São muitos os atrativos para o olhar de quem atravessa a orla da praia do Rio Vermelho, em Salvador. A vista infinita do encontro do céu com o mar, os pescadores que se reúnem nas pedras ao amanhecer e a convidativa Casa de Yemanjá fazem do bairro soteropolitano um ponto a ser aproveitado por inteiro — seja pelas atrações turísticas ou pela agitada vida noturna.
É por ali, em frente à histórica Paróquia de Sant’Ana, que uma construção tombada e discreta guarda uma das maiores aventuras gastronômicas da cidade.
O restaurante Manga foi inaugurado, em 2018, pelo casal de chefs Katrin e Dante Bassi não apenas como um espaço para expressarem suas ideias mais ousadas, mas também como uma extensão do lar da família. “No início, fazíamos tudo sozinhos, montamos até um quartinho sem janelas para dormirmos no restaurante, porque passávamos tanto tempo aqui que era mais fácil não voltar para casa”, contam eles. Agora, com o apartamento no terraço, os filhos Peter, 6 anos, Olivia, 3, e Josefine, 1, estão sempre por perto.
Aliás, até o título da casa é uma criação em conjunto. Sem ideias para um nome com conceitos mirabolantes, foi das primeiras palavras do primogênito que a ideia surgiu: “Pepeu chamava tudo de manga, qualquer coisa mesmo, então numa brincadeira falamos: ‘Vai ser Manga!’ E ficou”, conta Kafe (como todos chamam a chef).
As criações do cardápio podem ser apreciadas em pratos individuais ou no menu degustação, mas o objetivo é sempre o mesmo: deixar o visitante de queixo caído. Antes mesmo de levar o garfo à boca, os chefs conseguem causar divertimento e surpresa com empratamentos que se assemelham a obras de arte: caso da ostra (na foto abaixo) — uma reconstrução do molusco em que até a concha, pintada à mão, é comestível — e do sorbet de pitanga, apresentado no formato da fruta em um bonsai.
A técnica primorosa é resultado de muito estudo e de longas passagens dos chefs em restaurantes notáveis, como o D.O.M, onde o casal se conheceu em 2013. Mas o destino precisou trabalhar muito até esse momento do encontro chegar.
Nascida na pequena Ravensburg, cidade ao sul da Alemanha, Kafe cresceu no ritmo tranquilo de uma fazenda, criada por pais que sempre valorizaram bons ingredientes e refeições em família.
“Comecei minha carreira no Hilton, em Munique, mas queria trabalhar numa cozinha mais elaborada, então fui para o Steinheuers, que tem duas estrelas Michelin. Mais tarde, minha irmã, que estudava em São Paulo, sugeriu que eu viesse ao Brasil. Eu já admirava o D.O.M e decidi tentar unir as duas coisas: visitá-la e encontrar um trabalho”, conta sobre sua primeira vez no país. Kafe conseguiu não só a vaga, mas o encontro com o amor de sua vida e um visto para permanecer por aqui.
Apaixonado por cozinhar, Dante não se recorda do momento em que decidiu seguir a carreira de chef, mas lembra do pontapé inicial para que as portas se abrissem para sua jornada, aos 17 anos.
“Eu queria muito trabalhar com o premiado francês Marc Le Dantec, que estava em Salvador. Fiquei uns seis meses insistindo, mas ele achava que eu era ‘filhinho de papai’”, se diverte. A insistência deu certo e o chef virou seu mentor profissional. Logo depois, Dante formou-se no Culinary Institute of America, nos Estados Unidos, e passou pelas cozinhas do Gramercy Tavern e Daniel, ambos em Nova York, até chegar ao cargo de sous chef na casa de Alex Atala.
Após alguns anos na cozinha do D.O.M, os dois partiram pelo mundo em busca de novas referências. Ela deu início a um sonhado mestrado e ele ocupou espaço na cozinha do premiado Schloss Schauenstein, na Suíça — isso tudo com o desejo cada vez mais forte de formar uma família. “A rotina dos restaurantes é intensa, então quando a Kafe ficou grávida, começamos a planejar abrir um negócio próprio, que possibilitasse às crianças crescerem perto da família”, diz ele.
“Amo a ideia de ter um restaurante não só pela possibilidade de criar coisas bonitas, mas por ser uma extensão de casa e ter os amigos por perto. Sempre achei isso o mais legal!”
Kafe Bassi
A dúvida ficou entre se estabelecer na Alemanha ou no Brasil, e a cidade vencedora foi Salvador. “Meus pais fizeram um ‘lobby’ pesado e acharam rapidinho um imóvel para nós”, brinca Dante. Mas ser dono de si não trouxe mais calmaria, pelo contrário.
“As obras atrasaram, nossa programação para um segundo filho acabou fazendo com que Kafe desse à luz numa segunda-feira e na quinta estivesse na cozinha, trabalhando 16 horas por dia, porque tínhamos acabado de abrir as portas”, conta ele. “Foi parto natural, deu tudo certo!”, pontua Kafe, sempre tranquila.
E assim nasceu o Manga, um restaurante soteropolitano que não se limita à culinária regional. O menu gira em torno da sazonalidade dos ingredientes e mistura as distintas vivências dos chefs — ele cuida da charcutaria e, ela, da panificação e das sobremesas; já os principais são criações a quatro mãos.
O empenho dos chefs logo resultou em premiações e elogios, mas claramente não é daí que vem a motivação. “Tem uma salinha que montamos para ser um espaço privado, só que virou berçário. Mas as crianças querem mesmo é estar na cozinha. É até uma briga, porque elas gostam de observar tudo, o tempo todo, adoram ajudar. Raramente tem uma comida feita pensada para elas, porque elas comem o que tem disponível, são abertos a experimentar de tudo!”, relata Dante. E com pais de mãos cheias assim, quem não seria?
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Texto: Marina Marques | Fotos: Amanda Tropicana | Direção de arte: Kareen Sayuri