Tem um apito lá longe. É incômodo, mas de tão frequente, a gente se acostuma. E quando se acostuma, deixa de perceber que existe. Até que um dia, a gente amanhece sem. É aí que não restam dúvidas. O apito era a causa das nossas intermináveis dores de cabeça. E das costas. E da alm. Entre eles, o gaslighting.
Dá para dar tantos nomes a esse apito. Abuso, toxicidade, desrespeito, desconsideração, sobrecarga. Todos tão mais comuns do que deveriam. Todos tão presentes na forma como aprendemos a nos relacionar com as nossas parcerias amorosas e, sobretudo, com a gente mesma.
Mas, para mim, o nome desse apito era manipulação. Uma forma de abuso também. Extremamente danoso. Mas daqueles venenos que vão contaminando aos poucos, tal qual os agrotóxicos que vão na nossa comida, diariamente, e ninguém fala a respeito. Ou até fala, mas logo é abafado. Ou até fala, mas não se resolve.
E, a verdade, é que eu tenho um defeito- para ser generosa comigo mesma por um instante. Apesar de excelente manipuladora também, devidamente terapeutizada, não costumo guardar os meandros das discussões. Discuto e, então, esqueço. Debato, por vezes até brigo e em cinco minutos já quero falar sobre o programa do final de semana. Não esqueço porque sou boazinha, evoluída, uma boa alma. Esqueço porque esqueço. Ou por algum motivo que ainda não descobri na análise. E, então, é muito fácil voltar toda e qualquer discussão contra mim.
Perdi as contas de quantas vezes comecei uma conversa para dizer de uma dor, uma demanda, um pedido, uma insatisfação minha e saí pedindo desculpas. Desculpas por faltas que nem lembrava de ter cometido. Desculpas por apenas ser. Desculpas pelas culpas que carrego sem motivo algum, por todos os motivos possíveis.
Como é ardilosa. A manipulação é um artifício brilhante. Nos entorpece a ponto de questionarmos a nossa própria sanidade. Gaslighting, chamaram. Na dúvida, o outro só pode estar certo. Talvez more aí, nesse exato questionamento, o antídoto contra esse apito tão silencioso e tão atroador: a autoconfiança. Chega a parecer discurso raso de coach internético. Mas não é. Também não é simples e não é matemático.
A medida em que nos vemos com maior nitidez e ousamos acreditar nos nossos próprios sentidos, a vertigem sintomática da manipulação vai enfraquecendo. As situações ganham nitidez. E com nitidez são possíveis melhores encontros.