É bem cedinho que Marta abre as portas de sua padaria. Na rotina de acender as luzes, ligar as máquinas e colocar a primeira fornada para assar, a ex-advogada encontra sua realização mais preciosa. Apesar de uma equipe afiada, mulheres em sua maioria, a empresária não abre mão de ser a primeira a entrar todos os dias em seu negócio para sentir o aroma de pão no forno da Martoca.
Com vinte anos de atuação no Direito, Marta Carvalho agora tem o título de padeira, que carrega bastante orgulhosa. Essa paixão pela mistura de água e farinha a acompanha desde menina, mas foi por muitos anos vista apenas como passatempo, um escape para a rotina estressante. Foi só depois de uma carreira consolidada na advocacia que ela conseguiu deixar de ignorar esse chamado da vida.
Apesar de já fazer pães em casa e reservar os finais de semana para cozinhar para os amigos, nunca enxergou o hobby como profissão. No entanto, seus olhos despertaram para a fermentação natural ao ler Cooked, de Michael Pollan.
“É uma obra que fala sobre o que cozinhar significa na nossa evolução como espécie e como sociedade, e como isso está no centro de todas as culturas. Ele explica como ‘aprendemos a ser gente’ em volta da mesa. O livro mudou minha vida.”
Foi a partir da publicação, mais especificamente do capítulo sobre pães, que Marta decidiu se aventurar na massa madre. “O primeiro deu muito errado, parecia uma panqueca dura”, conta aos risos sobre sua tentativa de estreia. Mas ela persistiu e logo a experiência deu certo: rendeu pães todos os dias no seu lar.
Mais tarde, incentivada por um amigo, decidiu ingressar numa formação em panificação na renomada San Francisco Baking Institute — ainda convencida de que seria apenas com a intenção de realizar um sonho pessoal.
“Vi que realmente queria fazer uma mudança. Aquilo que me preenchia tanto no aspecto pessoal podia me preencher também no profissional”
Marta Carvalho
Ao retornar ao trabalho, porém, só conseguia pensar no tão amado levain: “Quando voltei, meu primeiro dia no escritório foi assim: ‘o que estou fazendo aqui?’, um sofrimento. Eu me dei conta, embora tivesse sucesso na minha profissão, de que aquilo ali já tinha dado tudo o que tinha que dar”, relembra.
Com isso em mente, em 2019, equipou a cozinha de sua casa e nunca mais parou de fazer pães. “Aos poucos, eu vi que realmente queria fazer uma mudança. Aquilo que me preenchia tanto no aspecto pessoal podia me preencher também no profissional”, constata.
E, claro, a partir de uma mudança vem também a realização: “Algo que passa muito por quem trabalha com comida é essa coisa de você ver um resultado imediato. É algo tão concreto e positivo você transformar o alimento, você dar de comer para alguém… Acho que isso é a coisa que mais me encanta”.
O cardápio do Martoca, em Pinheiros
A carioca se diverte ao contar que, na escola, era conhecida como “Marta pão puro”, apelido que ganhou por estar sempre comendo um pãozinho, sem nenhum complemento, no horário de aula. Seus pães favoritos eram da padaria Ipanema, que ganhou até homenagem em um quadro na parede da Martoca, seu primeiro espaço físico.
Decidida a transferir-se a São Paulo para juntar-se ao marido, que já vivia na capital, Marta aventurou-se na mudança para a cidade como habitante e empresária. “A gente tem a impressão de que São Paulo vai ser um lugar mais frio e corrido, mas as pessoas tiraram um tempo para me ajudar, me senti acolhida.”
É de um concorrido balcão que saem os pães de fermentação natural, croissants, cannelés, pães de queijo, cookies, bolinhos e o que mais o menu semanal mandar — sempre há novidades de panificação e viennoiserie. O cardápio da padaria é fluido, varia de acordo com as sazonalidades dos ingredientes e também com a criatividade de sua dona. Entretanto, há uma regra: nada de baunilha.
Marta gosta de levantar a bandeira do cumaru e de tantos outros produtos nacionais, característica que pode ser conferida nos ingredientes dos quitutes e também no seu empório, formado apenas por itens de pequenos produtores, vinhos brasileiros (naturais ou de pouca intervenção e rótulos da casa), além de grãos vindos da parceria com o Café Por Elas, marca liderada por mulheres.
“Ao máximo que posso, só estou usando produtos nacionais, dos vinhos aos chás. A baunilha é impraticável, não é algo da nossa culinária. Ela encarece e acho que não agrega nada de incrível às receitas”, diz ao defender o cumaru, ingrediente que se destaca no seu cannelé, por exemplo.
Com paredes e elementos em tons terrosos, o espaço projetado pelo AIA Estúdio e pelo diretor de arte Raphael Tepedino é muito mais ambicioso do que Marta um dia sonhou. Quando começou seu negócio, no Rio de Janeiro, o processo artesanal seguia um ritmo tranquilo, em que a padeira absorvia apenas as demandas que era capaz de abraçar.
Durante três anos, Marta comercializou pães num formato de dark kitchen, que começou com amigos como clientes e foi crescendo. Com a mudança para São Paulo, a ideia já era ter uma “padaria de bairro”, como sempre sonhou, principalmente pela possibilidade de interação que a empreendedora tanto desejava. “Minha ideia era ter uma portinha com uma máquina de expresso, onde a pessoa leva o pão e toma um cafezinho. Só que nas minhas buscas, acabei achando esse ponto aqui, que é muito maior do que imaginava.”
Já que o destino preparou para Marta algo tão mais grandioso do que o esperado, foi hora de arregaçar as mangas e preparar as fornadas em sua padaria, inaugurada no coração de Pinheiros em maio deste ano.
“Observando esse acolhimento, me vi realizando as minhas potencialidades”
Marta Carvalho
Como boa amante de arte, a empresária trouxe para o espaço elementos dessa paixão, a exemplo dos coloridos tampos da mesa, que são obras de Tatiana Chalhoub feitas especialmente para o negócio. Já as arandelas e os bancos em eucalipto e palha de taboa, revestidos em resina de mamona, são do artista Pedro Ávila.
Com o espaço pronto, foi hora de se livrar de antigas amarras, como a de não ser boa o suficiente, que de vez em quando a perseguia: “É aquela síndrome de impostora que a mulherada tem. Porque sempre cozinhei para família e amigos, pensava que não tinha nada demais. Mas desde o primeiro dia teve movimento aqui, as pessoas gostam do produto, indicam, voltam. Observando esse acolhimento, me vi realizando as minhas potencialidades”.
Uma nova profissão para preencher espaços
Já há alguns meses à frente de seu negócio, Marta consegue fazer uma avaliação honesta e grata de sua transição profissional. Se antes a gastronomia ocupava um lugar de escape, hoje é protagonista de sua vida.
“Tem horas que fico me beliscando, até beijo a parede da padaria de tanto que amo”, dá risada. Sua maior realização, ela conta, está no fato de conseguir preencher lacunas que nem sabia que existiam, mas que estavam presentes em sua antiga rotina: “Eu era advogada de processo, ou seja, de briga na justiça. Então, por mais que você ganhe uma causa, não existia uma energia de construção, era sempre sobre remediar um problema. A situação era de que coisas estavam sendo destruídas, estragadas, que alguém tinha sido lesado”, conta.
Marta define que, apesar de bem-sucedida como advogada, mantinha um sentimento de angústia dentro de si. “Eu não via um resultado do meu trabalho, algo concreto e positivo.”
Já no pão, a história é bem diferente. É nesse manusear que a padeira reflete sobre estar seguindo no caminho contrário ao da antiga rotina, principalmente ao lidar com o lento processo da mistura da farinha, da água e da fermentação, que pode durar 24, 48 horas ou até mais.
“O pão é uma coisa que parece mágica, tem que ter carinho até aparecer aquela joia. É uma construção tão concreta, uma energia tão oposta àquilo que eu fazia… Me dá muito prazer ver tudo pronto, e quanto mais eu me dedico, melhor vai ficando. É uma realização que eu nem sabia que eu queria”, finaliza.
CRÉDITOS DE PRODUÇÃO
TEXTO Marina Marques
FOTOS Breno da Matta
EDIÇÃO DE ARTE Catarina Moura
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