Certa vez, Miuccia Prada disse que não achava atraente trabalhar com o belo. Digo, o belo certinho, óbvio e fácil. Aquele tipo que agrada sem muito esforço – e, que, segundo ela, não abre espaço para ser questionado. Desafiar as leis da beleza foi o caminho que ela decidiu seguir desde o início do prêt-à-porter da Prada no final da década de 1980 e, para o Inverno 2023, a atitude de questionar a moda e a estética segue como foco da sua coleção ao lado de Raf Simons.
“Esta coleção é inspirada na ideia de beleza. Mas, cada vez, quando Miuccia e eu escolhemos um tópico, tentamos sair de sua abordagem típica. A ideia de beleza que fomos atraídos era sinônimo da ideia de cuidar e ter cuidado, e os uniformes são associados a isso. Porque as pessoas que se importam são as mais importantes. Isto sempre volta para as pessoas. É sobre responsabilidade”, conta o estilista belga sobre criar esta relação do belo com outro grande elemento forte no DNA da marca, os uniformes.
Desta vez, a beleza é determinada não pela aparência, mas pela ação – as roupas são símbolos e representações de cuidado, amor e realidade. Na passarela, o visual branco das enfermeiras serviu como referência para as chemises monocromáticas de popeline com recortes, bolsos e caudas curtas – e a sequência dos quatro looks criados a partir desta proposta traz a sensação de cuidado e leveza. As jaquetas e capas em tons terrosos e verde resgatam a atmosfera militar, que Miuccia já trouxe inúmeras vezes nas suas apresentações e, para ela, a mulher é uma verdadeira guerreira. Fora da categoria de uniformes funcionais, os vestidos de noiva, símbolos de amor, se transformam em peças do dia a dia, com suas saias combinadas aos suéteres, sugerindo uma nova forma de vestir. Essa brincadeira que a dupla cria, entre a noção do cotidiano e da ocasião, o familiar e o excepcional, dá um significado ousado e ressignifica estéticas que, se já foram óbvias, não são mais.
Na Gucci, o estúdio de criação, que foi a responsável por projetar a coleção entre a troca de diretores criativos da marca, resolveu conectar a excentricidade do trabalho de Alessandro Michele com a sensualidade noventista de Tom Ford. Dois nomes icônicos e importantes para construir parte do heritage da grife. Ambos também levantaram questionamentos sobre o belo. No caso de Michele, a estranheza foi às últimas consequências – como pudemos ver ao longo dos quase oito anos. Para o Inverno 2023, a ideia de misturar peles sintéticas, transparências, paetês, lingeries e alfaiataria slimline que originou um caminho mais clássico, baseado em uma tentativa de equilibrar os códigos estabelecidos até hoje por quem esteve no poder de criação. Felizmente, nada sem graça ou extra comercial como visto na era Frida Giannini (por isso, um período não tão celebrado na linha do tempo da Gucci). O medo da saída de Alessandro Michele era esse.
Além da Gucci, há outra label do grupo Kering que vem ressignificando o que encaramos como “belo”. Talvez, de uma maneira mais simples. E é essa a grande mágica que Matthieu Blazy vem fazendo há três temporadas. Estabelecer uma nova relação entre o DNA elegante da grife e o que é necessário abordar na moda atualmente é o que transformou a Bottega Veneta em um verdadeiro desejo. Ok, ela teve um forte estouro nas mãos de Daniel Lee, ex-diretor criativo, mas o que vem arrancando suspiros é a estética firmada por Blazy. Nada é exagerado ou fora da realidade. Matthieu, que começou sua carreira no design masculino da marca homônima de Raf Simons, vem mostrando formas de nos acostumarmos com a simplificação da roupa, da silhueta e, ainda assim, entender como levá-la para as ruas. Há regata e calça jeans, assim como vestidos com plumas (ideais para red carpets). E foi assim ao longo dos seus 81 looks, muitos deles, desconexos do restante – segundo o diretor criativo, não aconteceu uma edição da coleção. A ideia foi construir personagens, cada um dentro da sua própria história.
Já sabemos, há tempos, que a verdadeira beleza não está na moda inalcançável, restrita ou que ainda vive na era da ostentação. As narrativas construídas dentro dos ateliês das marcas de luxo vêm se aproximando com efetividade do imperfeito. Se a discussão já existe na Alta Costura, que vem sendo questionada sobre seu próprio sistema, imagine o quanto ainda é importante compreender os movimentos do prêt-à-porter. A beleza perfeita já não é universal. A forma como as grifes vêm provocando seus consumidores e admiradores tem um caminho saudável e abre novas questões que vão além dos inúmeros looks “bonitinhos e comerciais”. A moda é ainda o lugar do lúdico e do espetáculo? Acredito que sim, mas, ainda que vivendo dentro do sonho construído a partir de roupas, é relevante entender o que importa realmente hoje. “A realidade é rica. A vida real é muito mais rica do que qualquer fantasia. E, portanto, mais importante. Para mim, o real significado do que fazemos é trazer importância para o dia-a-dia. A vida cotidiana merece coisas bonitas, porque cada dia da vida importa”, comentou Miuccia Prada após o seu último desfile. Até mesmo ela, que vai contra o sentido comum, quer ver esse movimento acontecendo. Porque, mostrar que ele existe, Sra Prada já mostrou que é real.