cansativo repetir a refeição vários dias, e tem esse mito de que morar só é comer sempre a mesma coisa, por isso gosto de pensar em pratos adaptados”, alerta.
Indispensáveis para quem mora sozinho, as receitas de uma única panela são outro incentivo a ir para a cozinha – quanto menos louça, melhor! “Gosto de variar os tomatinhos sobre a burrata com o agridoce das uvas com balsâmico. Parece complexo, mas faço tudo em uma frigideira com alho e sal”, diz sobre o ótimo aperitivo para acompanhar seu drinque favorito do momento, o Dark ‘n’ Stormy.
Formado em design gráfico, foi a gastronomia que ajudou Gui a superar um período difícil, quando perdeu a avó e foi demitido. Decidiu juntar as economias e estudar confeitaria na França. Em 2010, criou o blog Moldando Afeto, um espaço para dividir suas receitas.
“Eu tenho essa relação da comida com afeto. Minha família, que é do interior, quando comemorava um aniversário, se reunia na cozinha, por mais que a mesa da sala estivesse montada, num gesto de união. Mesmo hoje, em tempos de pandemia, morando sozinho, sigo tentando compartilhar. Quando preparo um bolo ou biscoitos, guardo num potinho e mando para um amigo. Foi uma forma que achei de estar próximo a quem eu amo nesse momento.”
Doces Memórias
O sobrenome adotado, Poulain, veio quando Gui fez um trabalho da faculdade sobre o filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, e passou a ser chamado assim pelos colegas. Inspirado no gosto da protagonista pelas frutas vermelhas, ele criou os morangos assados ao vinho que recheiam o crepe, sua sobremesa favorita para os momentos de pressa.
A mesma delicadeza que tem ao medir com precisão os ingredientes de cada receita, como a confeitaria exige, ele também apresenta com a escrita. Já são dois livros publicados – antes de Desalinho, teve Cartas Amarelas, de 2015 –, em que receitas se mesclam a relatos de momentos e sensações.
“Desalinho veio após um período de depressão. Numa sessão de terapia, a psicóloga disse que meu conceito de amor era ilusório. Isso bateu forte em mim e busquei entender os amores que perdi, incluindo minha avó, meu primeiro namorado e meu último relacionamento. Nesse livro, incluí apenas doces que me remetessem a memórias, como o bolo que faria se fosse me casar. Preparei a receita para as fotos e doei para um ‘casamentaço’ de 40 casais LGBTQIA+ aqui em Belo Horizonte. Fico com o olho cheio d’água só de lembrar. De alguma forma, o bolo da cerimônia que não tive representou uma comunidade da qual faço parte.”
Confira o menu completo criado por Gui Poulain:
Dark‘n’Stormy
Arroz de gengibre tostado com abóbora ao missô
Burrata com uvas ao balsâmico
Sopa de lentilha e curry
Tagliatelle com iogurte e cebola caramelizada
Crepe de morangos assados ao vinho
Produção: Gui Poulain | Concepção Visual: Catarina Moura