Cafira Foz, do Fitó, assume a gastronomia da Pinacoteca de São Paulo
Potente em tudo o que se propõe a fazer, a cozinheira dá detalhes do chamamento (público e interno) que envolve seu novo projeto: o Fitó Pina
Observar o modo com que Cafira Foz leva sua cozinha é como admirar uma obra de arte. Com seu jeito peculiar de encarar a gastronomia, a dona do Fitó não encontra suas referências na forma esperada. Sua fonte criativa vem da sutileza da arte, da política, da filosofia e do que é urbano. E sempre foi assim.
Nascida em Fortaleza, Cafira mudou-se para Teresina, capital do Piauí, ainda pequena. A vinda para São Paulo aconteceu mais tarde, com o objetivo de estudar moda. Contudo, o chamado para a cozinha foi mais intenso.
“Isso acontece muito na minha vida, não é mentira, tenho muitos chamamentos. Espiritual não é a palavra certa, mas estou sempre muito conectada com meus sentidos e com o que a rua me fala. Sou uma pessoa da rua”, relata, sobre quando mudou de rota profissional após visitar a mãe na França e emocionar-se num restaurante vietnamita. “Tenho dislexia, então meu processo de criação é pouquíssimo ligado à gastronomia em si, está muito envolvido com o todo, às vezes é uma poesia…”
Foi da arte que veio seu segundo chamado. Administrando desde 2017 o Fitó, restaurante no bairro de Pinheiros (leia aqui a reportagem sobre o espaço), Cafira recebeu no ano passado a oportunidade de abrir sua segunda casa, desta vez num desafio triplo: em três espaços na Pinacoteca de São Paulo, museu de arte mais antigo do estado.
“A minha vontade é trabalhar só com gente melhor do que eu, ter a melhor equipe e as mulheres mais capacitadas do mercado”
Cafira Foz
A novidade, que acaba de ser inaugurada, nasceu a partir da participação da chef num chamamento público com vários outros restaurantes, numa disputa que levou três meses até chegar ao resultado afirmativo. Entretanto, muito antes, a cearense de alma piauiense já havia sentido que essa história estava para acontecer.
“Um mês antes do primeiro convite surgir, vim conhecer a Pina. Conforme passei pelo portão, me deu um sentimento de aflição, comecei a chorar. Foi o mesmo desconforto e melancolia que senti quando descobri que minha profissão seria cozinheira, uma epifania que tive aos quase 30 anos de idade. Olhando para o entorno, pensei: ‘Esse é meu lugar’. Nem consegui mais fazer o passeio, fui embora”, relata a chef, no mesmo local, quase um ano depois do ocorrido, agora como responsável pela gastronomia do museu.
“Quando tudo aconteceu, o sentimento que me veio foi de cuidado, porque do mesmo jeito que a gente emite o que pode ser bom, também podemos frequenciar uma energia ruim. Então, a partir desse desdobramento, veio a necessidade de vigiar meus pensamentos.”
EM OBRAS E EM TRANSFORMAÇÃO
Dividido pelos diferentes espaços do museu, o Fitó Pina está localizado em seus três edifícios: Luz, Estação e Contemporânea. Como as portas foram abertas no finalzinho do ano passado, a operação tem ampliado seu horário gradualmente e ainda está em transformação, tanto nos espaços físicos quanto no menu.
Os pratos registrados neste editorial traduzem bem o DNA da chef: uma comida nordestina com toques contemporâneos e pitadas das invencionices de Cafira e sua equipe, composta quase que apenas por mulheres — isso em todas as unidades.
“A minha vontade é de trabalhar só com gente melhor do que eu, ter a melhor equipe e as mulheres mais capacitadas do mercado para capacitar outras mulheres. Eu entrei aqui mesmo só para elogiar e conseguir recursos para que essas pessoas tenham segurança, salário e ambiente decentes. Temos terapia, curso de inglês… Isso tudo demanda muita energia para viabilizar”, explica sobre o papel de empreendedora.
“Penso cada vez mais em me descolar do lugar de cozinheira e entrar para o lugar de empresária. O lugar de chef me traz um conforto emocional grande, mas valida muito mais meu ego do que minha empresa. Quero buscar recursos e realizar os planos que tenho para minhas funcionárias.”
No Fitó Luz encontra-se um food truck provisório, rodeado por cadeiras de praia e pelo jardim da Pina. O salão está passando por uma reforma, mas a cozinha já está a todo vapor: é possível tomar vinho de torneira ou um café da manhã tardio próximo ao espaço verde do Parque da Luz, que proporciona um silêncio raro de ser encontrado no centro da cidade. A promessa é que, ainda no primeiro semestre de 2024, um restaurante casual ocupe este mesmo lugar.
No Fitó Estação, o café é o protagonista. A cafeteria ocupa o prédio entre a Sala São Paulo e o Memorial da Resistência de São Paulo, com uma vitrine de bolos, lanches e cafés. O cardápio de grãos especiais representa a importância do café para a região da Estação da Luz. Os espressos são preparados na primeira máquina totalmente automática a ser qualificada para participar do Campeonato Mundial do Café. Para oferecer bebidas singulares, a chef fez uma parceria com a premiada cafeteria Pato Rei, garantindo o fornecimento de grãos selecionados e torrados pela casa em Pinheiros.
O prédio, além do antigo Armazém Central da Estrada de Ferro Sorocabana, foi residência do Departamento Estadual de Ordem e Política Social (DEOPS), o maior órgão de censura da Ditadura Militar.
Cafira conta que, ao colocar bolos no cardápio, a intenção é fazer menção à época em que, quando uma notícia era censurada nos jornais, as receitas do doce ocupavam seus espaços. Um exemplo é o bolo de laranja com iogurte e fubá, que entrega uma irresistível textura fofa e molhadinha (e fica ainda melhor com a compota de kinkan).
Já no alto do prédio da Pina Contemporânea, memórias da cozinha brasileira são servidas sob a cobertura de madeira na praça central. O teto do espaço, fabricado em madeira laminada colada, proporciona um efeito de luz filtrada: o resultado é uma atmosfera de fim de tarde, perfeita para saborear o cardápio colorido da chef.
No menu atual do Fitó Contemporânea, que mais tarde será encontrado no cardápio da Luz, estão ingredientes que refletem a trajetória de Cafira. Sendo assim, não podem faltar favas, cuscuz e, claro, muito coentro.
“Eu poderia ser uma cozinheira muito mais cerebral, mas não pertence a mim. Meu caminho é a rua, são as pessoas”
Cafira Foz
Em respeito aos mineiros, a chef gosta de enfatizar que não domina a arte do pão de queijo. Mas o salgado que abre o cardápio entrega personalidade com a massa mesclada: meio pão de queijo, meio bolo de goma do Piauí. No recheio, encontra-se um ragu de porco marinado em temperos sertanejos, cozido por horas e glaceado com gengibre, rapadura e molho de ostra — a fatia de abacaxi grelhado confere a acidez ideal.
A favadinha faz referência às raízes da chef e é servida com linguiça sertaneja de carne de sol. Já o lado paulista de Cafira é representado no turbinado sanduíche de mortadela, que ganha umidade com o pesto de coentro, salsinha, castanhas e alho.
Mais do que uma realização pessoal, Cafira Foz tem encarado o novo empreendimento como uma forma de dar continuidade aos seus ideais. “Pensava muito em abrir outro espaço, mas como reproduzir a essência do Fitó em outros lugares? No processo de oito anos da casa, me divorciei, teve a pandemia, foram tantas coisas acontecendo e não sabia como expandir a cultura empresarial do restaurante. Queria um crescimento que envolvesse a formação de lideranças da minha equipe, sempre pensando de dentro pra fora”, aponta.
Diante da vontade de querer construir algo em conjunto, fica impossível não associar essa paixão à sua culinária de tanta potência: “O conceito de alta gastronomia é de comer bem, é ser uma comida que todos possam comer. Eu poderia ser uma cozinheira muito mais cerebral, mas não pertence a mim. Meu caminho é a rua, são as pessoas”.
Créditos de produção
Texto Marina Marques
Fotos Breno da Matta
Edição de arte Catarina Moura e Jessica Hradec