A noite em São Paulo tem um ruído. Talvez seja somente um gerador ou o ar condicionado de um afortunado, que não está suando agora. Um som perene, mais alto do que a cabeça barulhenta que despertou às quatro da manhã. Vejo alguém chegando em casa e trazendo movimento para a rua deserta. Até agora era só solidão, um tanto de lixo espalhado e um homem estirado no chão em frente à minha janela.
Acordada, tento encontrar um silêncio interior que parece não existir. Passou um carro. Uma travesti, calçando meias, atravessa a rua. Ela não consegue ficar indiferente diante daquele corpo inerte no chão. Passa olhando para ele. Para logo adiante, volta com cuidado, olha mais de perto. Ele se mexe. Está vivo. Sentimos alívio. Ela segue caminhando de meias no asfalto, eu sigo descalça sobre o privilégio insone. Ele, no corpo do desalento, está vivo. E me pergunto: o que é viver?
Quando foi que passamos a conviver com pessoas e sacos de lixo deitados na rua? Um incômodo a mais para minha aridez autocentrada da madrugada. Uma realidade que quer me impedir de achar que tenho todos os problemas do mundo, simplesmente porque não tenho grana para pagar o cartão.
Devo, assumo. Entro no cheque especial e passo a lama da autopiedade no débito. Faço um parcelado de esperança, renegocio a fé abalada. Será tolice desejar um amanhã de passaporte carimbado e vento de conhecer? Entre palavras confusas, entre devaneios sem sentido e esse punhado de frases desconexas, há uma mulher que ainda sonha.
Faz pouco, é coisa recém-nascida. O idílio regressou quarenta semanas depois de gozar e sentir medo. Saiu da sombra de vida sem desejo e seguiu em velocidade de taquicardia. Uma intensidade doente que só aumenta o volume da noite.
Um cachorro latiu alto, distante. Atendo a vontade de digitar de olhos fechados, inventar palavras e mundos. Quem sabe escrever sobre aquela viagem à Toscana que não fiz ou sobre o sorvete a lambuzar os dedos imaginários e os desejos de uma tarde quente de quando não visitei Lisboa?
Minimizar os conflitos não vai dar dignidade a ninguém, porque todos buscam em alguma medida um sentido para também resistir. Não ser apenas uma testemunha viva ou quase viva da destruição da floresta, da violência na cidade. Não ser paraninfa da juventude que não pisa no chão, e que não tem céu.
Dormir já não basta. Algo mais precisa ser feito: sonhar acordada? Desperta pela energia da criação, ocupo a vigília, afasto os demônios que habitam no ruído da noite, entre um latido, um corpo, uma travesti de meias e eu.